CONVERSA NA MULEMBA
O problema central do país reside na ausência de boa governação, com o povo e para o povo, e de instituições públicas funcionais capazes de implementarem as políticas públicas, e é isso que determina o estado da Nação, tudo o resto deriva daí…
Citando, em jeito de homenagem, uma das últimas crónicas de Ismael Mateus, um fazedor de opinião que nunca escondeu a sua simpatia pelo “partido” e marcou pela positiva, como poucos, o nosso pobre panorama comunicacional, assumo que o Presidente João Lourenço não conseguiu “alterar significativamente o rumo dos principais comportamentos reprováveis da era de JES, como o esbanjamento e gastos excessivos do Executivo, corrupção generalizada, a impunidade dos poderosos, insuficiente diálogo com a sociedade civil e proteccionismo de certos grupos económicos.” Não conseguiu, até hoje, melhorar significativamente o que está, ou estava, bem, e em alguns casos até piorou na percepção da maioria dos angolanos, nem corrigir o que está mal, de tal modo que, continuando a citar Ismael Mateus, para esses angolanos “a génese da desilusão está directamente relacionada com a percepção de que não foi feito o suficiente para um corte efectivo com práticas do passado e que, assim sendo, se mudaram certas pessoas, mas os comportamentos, vícios e erros continuam praticamente os mesmos. De resto, usa-se o próprio discurso de João Lourenço na tomada de posse de 2017 como o ideário comum de sociedade que todos aspiram e ele, ao prometer implementar, criou uma grande onda de auto-estima e esperança no futuro.”
É isso que me vem à memória sempre que, nesta altura do ano, sou convidado a “prever” o discurso do Presidente da República sobre o estado da Nação. Apesar das críticas e sugestões, os discursos continuam demasiado longos e descritivos e muito pouco analíticos, referindo realizações e mais realizações, sem que se dê a devida atenção aos factores que constituem verdadeiros constrangimentos ou gargalos do funcionamento das instituições públicas. Sem isso, por mais investimentos que se façam nas infraestruturas e nos equipamentos, sempre sobredimensionados e com recurso a tecnologias demasiado avançadas para as nossas actuais capacidades e para o nível de desenvolvimento das forças produtivas, o que alimenta a ineficácia e a ineficiência das instituições e proporciona a corrupção, dificilmente a situação será alterada no sentido da implementação das promessas que se vão fazendo.
A caracterização do estado da Nação não pode ser apenas o enunciado das realizações, mas também o reconhecimento das faltas e dos erros, nem a promessa de novas realizações sem o equacionamento de novas estratégias que melhorem os níveis de confiança, muito abalados, dos cidadãos, pois já não adianta dizer “vamos fazer”.
Falar das novas infraestruturas sanitárias públicas, principalmente as mais sofisticadas, para as quais a população olha com desconfiança, não apenas pelo conceito e pelos custos, mas também pela percepção, fundamentada, do acesso dificultado aos cidadãos mais carentes, não altera a pouca esperança no futuro.
O mesmo acontece com o drama do material escolar, que vem de longe e agora atinge um ponto tal que os cidadãos que se endividam para conseguir matricular os filhos têm de escolher entre a compra de alimentos e a de material escolar, pelo que ninguém vai acreditar na vontade do Presidente de combater o escândalo do desvio do material que deveria ser oferecido aos alunos e só pode ser conseguido no mercado. E que dizer de outros escândalos, como a suspensão de vários cursos superiores na área da saúde, como a Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto (UAN), por falta de qualidade depois de terem passado anos a dar diplomas a médicos que talvez estejam a trabalhar nos tais hospitais com tecnologia de ponta? E do estado de degradação do campus da UAN quando se anunciam gastos significativos em novas instalações universitárias, que, provavelmente, estarão degradadas daqui por uns anos, como estão as estradas da renomada reconstrução nacional? Agora que “vamos” ter o problema da água potável para os supostos dez milhões de residentes em Luanda resolvido, talvez, e mesmo assim só em 2027, já nos é permitido saber que actualmente apenas 30% desses habitantes beneficiam do “precioso líquido”.
Preocupa-me pensar na possibilidade de o próprio Presidente, como antes José Eduardo dos Santos, acreditar que as “coisas” possam mudar apenas porque há dinheiro e, de certo modo, vontade. Por tal razão, insisto em afirmar que o problema central do país reside na ausência de boa governação, com o povo e para o povo, e de instituições públicas funcionais capazes de implementarem as políticas públicas, e é isso que determina o estado da Nação, tudo o resto deriva daí. Instituições públicas que garantam o funcionamento normal da economia de mercado e não a que se sujeita aos ditames dos políticos-empresários. Instituições públicas que tenham em conta a realidade sócio cultural nacional na sua diversidade e não se limitem a copiar leis e normas de outras latitudes não aplicáveis a um país onde a base material é heterogénea, com elementos significativos do sector familiar e não formal pouco integrados numa economia de mercado ainda pouco estruturada e com um sector petrolífero moderno dominante a funcionar em situação de enclave; onde o não-formalismo, o parentesco e a etnicidade desempenham um papel relevante no protagonismo das forças sociais, na organização da vida associativa e na expressão de interesses; onde, em relação à ideologia, se verifica a convivência do respeito pelos valores colectivos, solidariedades, normas de parentesco e crenças mágico-religiosas, com o individualismo, característico de uma sociedade e de uma economia aberta a (e influenciada por) determinadas modernidades.
Finalmente, o problema central reside também na ausência de instituições públicas que percebam a importância e o alcance da comunicação social na construção da nação, do Estado e da democracia, na educação dos cidadãos para a cidadania. Quando o Presidente começa o seu discurso reafirmando o seu compromisso com a democracia, mas ignora na prática da governação os princípios ideológicos da sua mensagem de Setembro de 2017, algo de muito preocupante se passa. Quando não se percebe a importância e o papel da comunicação social e das rádios comunitárias na luta contra a violação sexual de menores e a violência doméstica e contra outras práticas anti sociais como feitiçaria; quando não se percebe a sua importância na divulgação de boas práticas ambientais (como a contenção e disciplina nas queimadas), de nutrição (incluindo o aproveitamento e valorização de recursos locais ou endógenos), de cuidados primários de saúde, contra o alcoolismo e o uso de drogas, fica-se com a sensação de que isso é um sinal de receio infundado, não apenas dos partidos opositores, mas dos movimentos sociais que vão emergindo e crescendo e até mesmo dos simples cidadãos que apenas desejam participar na construção de uma Angola melhor. E esta é também uma homenagem a Ismael Mateus.
Novo Jornal, 18.10.24