TRIBUTO A CARLOS FREITAS UM DOS MELHORES FILHOS DE BENGUELA

Morre, a cada dia, uma geração que se constituiu na alavanca de segurança de Angola no pós-independência, consentindo os maiores sacrifícios na construção da base na qual assenta o novo Estado. Uma geração que morre sem honra nem glória. Anónima. Esquecida. Apagada. Abandonada. Indigente, nalguns casos…

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Vítima de doença, faleceu na noite de 29 de Março, na Clínica Sagrada Esperança, em Luanda, Carlos Barrocas Fernando de Freitas, o “LITO”. O seu corpo foi transportado para a cidade do Lobito, num longo cortejo em sua homenagem prestada pela família, porque em vida, foi um homem de estrada. A pedido de amigos, foi-lhe rendido tributo na Vila de Porto Amboim. Foi nela onde se fixou antes mesmo da proclamação da independência, fez muitas e boas amizades e contraiu matrimónio. E os amigos, quiseram brindar-lhe também com uma reverência em que exaltaram os seus feitos naquela localidade.

O funeral decorreu no cemitério da Vila da Catumbela, no dia 3 de Abril, uma localidade que Carlos Freitas amou mais do que qualquer outra, entre as centenas que conheceu por esta nossa e sua Angola, guardará recordações desta figura que, incontornavelmente, tem o seu nome inscrito na história da Província de Benguela, embora a dimensão do seu engajamento e comprometimento tenha ultrapassado a geografia de Ombaka, porque deu a sua contribuição na construção dos alicerces de sustentação desta Angola no pós independência. Se mais não fez, não foi porque lhe faltou vontade, força anímica, comprometimento com a causa comum na edificação de uma Angola mais assertiva e disponível para todos os seus filhos. Foi, sobretudo, porque, a cada jornada em que renascia e se recompunha removendo pedregulhos colocados na sua vida, logo de seguida surgiam novas montanhas para desbravar. 

Mas o que era comum em Carlos Freitas, é que não perdia o seu foco nem esmorecia. Pequeno na sua estatura física, era, contudo, enorme nos seus ideais, e detentor de uma capacidade sui generis de idealizar e implementar projectos, sobretudo direcionados para as classes menos amparadas. Bastavam-lhe uma folha de papel, ou até mesmo uma guardanapo à mesa de um bar. Sacava de uma das suas duas inseparáveis canetas de tinta permanente, sempre presentes no bolso da camisa atulhada com o maço de cigarros e o isqueiro, e as ideias fluíam com uma leveza de génio, pouco comum, sobretudo, a grande capacidade de tratar os números, sem cábula.

Como foi que um homem doptado de tanta capacidade emocional, técnica, intelectual e de completo entrosamento com o seu povo e o seu país, se viu apeado, de forma abrupta, desse comboio que tem necessidade do empurrão de todos, para chegar com segurança à todas as estações, mas anda aos solavancos, dispensando maquinistas e fogueiros? 

Como é evidente, existem ainda muitos Carlos Freitas por esta Angola. E precisam de ser protegidos, porque são cada vez mais raros. Protegidos sim, e homenageados também, porque eles representam uma geração de ouro, que se entregou por completo à uma causa em que acreditaram. Porque essa geração, constituiu a alavanca de segurança de Angola no pós-independência. Porque consentiu os maiores sacríficos na construção da base na qual assenta o novo Estado. Uma geração que todos os dias morre, sem honra nem glória. Anónima. Esquecida. Apagada. Abandonada. Indigente nalguns casos…

São razões suficientes para justificar não só uma reflexão profunda de todos nós, porque as sociedades só se tornam fortes, capazes de se defender e desenvolver, quando têm capacidade de proteger os seus valores, os recursos humanos que geram, e permite a compartição destes no exercício pleno da soberania. Senão, é o sufoco, é a permanente dependência, é o suicídio, porque a cada quadro que morre a quem não se dá a oportunidade de contribuir para o bem comum, é como se estivéssemos a abrir ravinas e a distanciar-nos do verdadeiro foco, que é a elevação de Angola e dos seus filhos. De todos. 

