Rebobinar este filme dos 50 anos de Independência é muito pesado, porque depois, quando se olha para a frente, vê-se a pobreza e a miséria que crescem todos os dias, os salários mais baixos de toda a lusofonia, as piores estatísticas do continente em tudo, ou quase tudo, das estradas à limpeza das cidades, na saúde, na educação, na economia, onde se diz que o principal capital deste país não é o petróleo mas, o humano, mas pouco se faz por ele…
ZOOM DA TUNDAVALA

Com o aproximar da data em que se assinalarão os cinquenta anos da proclamação da independência, em Luanda, haverá certamente a tendência de rebobinar o filme. O filme, não, os filmes, porque cada um, à sua maneira, ou onde estivesse, foi sendo parte, foi sendo actor ou simplesmente figurante do filme destes 50 anos. Muitos, quando nasceram, já o filme corria e, do que tinha ficado para trás, só foram ouvindo falar. Muitos não sabem o que foram os intermináveis anos de recolher obrigatório, nem sequer o que era ter de ficar em sentido, com o nariz virado para um lado qualquer porque algures, às 8 da manhã, se estava a hastear a bandeira e, levar um tiro vindo de qualquer podia ser o prémio pelo desrespeito a este símbolo nacional. Nem sabem o que era aquilo das EMPAS, dos cartões de racionamento, das lojas especiais, nem nada disso. Nem dos abusos cometidos nas rusgas que se faziam em que, ser apanhado com mais de uma lata de leite em casa, podia dar cadeia… Nem sabem que, naquele tempo, filho do povo estudava na mesma escola pública que filho de ministro.
Por isso este filme ser uma mescla de vários, muitos filmes, porque cada um o viveu de maneira diferente e, assim, também as histórias e as vivências se passaram para os mais novos de maneiras diferentes. Histórias nem sempre bem contadas, mal contadas, ou contadas de acordo com os interesses. Histórias alteradas, trocadas, distorcidas, truncadas. Mas todas elas fazendo parte deste longo filme que tem 50 anos.
E, neste rebobinar de fitas surgirão, com a maior naturalidade, histórias contraditórias que será preciso reflectir se valerá a pena manter a versão que interessa, a que convém, ou se a verdadeira, a real, a que cada um viveu.
Rebobinar o filme, será o mesmo que reviver o passado, rever cenas e situações que hoje podem gerar dúvidas e dar lugar a outras incertezas. Mas é, sobretudo, um exame, que levará os diferentes actores, principalmente os que viveram os momentos iniciais da nação, que se quer venha a ser também país, a balancear o que aconteceu, porque aconteceu, se podia ter sido melhor ou diferente. É legítimo o questionamento: valeu a pena?
Rebobinar o filme, será o mesmo que colocar em confronto o que se esperava que fosse com o que é. Será o mesmo, muitas vezes, que tentar comparar o incomparável, e constatar que a realidade actual não é a mesma que é pintada na ficção dos discursos, muitos ditos lá fora para impressionar ou para fazer crer. Comparar belos discursos e falatórios, falados em momentos mais ou menos importantes, todos recheados de bom parlapié com promessas não cumpridas.
Rebobinar o filme, é ver como falharam as políticas, as estratégias, em relação à criança, afinal o propalado “futuro da nação” nos falatórios habituais de Junho desde há cinquenta anos. Criança que continua a estudar em salas de aula improvisadas debaixo de árvores, sentada em calhaus ou latas, à qual foram prometidos livros gratuitos afinal vendidos nos mercados ao ar livre, ou cuja merenda escolar, transformada em refeições, alimenta, sim, os bolsos de alguns, e nunca chegaram a muitas barriguinhas famintas. Criança que até tem de “fugir” para “a casa do vizinho” onde vai esmolando nas ruas como faz sua própria casa: “tio me dá lá só um cem”, coisa que envergonha o vizinho mas não incomoda o pai. Criança que tem direitos, respaldados em convenções internacionais, que são violados todos os dias.
Rebobinar o filme, é ver como falharam as políticas para a geração de emprego porque o exército de desempregados não pára de engrossar as suas fileiras com mais membros e, os jovens, andam por aí, sem rumo, embevecidos por um sonho construído de promessas quinquenais e alimentados por uma esperança que se espera nunca venha a morrer. À espera de poder vislumbrar luz ao fundo de um túnel de fantasia.
