Com medidas de dumping, possivelmente ditadas por tentativas inglórias de resolver o problema da inflação, o Executivo cria outros problemas, que prejudicam os agricultores e os operadores comerciais ligados à compra, armazenamento e distribuição de produtos agrícolas, minando a ténue confiança que vem sendo tecida a duras penas nos últimos anos
Escrevi há alguns meses uma crónica em que referia o aumento do peso político da agricultura em Angola devido à conjugação de três factores: as dificuldades financeiras causadas pelo preço do petróleo e pela carga da dívida pública; a sensibilidade do Presidente João Lourenço relativamente ao sector; e a influência da AAPA-Associação Agro-pecuária de Angola em matéria de políticas públicas junto do Executivo e o seu papel na promoção da agricultura como nenhuma outra organização de agricultores o fizera da actual antes do protagonismo da actual direcção.
Alguns, felizmente poucos, colegas de profissão ligados ao Ministério da Agricultura e Florestas (MINAGRIF), não entenderam o alcance das minhas palavras, interpretando-as como sendo uma subalternização do papel da instituição a que pertencem relativamente à associação empresarial. Ora, uma coisa nada tem a ver com a outra. O peso político do sector é mensurado pela importância que o Executivo e as instituições públicas, assim como a comunicação social e a sociedade em geral, lhe confere. Durante muitos anos, todos nós, profissionais do agro, criticamos o alheamento com que se tratava o sector, fruto da falta de visão, sensibilidade e desconhecimento de muitos governantes, associada a métodos de trabalho obsoletos que impediram, ao longo dos anos, a integração e a coordenação das acções governamentais que permitissem eficácia e eficiência de planos, programas e projectos. Sendo parte integrante do Executivo, imaginar o MINAGRIF desalinhado com essa abordagem é algo que não faz qualquer sentido, pelo que a recomendação mais pertinente a fazer é que o diálogo com os diferentes actores possa ser mais intenso.
Como consequência do aumento do peso político do sector, o Executivo tem tomado medidas inéditas, como a aprovação do Programa de Aceleração da Agricultura Familiar e Reforço da Segurança Alimentar, o reforço das verbas atribuídas pelo OGE ao sector e as medidas relativas à preparação da campanha agrícola. São medidas importantes e inéditas, ainda que se possam apontar deficiências como a ausência de visão estratégica e o carácter errático e as incoerências tácticas das decisões, como tive ocasião de fazer notar na conversa do mês de Maio, principalmente pelas persistentes e preocupantes fragilidades institucionais. Uma dessas fragilidades diz respeito ao modo como as instituições encaram os diferentes actores não estatais, sejam do sector privado e das associações empresariais, do mundo informal da agricultura familiar ou das organizações não governamentais, o que não favorece a estruturação do negócio do agro, não permite a criação e aproveitamento de sinergias e acaba mesmo por prejudicar os interesses desses actores. Um exemplo concreto está a ser vivido actualmente com a importação de quantidades significativas de milho exactamente na altura em que começa a campanha de comercialização deste cereal, o que afecta de imediato o preço de venda por parte dos agricultores por aumento da oferta do cereal no mercado.
O mesmo havia acontecido meses antes quando o preço era favorável aos agricultores que haviam feito o armazenamento do produto, quase sempre em penosas circunstâncias. Com tais medidas de dumping, possivelmente ditadas por tentativas inglórias de resolver o problema da inflação, o Executivo cria outros problemas, que prejudicam os agricultores e os operadores comerciais ligados à compra, armazenamento e distribuição de produtos agrícolas, minando a ténue confiança que vem sendo tecida a duras penas nos últimos anos.
Num périplo pelas províncias do Cuanza Sul e do Huambo, e interagindo com agricultores e operadores comerciais com intervenção alargada a alguns municípios do Bié e da Huíla, pude comprovar algo que defendo há muito: há uma Angola que dá certo também no mundo desses actores da agricultura familiar, que finalmente começam a ser considerados, fazendo-se jus ao seu papel real na economia e eliminando-se progressivamente o preconceito como têm sido encarados. Soube de gente de certos municípios da Huíla ou do Huambo que fazem sacrifícios incalculáveis para pagarem os estudos dos filhos enviados para as cidades, sejam do Lubango ou mesmo de Portugal, apesar dos prejuízos causados pelos disfuncionamentos da nossa economia e da nossa governação. Como soube que muitos dos jovens que estudaram ou estão a estudar em Portugal já decidiram não regressar a Angola. Quando perante a sagacidade de um jovem formado numa ONG e aos poucos elevado ao estatuto de empresário que assiste algumas centenas de agricultores na modalidade contratual e capaz de merecer do FADA – que dezenas de anos depois da sua criação assume finalmente o seu papel de promotor e financiador da agricultura familiar, apesar das insuficiências ainda constatadas – a responsabilidade de intermediação de crédito e espécie, como muitos temos defendido ao longo da nossa actividade profissional, alguém suspirou desejando a existência de mil jovens angolanos semelhantes, surgiu uma voz afirmando que eles existem, o Executivo autoritário e a sociedade desinformada é que não os deixam brilhar.
Citando uma vez mais o meu amigo Henriques Chimbili, agricultor dito familiar da Cáala, o nosso azar é o de não termos a sorte, o que se aplica, no meu entender, ao azar de não termos políticos e governantes que olhem para os camponeses angolanos – mesmo quando vivem nos desumanos subúrbios das cidades – como cidadãos com os direitos consagrados na Constituição, mas sim como os colonialistas consideravam os indígenas ao longo de quase meio século, até que, com as revoltas de 1961, estes conquistaram o título de cidadãos, ainda que com a concretização muito limitada dos seus direitos. Na realidade, as comunidades rurais vivem sem bilhete de identidade, sem serviços sociais básicos ou com serviços extremamente precários, sem acesso a serviços comerciais regulares, sem água potável nem saneamento, sem energia eléctrica, sem transportes públicos (substituídos pelas kaleluias que em boa hora os chineses introduziram em Angola e que, apesar de extremamente desconfortáveis e perigosas, são quase a única solução de mobilidade ao seu alcance). A sua existência apenas é reconhecida pela utilidade para com o poder, como, por exemplo em momentos eleitorais. É isso que explica o desinteresse pela institucionalização das autarquias, pela possibilidade de virem a ser um instrumento que permitiria alguma autonomia às comunidades e uma certa perda de controlo por parte de todos os aparelhos controladores. É por isso que se insiste na prática das “ofertas” de bens materiais em momentos especiais, como eleições e visitas de renome, pois entende-se que o agradecimento gera dependência e dificulta ou impede a reclamação. Para nossa vergonha, Manuel Vinhas, o proprietário da Cuca, e outros (muito poucos) empresários portugueses cobravam insignificantes valores por refeições nos refeitórios das suas fábricas. Diziam que desse modo os trabalhadores assumiam o direito de poderem reclamar.
*Novo Jornal, 21.06.24