O CALCANHAR DE AQUILES

JAcQUEs TOU AQUI!  

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Na mitologia grega, diz-se que Aquiles, homem de guerra, ficou célebre por um acaso. Fiquei a saber agora de alguns pormenores da sua história. Daqueles aspectos que lhe deram fama. Vejamos,

Os seus calcanhares não foram protegidos pelo poder das águas do rio Estige, um rio subterrâneo que separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Era Aquiles ainda criança, quando sua mãe o segurou pelos calcanhares e o mergulhou nas águas sagradas do Estige, símbolo de mistério e transformação. Para lhe dar o poder da invulnerabilidade. Porém, com o seu gesto desprevenido, a mãe impediu que as benditas águas tocassem essas partes sensíveis do corpo do futuro guerreiro. Depois, fez-se a lenda. Numa grande batalha, Aquiles morreu de uma flechada que atingiu precisamente o calcanhar do seu pé direito. Que raio de azar! Mas foi assim, dizem hoje os sábios, que a crença se encarregou de dar fama ao poder das águas do Estige.

Há uns quinze dias e por causa do calcanhar, dei por mim, inesperadamente, a envolver-me nos meandros dessas questões mitológicas nascidas há séculos. Não! Recusei a hipótese. Estas makas antigas não podem, de maneira nenhuma, ser associadas aos factos que ocorrem nos dias de hoje. As semelhanças não passam de meras coincidências? Claro que não. Principalmente estas da mitologia grega, que se distanciam temporalmente de nós por séculos de vida. Já nasci em tempo moderno, portanto, distante dos mistérios da mitologia. Não sou guerreiro, sou apenas teimoso, e não fui atingido por nenhuma flecha. Pelo que sei, os meus calcanhares não foram abençoados por águas de nenhum rio com poderes especiais, enquanto era menino. A primeira vez que me aventurei em águas de rio, foi em Calulo, no mítico Cambuco e eu já tinha deixado de ser criança. 

Mas, o certo é que não deixei de pensar no tal de Aquiles e na sua pouca sorte, quando há uns dias, como dizia, o meu calcanhar esquerdo deu de si. Chatice, disse eu, ao sentir uma picada incomodativa. Era o que me faltava! Precisamente neste momento em que, qual Teresa Baptista, a ilustre personagem de Jorge Amado, ando cansado de tantas guerras!

Não me escuso de ir aos factos. Sem coincidências míticas pelo meio, a verdade é que, a brincar, a brincar, já levo comigo duas marcas. Não num, mas nos dois calcanhares. Afasto-me das coincidências e, vade retro, não fui atingido por nenhuma seta que me possa levar à morte. Há apenas coisas que aconteceram ontem e acontecem hoje. Umas ferindo mais que outras. Algumas retirando-nos até certas resistências.

Já em forçados trabalhos de fisioterapia, recordei o meu primeiro contacto com Aquiles. A rotura total do tendão do pé direito, num jogo de futebol entre trabalhadores da Ensa e do Gamek, corria o distante mês de Agosto de 1988. Gesto mais ousado, pé direito pendurado, desarticulado, sensação terrível. Poucos dias depois estava a ser operado em Lisboa, no Hospital da Fidelidade, seguradora a que eu estava profissional e sentimentalmente ligado. A Casa de Saúde da Fidelidade situava-se para os lados do Chiado. Tive alta dois ou três dias depois de na famosa zona, uns grandes armazéns, Grandella, se bem me lembro, terem sido atingidos por um grande incêndio que entrou para a história dos grandes dramas da capital portuguesa.

Passaram-se quase 37 anos, desde então. O meu tendão, não o do Aquiles, ganhou força e elasticidade e do acidente restou apenas a feia cicatriz que me acompanha desde então. Nunca mais joguei futebol. Entretanto, a Hidroeléctrica de Capanda, objecto maior da aproximação da Ensa à Gamek (Gabinete de Aproveitamento do Médio Kwanza) na época do meu acidente, foi inaugurada e funciona desde 2004, portanto, há mais de vinte anos. Não sei se abastece convenientemente o país. Como o tempo passou!

Este relembrar de cenas leva-me inopinadamente a um outro passado. Em que as lesões, falo de entorses, dos inchaços e até das tendinites que ganhávamos nos nossos jogos, nos tempos inesquecíveis dos trumunus em que entravam o Palmeiras e o Fortaleza, o Botafogo e os Renegados, o Vasco da Gama da Cabuta e a Associação Quissongo, eram curadas rudimentarmente com pachos de água quente. Levavam, naturalmente, imenso tempo a curar. Mas foi assim que a saudosa avó Ana tratou de algumas que fui ganhando.

Bom. Enquanto aguardo a recuperação do meu calcanhar, que não é o do Aquiles, despeço-me dos meus leitores, parentes e amigos. Espero dar melhores notícias, no próximo domingo, à hora do matabicho. 

Lisboa, 13 de Abril de 2025

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