A NORMALIZAÇÃO DO ANALFABETISMO FUNCIONAL: PARA QUANDO O DESENVOLVIMENTO HUMANO?

POR KANANDO JOAQUIM

No relatório do PNUD sobre o Desenvolvimento Humano 2021/2022 (o último divulgado), Angola aparece na posição n.° 148 (Desenvolvimento Humano Médio) entre 191 países classificados. O PNUD divide o Índice de Desenvolvimento Humano em 4 níveis: IDH muito elevado; IDH elevado; IDH médio; e IDH Baixo. Por isso, nesta tabela, o IDH médio está “abaixo da média”, ou seja, estamos a prejudicar IDH mundial. E é de sublinhar que estamos a menos de uma dúzia de posições acima do nível de IDH Baixo.

No referido relatório consta expressamente que o investimento na educação e na competência das pessoas são uma parte essencial do desenvolvimento humano e, neste conspecto, em 2018, a UNESCO trouxe à luz o conceito de analfabetismo funcional, paralelizando-o ao “analfabetismo clássico”.

Diferente do analfabeto clássico, o analfabeto funcional é capaz de ler e escrever, pode compreender pequenos textos e realizar pequenos cálculos. Podemos dizer que é aquele que é capaz de assinar o nome, contar dinheiro e pode até mesmo entender alguns “memes”. Mas, infelizmente, é incapaz de ir muito além disso. Se confrontado com um texto de página e meia, cujo conteúdo deva ler e compreender… como dizemos na gíria, “a luz foi”.

Mas não quero aqui fazer ou dizer que o Índice de Desenvolvimento Humano dependa unicamente da alfabetização. Outros factores como a expectativa de vida e o PIB per capita são igualmente preponderantes. O que quero é relacionar o analfabetismo funcional com a miserável qualidade do trabalho que é oferecido pelas escriturárias e escriturários da burocracia angolana.

A verdade é que a qualidade do atendimento angolano, em tudo o que envolva ler e escrever, é fonte de sério prejuízo para qualquer inteligência, saúde ou bem-estar razoável. Isso quando não é mesmo causa da morte destes. Em Angola, hoje, ter de fazer o funcionário da Conservatória perceber a razão do requerimento que se leva em mão, não é mera praxe, é pressuposto essencial para que o documento seja recebido.

A autenticação de documentos, fonte directa e imediata de receita pública, é um acto que pode consumir meio dia ao necessitado, com os Notários a determinarem dias, horários e, pasme-se, número de pessoas atendíveis para a autenticação. E, estranhamente, coisa bradar aos céus, nalguns casos, como das Declarações escolares, é mais barato e cómodo solicitar “outra” via original na instituição competente do que autenticar a cópia!

Certa vez, vi um cidadão questionar a uma funcionária sobre o porquê de ter que preencher um formulário com os seus dados pessoais, quando a cópia do seu BI iria em anexo. A mesma disse que se o cidadão não quisesse preencher era só ir embora! E lá o cidadão, resignado, transcreveu os dados directamente da cópia do BI que seguiu junto ao formulário (literalmente junto, porque agrafados com duas fotografias tipo passe — com os agrafos a perfurar os olhos do cidadão no retrato).

Em Angola, inteligência é fazer o que mandam. Ler, compreender, pensar, perguntar… é complicar. Estamos todos orientados a não compreender nem questionar nada, apenas a executar. E executar o quê? O que for ordenado por um analfabeto funcional com a categoria de “chefe”. E, para nossa desgraça colectiva, qualquer coisa que não caiba na cabecinha desfuncional do funcionário que nos ouve, não é possível. O normal é deixar-se guiar cegamente e, quando não nos rebaixamos ao nível desta gente reles, o preço, pagamos com a saúde, a educação e o bem-estar que ela nos tira.

No funcionalismo público, desde há muito cravado desta espécie de gente, hoje parece que já não sobra um único burocrata com um pingo de alfabetização funcional. E não falo só de escriturários. Já se viu juiz ditar asneira à acta e escrivão escrever pior. Português que evolui de “frase mal dita” à “escrita maldita”.