Rebobinar o filme, é lembrar “Saúde para todos no ano 2000” numa terra onde a cólera está a matar à toa e se combate com quatro barras de sabão; onde a malária nunca mais vai desaparecer, mas se querem cirurgias robóticas, que nem os que assim querem as farão, porque vão continuar a preferir ir à “terra do colono”, é mais seguro, cá, nem eles confiam. É ver o triste cenário de dezenas, centenas de pessoas pernoitando ao relento em frente de grandes hospitais, porque o parente está internado e pode ser preciso comprar qualquer medicamento à pressa porque o hospital não tem.
Rebobinar o filme, é voltar a ver as mesmas cenas, repetidas vezes sem conta, de mulheres e crianças cartando a prometida “água para todos”, com baldes e bacias à cabeça, numa terra em que abundam grandes rios de curso permanente, mas as torneiras estão secas. Ou ficar a saber que, cinquenta anos depois da proclamada independência, metade da população que vive nas cidades e arredores não tem acesso à energia eléctrica e, nas zonas rurais, então, o desastre é mesmo desastroso, mas, ainda assim, se promete diversificar as fontes de obtenção de divisas com a exportação de energia.
Rebobinar o filme, é lembrar os velhos tempos dos “cooperantes” vindos de todas as latitudes, com base em acordos bilaterais de cooperação, internacionalistas, dizia-se, todos eles muito interessados em “ajudar” a jovem nação a erguer-se, cada um com os seus interesses, com a sua filosofia mas, no fim de contas, cada um mais interessado em ganhar o seu e tirar o pé daqui rapidamente. E foram-se embora, deixando isto escangalhado. Depois voltaram, vestidos de “investidores estrangeiros”. Ainda não se sabe de que forma deixarão isto quando voltarem a partir.
Ao rebobinar este filme, certamente há um marco importante: 1991, e o fim do monopartidarismo, com a viragem para o que hoje mais se assemelha a uma monocracia, ou seja, um monopartidarismo fardado de democracia. Afinal só existem vários partidos. Foi a altura que também deu lugar ao surgimento de uma classe empresarial oriunda e com fortes raízes na classe política dominante, a economia tinha virado para o mercado e, o Estado, que era dono de tudo, tudo passou para a mão de privados, com muitos privilégios e esquemas à mistura. E se deu lugar a um dito “capitalismo primitivo” com o “boom” no petróleo e na corrupção. Hoje, apesar das pregações de fortalecimento da classe empresarial nacional, e se propalar a “melhoria do ambiente de negócios”, ela sufoca no turbilhão de interesses inconfessados, num ambiente em que parece ser mais favorável ser estrangeiro. Onde os interesses estrangeiros têm mais importância que os nacionais. Onde quando encerra o negócio de um nacional, ninguém se preocupa ou quer saber. Olha, mais um que se foi, dirá alguém. Algum estrangeiro o irá substituir.
Rebobinando o filme, é visível o recuo nos direitos e liberdades que só estão na lei para democratizar o contexto, porque o direito e a liberdade de reunião, de manifestação e até de expressão, estão no papel mas, verdade é crime, ter opinião diferente é cometer delito e não ser patriota, manifestações, nem que seja para reivindicar melhores salários, para lutar pelos direitos da mulher, ou por melhores escolas, apesar de ninguém ter dito ou estar escrito, está “proibido” ou, até ver, não é permitido, sempre reprimido, porque nunca autorizado. Até discutir uma lei é estar “fora da lei”! Onde se diz abertamente “quem não pensa como eu tem de ser expurgado”. Sente-se o cheiro do medo que paira no ar!
Rebobinar este filme é muito pesado, porque depois, quando se olha para a frente, vê-se a pobreza e a miséria que crescem todos os dias, os salários mais baixos de toda a lusofonia, as piores estatísticas do continente em tudo, ou quase tudo, das estradas à limpeza das cidades, na saúde, na educação, na economia, onde se diz que o principal capital deste país não é o petróleo mas, o humano, mas pouco se faz por ele.
Rebobinar o filme é rever sonhos, expectativas, esperanças, e ter de concluir, já sem lágrimas nos olhos que, 50 anos depois, DESCONSEGUIMOS!
DESCONSEGUIMOS, já não há sonhos, nem tempo para sonhar!