Chegados até aqui, impõe-se a pergunta: 

Com os primeiros-ministros de Angola e de Portugal, Fernando da Piedade Dias dos Santos e Sócrates

Quem foi afinal Carlos Barrocas Fernando de Freitas, “o Lito”?

O próprio, descreveu-se como “uma pessoa que superava desafios reais”; que “nunca desistia, mesmo quando a vida o jogou na pior”! Aprendeu, dizia ele, “a ter cuidado e agora sei com quem posso falar sobre os meus problemas. Percebo que nem todos os que sorriem para mim são bons amigos. Tornei-me forte, o suficiente para lidar com tudo o que acontece comigo nesta vida e, como o sol, posso brilhar mesmo estando sozinho”.

Não sendo um homem de lamentações, nem de choques, nem de pedir para seu benefício, nem de incomodar, mas de acção, Carlos Freitas reconheceu, no entanto, que a sua “vida não era fácil” e que “teve de lutar muitas vezes”. Mas, considerou que “todos os fracassos do passado, foram apenas motivações” que o “tornaram mais corajoso e determinado”

“Escolhi sorrir apesar da minha dor”, dizia Carlos Freitas, e “nunca deixo que os problemas me derrubem. Os desafios que enfrentei tornaram-me mais forte e melhor. Como o sol, posso aquecer ou queimar, tudo depende de como você me trata”.

É esta grande figura, castiça para muitos com quem se relacionou, que com profunda dor e tristeza, foi sepultado na pacata Vila da Catumbela, da qual foi apaixonado. Este guerreiro, foi vencido pela doença que, provavelmente, se gostasse mesmo de incomodar, não o teria levado pelo menos agora. 

O seu percurso e feitos  

Carlos Freitas, de 74 anos, era filho de Carlos Fernando de Freitas, “Cowboy”, um ferroviário do CFB por inteiro, com comissões de serviço ao longo de vários postos da linha até ao Moxico, e de Maria da Glória Gonçalves Barrocas, também conhecida por “Cacapa”, no Caimbambo, onde se fixou para que os filhos pudessem estudar sem as constantes mudanças de escola à que era obrigada, acompanhando o marido nas constantes mudanças de residência.

Carlos Freitas nasceu no Cubal, aos 23 de Julho de 1950, e era o filho primogénito do casal, numa prole de 10 irmãos e irmãs. Mas passou boa parte da sua infância e juventude em Silva Porto, Bié, onde prosseguiu os seus estudos sob os cuidados da sua tia Matilde. Aí, despertou para a vida activa e logo veio ao de cima a sua veia criativa, deixando marcas em vários domínios da vida social juvenil, sobretudo, como fundador e integrante do agrupamento musical “Os nómadas”, em que actuava como baterista, animando os bailes que se realizavam na Gare.

Em 1971 entrou para o exército português, para cumprir serviço militar obrigatório, até 1973, mudando-se um ano depois, em 1974, para Porto Amboim, na vizinha província do Cuanza Sul, onde dirigiu a Congeral.  

Em 1976, aos 23 de Maio, em Porto Amboim, casou-se com Rosa Maria dos Santos Teixeira (de Freitas), “Rosinha”, uma relação de amor e de entrega mútua de 49 anos, gerando 5 filhos e por via destes, 15 netos e 2 bisnetos.

Carlos Freitas rodeado por netos. A sua dedicação a família foi uma das suas marcas da paz e harmonia

Já no fervor da independência e com participação nas forças de defesa e segurança, foi designado Coordenador da Comissão de Reestruturação do Sector das Pescas (equivalente a categoria de Delegado), na Província do Cuanza Sul, com sede em Porto Amboim. Em 1979, foi nomeado Director da Ermanal (Empresa de Manutenção Naval) em Benguela. Em 1982, foi nomeado Chefe de Departamento do Plano da Delegação Provincial das Pescas, em Benguela, para logo de seguida, fruto da competência demostrada, ascender ao cargo de Director Provincial do Plano do Governo Provincial de Benguela, função que acumulou com a sua elevação para o cargo de Vice-Governador para a Esfera Económica e Social. Período áureo, em que o Governo da Província de Benguela, pela sua dinâmica, foi tido ao nível do Conselho de Ministros, como um bom exemplo de qualidade e de competência no que produzia como informação.  

