Num contexto continental onde muitas produções artísticas ainda são vistas através das lentes do exotismo ou do folclore, a CDC Angola demonstra que a dança contemporânea africana pode – e deve – participar activamente dos grandes debates sobre identidade, tecnologia e humanidade.
“UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA NA ERA DIGITAL”
TIAGO MAIA (TEXTO)
RUI TAVARES (FOTOS)
A Companhia de Dança Contemporânea de Angola (CDC Angola) realizou dez apresentações da obra O Vendedor de Inutilidades na Sky Gallery, entre os dias 8 e 18 de Maio, confirmando a sua posição como um dos colectivos artísticos angolanos mais produtivos e mais relevantes do continente africano. Com a estreia de Andy Rodriguez como coreógrafo, o espetáculo mergulha nas complexas relações entre humanidade e tecnologia, oferecendo uma experiência que transcende a mera apresentação de dança para se tornar um potente exercício de reflexão colectiva.
A Linguagem Corporal como Narrativa
Os bailarinos da CDC Angola demonstraram um domínio técnico e expressivo notável, traduzindo em movimento as angústias da contemporaneidade. Cada gesto, cada pausacalculada, cada explosão controlada de energia compunha um vocabulário corporalsofisticado que desafia a percepção do espectador. A coreografia exige dos intérpretes não apenas precisão técnica, mas uma capacidade exclusiva de transmitir conceitos abstractos através do corpo.
Particularmente impressionante foi a maneira como os artistas trabalharam os contrastes entre movimento e imobilidade; entre acção e suspensão. Em certos momentos, a quietude incómoda dos corpos em cena criou uma tensão quase palpável, desafiando a ideia ocidentalizada de que a dança africana deve ser, necessariamente, exuberante e ritmada.
Como as tardes intermináveis nas aldeias, onde o tempo se mede pelo movimento do sol e não pelo tique-taque de relógios, a peça sugere essa sabedoria africana do olhar atento. Cada pausa dos bailarinos remete o espectador para aqueles momentos em que a vida parece parar sob a árvore grande, onde o importante não é correr, mas simplesmente estar e perceber.

Tecnologia e Desumanização: Um Debate Universal
O Vendedor de Inutilidades aborda com perspicácia o paradoxo da era digital: quanto mais conectados, mais isolados nos tornamos. A peça não se limita a criticar superficialmente o uso de dispositivos tecnológicos, mas explora como essas ferramentas reconfiguram a nossa percepção de identidade e os nossos relacionamentos.
Através de movimentos que alternam entre a fluidez orgânica do gesto natural e a rigidez mecânica da máquina, os bailarinos encarnam a crise existencial do indivíduo contemporâneo, dividido entre o seu eu físico e as suas múltiplas personas digitais. O título da obra – sugestivo e provocador – questiona diretamente o valor que atribuímos às inúmeras “inutilidades” que consomem o nosso tempo e atenção, na era dos likes e dos filtros digitais.
A CDC ANGOLA como Farol Cultural
Com 33 anos de existência, e sob a direcção artística de Ana Clara Guerra Marques, a CDC Angola estabeleceu-se não apenas como referência da dança angolana, mas como importante voz no panorama artístico global. Membro do Conselho Internacional da Dança da UNESCO e detentora do Prémio Nacional de Cultura e Artes, a companhia tem o mérito de desenvolver uma estética que dialoga com as grandes questões contemporâneas sem perder as suas raízes africanas.
Num contexto continental onde muitas produções artísticas ainda são vistas através das lentes do exotismo ou do folclore, a CDC Angola demonstra que a dança contemporânea africana pode – e deve – participar activamente dos grandes debates sobre identidade, tecnologia e humanidade. A sua obra transcende fronteiras geográficas e culturais,oferecendo uma perspectiva única sobre desafios que são comuns a todas as sociedades modernas.

Excelência na Produção
Estando eu em Angola há cerca de três anos, esta é a segunda vez que assisto aosespectáculos desta companhia que comparo, pelo seu profissionalismo e qualidade artística e técnica a muitas companhias existentes noutras partes do mundo. Estas apresentações (vi esta peça duas vezes), deram a perceber um colectivo com uma unidade estética notável. A videografia de Alexis Anastasiou criou camadas visuais que ampliaram o impacto do tema, enquanto o desenho de luz reforçou o lado da presença e da ausência através de ambientes quentes e frios.
O figurino neutro, composto por fatos negros, serviu como extensão visual dos corpos dos bailarinos. A produção executiva de Jorge António garantiu que todos estes elementosconvergissem harmoniosamente, resultando numa experiência imersiva e coerente.
Agradou-me igualmente o programa com grafismo e fotos de Rui Tavares e o facto de existir este importante instrumento de apresentação da peça e da companhia.
Um Apelo à Valorização
É paradoxal que uma companhia com tamanha relevância cultural ainda precise lutar porsustentabilidade financeira. Enquanto países ao redor do mundo investem nas suasinstituições culturais como forma de soft power, a CDC Angola continua a depender deapoios pontuais para manter seu trabalho de excelência.
O Vendedor de Inutilidades não é um simples espetáculo; é mais uma demonstração dopotencial artístico angolano e africano. Esta capacidade de articular questões universaisatravés de uma linguagem corporal única merece reconhecimento e apoio institucionalconsistente. Num momento em que a identidade cultural se torna cada vez mais importante no cenário global, Angola tem na CDC Angola um activo cultural de valor inestimável.
O silêncio do único jornal cultural do país e o quase nenhum destaque dado por outros meios de comunicação apenas reforçam a triste verdade: Angola ainda não tem plena noção da joiaque tem em mãos. Que a história, um dia, venha a contar com orgulho e merecido destaque o que foi ter uma companhia tão visionária e profissional em tempos de visível iliteracia cultural.
Se houvesse classificação eu daria: ★★★★★ (5/5) por esta obra que desafia, provoca e emociona, confirmando a CDC Angola como referência incontornável da dança contemporânea africana.
Luanda, aos 19 de Maio de 2025
