A mentira é a principal questão de Angola. É assim, com base na mentira, que o País mexe e continua vivo. Organismos, instituições e empresas, tudo funciona. Todos cumprem a sua missão mentindo, em busca da verdade que faz sofrer.
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O Estado é uma instituição permanente e estável, que representa a soberania e o poder público, enquanto o homem que comanda o Estado (o governo) é uma entidade transitória e temporária, responsável por administrar o Estado e implementar políticas públicas. Os canhenhos assim o dizem. E é com esta instituição que os homens (o povo) convivem. Quer obedeçam ou não, às políticas que o Estado estabelece. Normalíssimos procedimentos das sociedades democráticas. É assim que sempre foi, é assim que será, certamente no futuro.
Alcides Sakala Simões é uma figura respeitável da UNITA. Desde há muito que admiro a sua postura. Desde o tempo em que na Chá de Caxinde tínhamos fama de corajosos. Foi nesse ambiente que acolhemos o acto de apresentação de um dos seus livros, já não me recordo do título. Estávamos a meio da primeira década do século XXI. Uma época em que a desconfiança reinava e que, até o lançamento de um livro do José Eduardo Agualusa, qualquer que fosse, era sempre suspeito e envolvido num clima que analisado nos dias de hoje, eram de atitudes absurdas, ridículas. Mas, enfim, era o tempo que vigorava!
Ouvi dizer que Alcides Sakala, com a elegância que o caracteriza, declinou o recebimento da medalha que lhe foi atribuída pelo Estado, a propósito da celebração dos 50 Anos da Independência de Angola. Teve, certamente, razões para o fazer e, ao que consta, explicou os motivos do seu gesto. Outras ilustres figuras, também combatentes pela libertação de Angola e que, para além da luta que travaram e os opuseram, também por variadas razões, não se apresentaram ao acto nem indicaram quem os representasse na cerimónia, não recebendo, por essa causa, a condecoração.
O facto leva-nos a reflectir. As razões de cada um são imponderáveis, só o próprio indivíduo sabe dos motivos que o levam a esta ou aquela atitude. Eu tive as minhas razões para me sentir extremamente honrado, muito orgulhoso quando, pela Televisão, vi a minha filha receber das mãos do nosso Chefe de Estado a medalha com que fui distinguido. Alguns dias passados, resultou das imagens da cerimónia, o meu pensamento fortalecido de que todo o esforço despendido pelos cabouqueiros, todo o que foi e está a ser oferecido à Pátria pelos que resistem e que virá a ser emprestado no futuro pelos nossos seguidores, valeu a pena.
É por isso tudo, caros amigos e estimados leitores, que me sinto com força e coragem para continuar escrevendo. Para anunciar que o meu romance “Viva Este Povo Maravilhoso”, há de ser publicado antes do final deste ano em que festejamos os 50 Anos da nossa Independência. É por esse motivo que vos ofereço, em modo de despedida, mais um excerto do meu trabalho:
“Estava-se em época dela. Quase um mês depois da crise declarada, lançavam-se os alarmes nos vários núcleos da sociedade, soltavam-se as notícias sobre a seca que matava. Chegavam por todas as vias e a todos os sítios. Incomodavam seriamente.
– A água não está a correr mais na torneira do quintal – a mocinha com fala acelerada, sacudiu a mãe já deitada, quase a adormecer.
– Como é que vamos cozinhar amanhã, se nem para a gente se lavar temos água – a mulher embrulhou-se nos panos e esboçou tímidos gestos, mostrando que estava difícil sair da cama. Falava baixinho, sem vontade.
– Deixa a tua mãe descansar – era a voz do pai a ralhar.
– Vamos fazer como, então? – O lamento da mocinha repetiu-se em tom desesperado.
Na penumbra do pequeno quarto de uma casa do subúrbio, desenhou-se a enorme figura do pai a levantar-se. Ai que chatice, essa falta de água na cidade e a mulher doente! Suspirou, murmurando para ele mesmo. Quem não sabe do problema da água que estamos com ele?
– Isto agora é de Cabinda ao Cunene. Em todos os sítios há falta de água – o homem continuou a falar baixinho, entredentes.
Ganhou coragem, afagou a barba crespa e cerrada e dispôs-se a sair. A preocupação do momento era só uma. Pôr água em casa. Pegou em dois tamboretes de plástico, um em cada uma das mãos fortes, e já na rua ainda escura, enquanto caminhava, viu-se a pensar novamente.
– Vejam só as contradições da nossa vida – o homem magicava surdamente.