Carlos Freitas assumiu também nesse período, iniciado na gestão do Governador Paulo Teixeira Jorge, a Coordenação do PRUALB (Programa de Reabilitação Urbano e Ambiental do Lobito e Benguela), que se tornou na maior experiência que Benguela teve no pós-independência, no domínio do saneamento básico e de promoção da cultura da educação da defesa e da protecção do ambiente no seio da população da periferia, criando, inclusive, uma Escolinha, ao lado da Estufa, à entrada de Benguela, onde também se produziam mudas para incentivar a melhoria da arborização da faixa litoral. O financiamento foi do Banco Mundial, de quem recebeu um louvor, e como marcas desse desempenho, embora malcuidadas, estão ainda visíveis a vala do Coringe e as bacias de oxidação no Lobito, que no conjunto, foram tidas naquela altura, como o mais emblemático projecto financiado pelo Banco Mundial ao Sul do Sahara. 

De forma inteligente e visionária, Carlos Freitas aproveitou toda essa dinâmica de obras do PRUALB, para fazer o casamento entre a sociedade e a governação, promovendo e patrocinando inúmeras acções de carácter social, cultural e desportivo, criando o Prémio Jamba. 

Carlos Freitas foi também um dos fundadores do GACIREG, um Gabinete criado no quadro da conjugação de esforços para acções de desenvolvimento interprovincial, que congregava os governos de Benguela, do Huambo, do Cuanza Sul e da Huíla, e concertava a implementação de programas de carácter regional. Embora tivesse sido criado com a anuência das autoridades centrais, esta saudável experiência de relação regional acabou por ser abandonada, na sequência de intrigas promovidas por determinada entidade perfeitamente identificada, que em reunião realizada no Sumbe, acusou os promotores desta iniciativa de estarem a criar ambiente para a desagregação dessas províncias, do enquadramento territorial nacional. Instalou-se o medo entre os promotores, mas também a revolta, porque a intenção era nobre. Recorde-se que, numa dessas acções, Carlos Freitas e o Governador Dumilde Rangel quase perderam a vida, na sequência da queda do helicóptero que os transportava de regresso a Benguela, já ao entardecer, causando-lhes sequelas.

Almoço com o Embaixador Paul Hary, Presidente da Câmara do Comércio Angola/EUA, em Washington DC

Nesse período de múltiplas realizações, Carlos Freitas reuniu um grupo de trabalho e fundou a ARCA, uma ONG que nasceu do seu permanente comprometimento com causas sociais e populares, devido a sua forte ligação com o ambiente rural. O seu foco central, foi a reabilitação da Vila da Catumbela. E começou por criar o Centro de Formação Evokyio (que traduzido para o português, significa acrescentar, ou multiplicar), destinado, exclusivamente, à formação técnica e profissional de jovens, órfãos de guerra. Entendida que esse extracto juvenil deveria ser protegido e inserido nos diferentes processos de reconstrução nacional e de dignificação das famílias. Com a sua influência, cativou e conseguiu a contribuição das direcções do Caminho de Ferro de Benguela, do Porto Comercial do Lobito, da Sonangol e da Sonamet. Ou seja: Carlos Freitas conseguiu aglutinar a sociedade num projecto, distanciado da tendência habitual da dependência de organismos internacionais. Provou que era possível sim, interligar sinergias e implementar projectos com cariz local e nacional. E aqui ao lado, na Catumbela, nasceu a primeira obra construída depois da independência, com vocação para a formação técnica e profissional de jovens que, depois tinham emprego assegurado pelas entidades patrocinadores. Recebeu visitas quer do Chefe de Estado, mas também do Primeiro-Ministro de então e de várias entidades estrangeiras e nacionais.

Inserido no mesmo programa da ARCA, Carlos Freitas foi também o promotor e criador da primeira escola de formação da Mulher Camponesa. E aqui na Catumbela. O objectivo, era o de capacitar a mulher do campo com técnicas e conhecimentos para melhorar os seus rendimentos na prática da agricultura.

