27 DE MAIO… OU MATAR EM “NOME DO POVO”

O Dr. Elisário tinha uma companheira e viviam com quatro filhos. O partido decidiu que a companheira também devia ser morta e foi morta! Quando se pôs a questão de quão cruel seria deixar as crianças – o mais velho tinha 11 anos – sozinhas, matando os pais, numa terra longínqua, uma vez que todos eram de Luanda, o partido respondeu apenas que aquilo não era problema do partido! E de facto as crianças ficaram sozinhas.

POR PAULO INGLÊS

Todos os anos, o dia 27 de Maio é sempre como que uma viagem às catacumbas! Aliás, todo o mês! Para o partido é só mais um dia… falamos todos os anos das vítimas do 27 de Maio, claro que são vítimas, mas, cada vez mais, convenço-me que foram e são uns heróis! Eles é que tinham razão. Li as memórias do general Dino Motrosse, de resto um acto de autoflagelação e masoquismo, em que ele, no fundo, justifica, mais palavras e menos palavras, porque é que aqueles heróis deviam ser mortos… Na página 299 do volume 2 das suas memórias, Dino Motrosse escreve “sempre que podiam, os fraccionistas, nas suas dissertações políticas, alegavam junto das populações que eram os melhores defensores dos seus interesses e dos seus ideais… que eram […] políticos sérios e convictos, quando, na verdade, o que lhes ia na alma tinha mais a ver com vingança e ódio”. Vendo com distância e o que se passa hoje, eles é que eram os defensores do povo!

A capacidade de Dino Motrosse e de seus companheiros de perscrutarem o que ia na alma dos outros, os supostos adversários – convertidos em inimigos – é insólita! Mas Dino Matrosse vai mais longe: “o desejo do governo [do MPLA] do país, que acabava de ascender à sua Independência, concorria para o esforço de utilizar e transformar os recursos naturais em proveito do bem-estar das populações o [suposto] golpe de Estado comprometeria todo um plano de desenvolvimento que se projectava para uma Angola nova”. Lendo as memórias do antigo Ministro da Segurança do Estado com a distância de 48 anos desde aqueles trágicos acontecimentos, soa a diabólico! No fundo, a morte daquelas pessoas significaria, para os carrascos da altura, o desenvolvimento de Angola. As memórias foram escritas em 2021, parece que o general, em 2021 ainda pensava assim!

Nisso lembrei-me do Elisário, o médico angolano que o partido mandou matar de forma cruel, em Maio de 1977. Elisário dos Passos Vieira Lopes, os amigos tratavam-no por “Passinho”, era o irmão mais velho do Dr. Filomeno Vieira Lopes, com a mesma ternura, classe e elegância. Como todos os angolanos da sua geração, desde muito jovem meteu-se na política – era a vida – um legado que já vinha da família, das mais antigas de Luanda, cujos pais, avós e bisavós, enfrentaram o colonialismo, na sua fase mais cruel, com dignidade e algum estoicismo. Nunca sucumbiram, como se nota no Dr. Filomeno com o actual regime: nunca ceder! Elisário matriculou-se na Faculdade de Medicina em Luanda, mas a PIDE na saia do seu encalço! Saiu para Lisboa e continuou lá os estudos na Faculdade Medicina. Foi interno no Hospital de São José e fez lá a especialidade. Foi um dos alunos mais brilhantes. Até hoje o seu nome continua no quadro de honra daquele hospital. Ficou lá a trabalhar! Até que, com Angola independente, decidiu voltar e dar o seu contributo, literalmente, para o desenvolvimento do país! E mais, escolheu, mais tarde, ir para o Luena, capital da Província do Moxico, o mais a leste das províncias e das mais distantes de Luanda. Exercia e servia como médico e como delegado da Saúde e médico. Havia lá médicos cubanos, como um tal Dr. Martinez (mais tarde exilado em Miami). Era abnegado, competente e humano, dizia-se dele. 

Até que chegou o 27 de Maio. O partido nessa altura escolhia e decidia quem devia ser preso, torturado e morto, ou apenas preso torturado. O partido entendeu, nessa altura que o Dr. Elisário devia ser morto. Entendeu também que seria numa sexta-feira, a seguir ao almoço. Ainda se falou sobre o que levaria a ceifar a vida de um jovem, médico, competente e numa zona que não havia médicos. Não era a voz da razão e nem a do coração que imperava no partido. Eram dezassete indivíduos, jovens, promissores, idealistas e inocentes colocados a poucos metros do pelotão de fuzilamento. O Dr. Martinez assistiu aquele acto sádico desoladamente; um silêncio triste dos cemitérios enchia o ambiente. O lugar era ermo e melancólico, com vegetação de fim da estiagem, baixa e alourada. Apenas um rapaz, que por acaso se chamava Nito – talvez só por isso tenha sido morto, irrompeu aos gritos pedindo clemência; nunca foi apanágio do partido. Nunca mais se esqueceu daquele grito, confessou o Dr. Martinez.  

Havia também uma jovem senhora, a Cristina, que o partido achou que também devia ser morta. Acontece que a Cristina, que era assistente do Dr. Martinez no hospital do Luena esperava um bebé. “Isso não impede o fuzilamento” – terá rosnado o homem do partido; além da Cristina, havia também um enfermeiro, o David, a quem o Dr. Martinez oferecera um livro sobre Pediatria e que trabalhava nas urgências; o partido decidira também que devia ser fuzilado. O Dr. Elisário tinha uma companheira e viviam com quatro filhos. O partido decidiu que a companheira também devia ser morta e foi morta! Quando se pôs a questão de quão cruel seria deixar as crianças – o mais velho tinha 11 anos – sozinhas, matando os pais, numa terra longínqua, uma vez que todos eram de Luanda, o partido respondeu apenas que aquilo não era problema do partido! E de facto as crianças ficaram sozinhas até que uma tia das crianças, indo de Luanda para o Luena, as resgatou. 

Depois do fuzilamento, foram enterrados numa vala comum no lugar de fuzilamento. Um buldózer, conduzido por um cubano, Renato Rojas, “an experienced cuban builder”, segundo escreve Lara Pawson, no seu livro, “In the Name of the People: Angola’s Forgotten Massacre” soterrou os corpos! Covardemente. Terá havida certeza de que estavam mortos? Nunca saberemos. O Dr. Martinez e o seu colega, assinaram certidões de óbito, previamente preenchidas pelo partido, atestando que a causa da morte tinha sido “acidente de viação”… Para as 17 pessoas! 

O Dr. Elisário podia ter escolhido ficar em Lisboa, ou em Luanda! Escolheu estar ao serviço dos outros e da nação. Mas o partido decidiu que ele e os outros não deviam existir em nome do desenvolvimento e “em Nome do Povo”. Mas eles é que estavam certos… 

É da memória deles, que devemos reimaginar uma Angola curada e para todos! Mas eles é que estavam certos!

*In Facebook 27.05.2025

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