Ainda não havia muito tempo, enormes chuvadas encharcavam a cidade, foram dias seguidos de água a cair. As cheias causaram males na cidade grande, um horror de lixo a boiar nas águas paradas. Caixas, latas, papéis velhos a flutuar. No interior, o problema era igual, assinalaram-se desgraças. Era fantástico certificar que com a escassez ou em abundância, a Natureza era pródiga em presentear o povo com as suas piores ofertas. Em todo o lado, na cidade como no campo, instalava-se o desassossego por virtude dessas prendas do ambiente. Como não se falar e não se implorar a Deus perante tanta inconveniência?
O povo precisa de água, está a transpirar muito e a toda a hora. Sofre de fraqueza. Suores frios nos corpos arrefecem os corações de desânimo. Ouvem-se as queixas e imploram-se milagres. Que venha a água então, seja em modo de chuva ou a correr por canos das “girafas”. Em banheiras, baldes ou bidons, com maior ou menor dificuldade.
Vigoravam certezas e verdades. Sem água suficiente, a vida está a fazer-se em Angola, como sempre se fez. Esquivando-se da desgraça, o povo vive, mas vive mentindo. É assim, com base na mentira, que o País mexe e continua vivo. Organismos, instituições e empresas, tudo funciona. Todos cumprem a sua missão mentindo, em busca da verdade que faz sofrer.
Até nas padarias, cuja liderança de mercado é disputada entre nacionais e estrangeiros, e fazem entrar a mentira no negócio do pão. Será verdade que é a guerra da Ucrânia que obstaculiza a produção?
– O que é que temos a ver com a guerra da Ucrânia? – Veloz como um relâmpago, a pergunta surgiu com impacto.
– Perguntem aos políticos se tem ou não. Mas eu não estou nem aí – outra observação veio com a mesma rapidez.
Não obstante essas bocas, o pão de todos os dias vai saindo. Haja dinheiro e o pão não falta. Mas nem sempre chega à maioria das mesas, porque há sítios que nem mesas existem. E onde há mesas, chegam sofrivelmente as magras coxas de frango exibidas na cesta básica.
A mentira é, pois, a principal questão de Angola. Continua a mentir-se muito nesta terra. Vejamos, só. Como é possível haver fome, se a agricultura já se desenvolve em grande no País? As fazendas e as lavras cobrem-se de verde e florescem. Milho, soja e trigo, batata, arroz, mandioca e feijão não faltam, está prometida fartura para breve. Leia-se o “Jornal de Angola” e veja-se o mar de bons presságios que enchem e transbordam as suas páginas. Quiabo e jimboa é como capim, exporta-se manga e banana e há fome no País? Como é isso então?
– Esperem só. No próximo cacimbo vão ver as coisas a mudar.
– Pois, ao som da velha cantiga, vai-se concretizar tudo, com certeza. Estamos a trabalhar, camaradas!
Estabelecem-se diálogos acalorados donde emergem velhos confrontos de ideias. Os que apoiam projectos governamentais defendem, e os que não vêm a economia a crescer e a vida a mudar, atacam.
– Os citrinos, o tomate e os frutos vermelhos estragam-se por falta de escoamento. É mentira ou verdade? De quem é a culpa?
– A culpa deve ser do povo. Não me lixem, camaradas.
– E a maka das vias terciárias, de quem é, quem as resolve? Essas estradas necessárias para movimentar os produtos, estão a fazer competição na demora com as auto-estradas que também estão teimosas, não querem espreitar sequer. Nem uma se vê como amostra, essa é a verdade! Mas não são a única verdade.
As discussões estendem-se para Sul, para as linhas férreas onde os comboios andam abarrotados de gente. Segundo se diz sem condições para viajar, até já se mostram os passageiros a urinar nas carruagens. Mentira? Não senhor. Isso é brincadeira ou quê?
Continua a falar-se de progresso, de hospitais de referência, de aeroportos modernos e metros de superfície, de teleféricos para transporte público, de camelos para turismo, uns sonhos absurdos para confundir a realidade do País doente, faminto e cansado. Há dinheiro para essas extravagâncias que acabam por não representar nada do essencial e necessário agora. Na verdade, ele existe, como existe gente disposta a desbaratá-lo, a seu belo prazer e para seu proveito. Existe dinheiro mas nem um pouco dele se destina a programas para educar o povo mal-educado. Não há gestos nesse sentido, como não há olhos que vejam que é difícil transformar hábitos duma população despreparada, sem trabalho, distante da escola e próxima do lixo e das doenças, em cidadãos capazes de utilizar convenientemente autocarros, comboios, metros e outros meios. Essa é a grande verdade!”
Com os meus cumprimentos, despeço-me. Abraços para os leitores, família, camaradas e companheiros de luta. Até ao próximo domingo, à hora do matabicho.
Lisboa, 1 de Junho de 2025