Ucrânia. Não se atiça a fera com vara curta!

Por Carlos Ribeiro

Durante anos, o mundo viveu e continua dividido numa correlação de forças, onde as duas principais potências (antes eram só isso mesmo: potências. Hoje, são superpotências), a então URSS e os Estados Unidos da América decidiam o rumo político e financeiro nas “suas” zonas de influência, à mistura, as vezes, com alguma pseudo-confrontação directa (de preferência em campo neutro, como o que assistimos hoje na Ucrânia), enquanto a China, adormecida e embalada pelo som desse confronto, se preparava estoicamente, para os imitar e os suplantar.

De um lado a OTAN, criada em 1949 e subordinada escancaradamente á Casa Branca, e do outro, o Pacto de Varsóvia, criado em 1955 e subordinado ao poder discricionário do Kremlin. Com estes dois blocos, o mundo sobreviveu a inúmeras ameaças de extinção, geradas e alimentadas pelos laboratórios de Langley e de Lubyanka, com golpes de estado, ameaças de guerra nuclear e reviravoltas miraculosas a nível de geopolítica mundial.

Num golpe visionário, os sobreviventes da Perestroika e da Glasnost, pressionados pelo clamor dos picaretes e martelos no muro de Berlim, conseguiram que, em 1989, George Bush sénior, Margaret Thatcher, François Mitterrand, Helmut Kohl entre outros, garantissem que a OTAN ficaria com os restos da reunificação das duas Alemanhas, mas que nunca se aproximaria da fronteira russa que, entretanto, se havia transformado em uma Federação de Estados Coligados.

Reza a história, que o império russo (1721 a 1917) se estendia do continente euroasiático (Leste Europeu e Ásia setentrional) até a América do Norte (Alasca). Com a revolução leninista, o império acabou dando lugar a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), com a Ucrânia a integrar essa união em 1922, com fronteira actual fixada em 1954. Um ano antes e durante a construção do sistema de irrigação de água para a Crimeia, e para facilitar a administração dessa construção, foi sugerido que a Crimeia passasse a ser parte da Ucrânia. Em Fevereiro de 1954, Nikita Khrushchov, então secretário-geral do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), por ocasião das comemorações dos 300 anos do Tratado de Pereiaslav (no ano de 1654, o czar Aleixo 1.º da Moscóvia, após a revolta de Khmelnytsky, se comprometeu a fornecer proteção ao Estado cossaco ucraniano), assinou a declaração de integração da Crimeia na Ucrânia.

Já em 1991, com a desintegração da URSS, a Ucrânia tornou-se Estado independente e 13 anos depois, no auge da euromaidan ou primavera ucraniana, o presidente eleito, Viktor Yanukovic, foi derrubado por um golpe de estado. Nesse mesmo ano (a 17 de Março de 2014), e na sequência de um referêndum, a Crimeia foi reintegrada na Federação Russa.

De 1988 a 2014, ignorando o que havia se comprometido e tendo classificado a Rússia como seu inimigo, a OTAN se expandiu em direcção a fronteira russa, tendo coaptado para a sua esfera de influência, 12 ex-estados comunistas. No entanto, em 2002, a Rússia e a OTAN decidem colaborar no combate ao terrorismo e controlo de armas nucleares. Se diplomaticamente os dois colaboravam, no terreno, a OTAN continuava os seus intentos para chegar a fronteira russa. E é assim que a Ucrânia entra mais uma vez nessa equação expansionista! 

Em 2015, o professor de Relações Internacionais e Ciências Políticas da Universidade de Chicago, John Mearsheimer, notou que o melhor para o Ocidente e para a Rússia, era que a Ucrânia fosse um Estado neutro. Dizia o professor que, o Ocidente estava a incentivar a Ucrânia a procurar um “prazer” de consequências desastrosas ao enfrentar a Rússia, incentivada pela perspectiva de que faria parte da OTAN após o Ocidente derrotar a Rússia. No entender do professor Mearsheimer, ao invés de enfrentar a Rússia, o melhor era tornar a Ucrânia num Estado economicamente forte e retirá-la desse cenário de confrontação directa com a Rússia. E um dos pontas de lança do ‘primrose path’ ucraniano, era o actual presidente Joe Biden e mais tarde o seu filho Hunter Biden, que o substituiu na administração da empresa local de gás liquefeito e petróleo, a Burisma. 