O funcionalismo público, desde que, após a independência, diz-se que por necessidade, promoveu gente despreparada para o preenchimento dos lugares deixados vagos pelo êxodo dos colonos, prescindiu, em absoluto, de lembrar que é importante contratar gente capaz. Qualquer analfabeto, clássico ou funcional, pode exercer qualquer cargo em Angola até hoje. E mesmo nós sabendo das debilidades do nosso sistema de ensino, nada fazemos para separar o trigo do joio. Quanto aos analfabetos funcionais, tal como os alfabetizados, também sabem ler e escrever e, não raro, têm as mesmas habilitações. Somos todos iguais e isso até está na Constituição — por favor, não se retire daqui um ensaio descriminatório contra analfabetos funcionais, que tão-somente carecem de assistência “pedagógico-formativa” adequada.

Sobre a necessidade de formação adequada, note-se que a privação da educação é também um factor relevante para efeito de determinação do Índice de Pobreza Multidimensional e neste capítulo, de acordo com Índice de 2023, também não somos exemplo.

Entretanto, é bom deixar destacado que quer no Índice de Desenvolvimento Humano, quer no Índice de Probreza Multidimensional, apenas são considerados os “anos de escolaridade per capita”. Por isso, nestes índices não são considerados os que após anos e anos de escolaridade continuam como se se tivessem bastado com o ensino primário.

Não é nova para ninguém a estória da necessidade de passagem da quantidade para a qualidade dos quadros superiores formados. Foi há cerca de 10 anos que ouvimos o então ministro do Ensino Superior, Adão do Nascimento, “ensinar” a responsáveis universitários que “é errado apostar muito na quantidade sem olhar para a qualidade”, entendimento que veio ser reiterado pelo então Vice-PR, Manuel Vicente, há 7 anos e mais recentemente, mais palavra, menos palavra, pela actual ministra, Maria Sambo.

Esta última garantiu recentemente que estão criadas as condições legais para assegurar a melhoria contínua da qualidade no ensino superior, por meio de avaliações confiáveis, objectivas, pertinentes, imparciais e cíclicas.

Acreditando que assim venha a ser (o que é francamente improvável), que mecanismos expurgatórios existem para exsudar ou “alfabetizar” os quadros da “época da quantidade” que formam o grosso do nosso funcionalismo público? Acomodados na falta de qualquer avaliação rigorosa e na inexistência de qualquer mecanismo que avalie a sua produtividade, exercem incompetência autorizada e distilam uma arrogância que só conhece um mínimo de freio na presença de alguém que exale ares de gente importante e rica.

Para quando mecanismos que permitam avaliações, confiáveis, objectivas, imparciais, pertinentes e cíclicas dos funcionários públicos e não só.

A normalização da incapacidade e da falta de vontade para o trabalho, incluindo por parte de magistrados, professores, médicos e agentes da ordem pública, são causa séria e grave do nosso défice de qualidade de vida. A par desta, só mesmo a nossa mania de acomodar parentes medíocres, incapazes de conseguir emprego por mérito próprio, trazendo-os para comer no pasto onde exercemos cabritismo. É assim que a qualidade da nossa saúde, educação e bem-estar vem se esvaindo. É assim que o nosso IDH nunca irá melhorar, porque com esse único tiro — o da manutenção de analfabetos funcionais para “cargos de ler e escrever” — vamos matando os coelhos da educação, da saúde e do bem-estar, tornando mais difícil a vida de cada um e de todos nós.

Acredito que não tenhamos o maior número de analfabetos funcionais per capita. Mas por número de empregados, só fica mesmo o benefício da dúvida.

Já sabemos que, como cantou Gabriel o Pensador, as autoridades estão defecando para o que acontece com os cidadãos no seu quotidiano. Mas, ainda assim, preocupado com os cidadãos de Angola e não com o Relatório do PNUD, só me resta perguntar: para quando a melhoria do nosso índice de desenvolvimento humano?

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