Mas Carlos Freitas não ficou por aí. Bateu outras portas que se abriram e conseguiu apoios para a recuperação da emblemática Capracinha, património da comunidade, que foi então transformada num centro de formação de corte e costura, que albergou inúmeras meninas e jovens de rua. Inexplicavelmente, tudo isso se degradou, porque faltaram apoios. Os que estavam assegurados foram retirados, e até quem tinha a obrigação de defender e manter tudo isso, acabou por ser determinante na sua degradação, e completa destruição. Foi com enorme tristeza que os membros da ARCA, e particularmente Carlos Freitas, então exonerado das suas funções, assistiram as cenas macabras desse horrível filme que praticamente destruiu o projecto.

Centro Geodésico de Angola(Camacupa). CitandoCarlos Freitas, ao centro, “a guerra, foi tão cruel, que até Cristo, foi mutilado”!

Foi ainda por sua iniciativa, que se deram os primeiros passos para a recuperação e exposição das máquinas que simbolizam a faina e o trabalho dos nossos antepassados na Açucareira da Catumbela. Retiradas do lixo, passaram a constituir peças históricas de exposição pública, para conhecimento da nossa história e da revolução industrial no século passado.

Atirado para o desemprego, de forma abrupta, com o manancial de conhecimentos de que era detentor, Carlos Freitas enveredou, depois, para o exercício da actividade privada no domínio da construção, instalando-se primeiro no Bocoio, onde construiu escolas públicas e achou que podia contribuir para o relançamento económico daquela localidade e depois em Luanda, num projecto empresarial com o irmão, Humberto de Freitas. 

Amava Angola, e todos os seus actos visavam, em primeira instância, o homem e a promoção do seu contributo no desenvolvimento económico e social. Na maior parte das vezes, foi mal-entendido ou pouco ouvido. Em parte, porque Angola foi invadida pela megalomania e pela preferência ao que vem de fora. O simples, praticável por ser de fácil execução e baixos custos, não abria portas, não convencia. E Carlos Freitas era, sobretudo, um homem de trato simples, de ideias e de projectos simples, destinados, particularmente, às populações de baixa renda, porque dominava a realidade nacional. Andou por Angola de lés a lés, por vales e montanhas, identificando acções: de abastecimento de água e do saneamento básico; de construção civil e de estradas; agricultura, pecuária, indústria e produção de energia, educação e formação técnica e profissional de jovens. 

Era um homem de paz e harmonia

Na vida pessoal, tinha um carácter avesso à choques ou litígios. Era, do alto a baixo, um cidadão comprometido que cultivava a paz e a harmonia, uma característica que servia de aglutinação da sua família. Aliás, o lar do Carlos Freitas teve sempre as portas abertas à todos, sem distinção. E nas suas incursões pelo interior, sobretudo no Centro Sul, de onde tem origem a árvore genealógica dos Freitas mas também dos Barrocas, uma das suas principais intervenções era pesquisar sempre se existia algum familiar.

É este homem, de estatura franzina sim, mas com ideais nobres de um gigante, de quem nos despedimos na Vila da Catumbela, cumprindo seu próprio desejo. 

Onde quer que esteja agora o nosso Carlos Freitas, que tenha o repouso merecido. O valor dos homens não é medido pelo grau da sua aparência, mas pela dimensão do seu legado. Logo, Carlos Freitas, merece sim que as lágrimas teimosas de tristeza, de dor e de saudade rolem pelos rostos dos seus familiares, sobretudo. Mas, Carlos Freitas merece, também, uma grande salva de palmas, porque como dizemos, “combateu um bom combate”

A morte é e só, outro estágio para quem como ele, deixa saudades e porque, pelo tamanho da sua obra, ganhou por mérito próprio, o estatuto de um dos melhores filhos de Benguela.

Bem-haja Carlos Freitas!

A família expressou a sua gratidão a todos os que, de forma directa e indirecta, de várias partes do mundo, por via das redes sociais, em Luanda, no Cuanza Sul e particularmente em Porto Amboim, na Província de Benguela e na Catumbela, os brindaram com a sua solidariedade. Ela serviu também, para conforto neste momento difícil. 

Bem-haja Carlos Freitas. A morte é e só, outro estágio para quem como tu, deixa saudades e porque, pelo tamanho da tua obra, ganhaste por mérito próprio, o estatuto de um dos melhores filhos de Benguela

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