Na altura, como vice-presidente dos Estados Unidos, Biden recebeu de Obama a orientação para acompanhar a Ucrânia (à moda dos grupos de acompanhamento nestas bandas), com um orçamento de um bilhão de dólares. Daí nasceu e se fortaleceu a sua relação com o presidente chocolatier, Petro Poroshenko, mas, condicionada a execução de certas políticas (popularmente, tidas como democratizadoras) para que a Ucrânia tivesse acesso aos dólares. No entanto, perante um evidente conflito de interesses e por sugestão de Poroshenko, Joe Biden indicou o seu filho Hunter Biden, para o substituir na administração da Burisma. 

Mas, o sonho da Ucrânia continuava de pé em riste só que, a oposição da França e da Alemanha adiava essa intenção e mantinha a OTAN a uma distância segura da fronteira, aliviando as dores de cabeça dos russos.

Vai daí, e impulsionado pela vitória nas eleições e ciente de que precisa de ter um trunfo na manga para convencer os norte-americanos e garantir o Senado e o Congresso em Novembro próximo, de formas a aprovar o BBB (Build Back Better, o seu programa de campanha que ainda não foi aplicado quando está há dois anos do fim do mandato presidencial), Joe Biden relança o expansionismo da OTAN até a fronteira russa, assente num desejo irracional de vingança contra Vladimir Putin, devido à uma alegada ingerência deste nas duas últimas eleições presidenciais norte-americanas (há um documentário onde Rudy Giuliani é entrevistado e onde se aventa a hipótese de que, parte dessa ingerência tenha sido protagonizada por ucranianos próximos de Poroshenko). Para isso, Biden conta com um puto bon vivant que, emocionado com o paternalismo melado da jet set da política internacional e amparado pelo batalhão de Azov (organização neonazi paramilitar ligada ao Ministério e criada em 2014 durante os protestos da euromaidan), cai na presunção soberana de “atiçar” a fera com vara curta…

Uma das constatações confirmadas por essa “guerra” é que quando protagonizada pelo mundo “democrata”, a invasão tem sido vista como um acto em defesa do povo invadido, ou é justificada com um chorrilho de inverdades, como vimos na invasão à Granada, no bombardeamento na Yugoslávia, na divisão do Sudão, no bombardeamento à Líbia, no bombardeamento, invasão e ocupação do Iraque (onde o pretexto de acabar com a produção de armas de destruição maciça nunca comprovada, teve o condão de transformar aquele país num antro de produção de terrorismo) e no bombardeamento na Síria. Tudo isso, sem mandato ou autorização da ONU (Israel, há anos que segue a mesma arrogante atitude na Palestina) e a maioria bate palmas e agradece, até porque, não ocorre na Europa!

Quando são outros e com demonstração de igual ou superior força militar, todos, por arrasto e já previamente adestrados (porque a chuva de meias-verdades é tão intensa que até dá a impressão de que o editor é o mesmo na redacção da CNN, da BBC, da Aljazeera, da RTP, da Globo incluindo a TPA), para acreditarem numa “única” fonte. A choradeira é universal, a tal ponto que, quem tem opinião contrária passa a ser rotulado como antidemocrático, comunista, assassino, demónio, blá… blá… e mais blá… etc…

Mas, é fácil sonegar a verdade, principalmente quando se faz borrada! E é isso que Zelensky, Biden, OTAN, Reino Unido e União Europeia fizeram: uma grande borrada. E agora para saírem dessa grande borrada em que nos colocaram mais uma vez, optam pelo faz-de-conta (até porque, não se corta a fonte de fornecimento quando se depende desse fornecedor) das sanções enquanto se aguarda que os reflexos da guerra sobre a economia parem a guerra.

Mas, hoje o comércio mundial é tão ambíguo e o tráfico de petróleo iraquiano pela Turquia, nas barbas dos Estados Unidos/OTAN, é um exemplo perfeito dessa ambiguidade. E como dizem os russos, as sanções não são novidades. Muito pelo contrário, era de se prever! Provavelmente, enquanto “atiçavam” a fera com vara curta, talvez a fera estivesse a tomar as necessárias medidas de resposta. Doutro modo, o impacto futuro dessas sanções já teria feito o exército russo parar a invasão e recuar para as suas fronteiras. 

O que se espera agora, é que os líderes ucranianos tirem as devidas lições para que, da próxima vez, tenham a inteligência soberana de medir primeiro o cumprimento da vara, se pretenderem de novo atiçar a fera.

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