VEGETANDO POR AÍ…
Os órgãos que defendem o poder em Angola e que reprimem o exercício das nossas liberdades e direitos fundamentais, também não têm mãos a medir. Batem, prendem e matam que se farta. Não há respeito pela vida. E nas nossas próximas eleições, será que não veremos rodar um filme de terror semelhante ao de Moçambique? Os resultados podem ser influenciados pelo balanço da governação da Daniel Chapo.

Envolto por uma onda de revolta, na sequência da manipulação dos resultados contestados das eleições realizadas em Outubro de 2024, Daniel Chapo foi mesmo investido (no dia 15, quarta-feira) como o 5.º Presidente da República de Moçambique.
Acompanhei a cerimónia pela televisão, e fiquei com a percepção de que Daniel Chapo rasgou o programa do partido pelo qual foi ‘eleito’, a FRELIMO, atirou-o para o cesto do lixo, e adoptou o discurso e as propostas do seu oponente, Venâncio Mondlane em prol do interesse nacional. E nesse discurso, acabou também por emitir e assinar um certificado de incompetência de todo o tamanho ao presidente cessante, Filipe Jacinto Nyusi, que deixou a presidência daquele país com um rasto de cerca de 300 mortos (os contabilizados), para além das centenas de feridos, agredidos, detidos e desaparecidos. Como é óbvio, vai demorar algum tempo ainda, mas, Nyusi será responsabilizado pela história, que se encarregará do seu julgamento. Dele e de todos os que têm sido igualmente beneficiários do sistema que mantém a FRELIMO e a sua elite no poder, transformados em donos e senhores de tudo e de todos, tal como cá, com o MPLA, enquanto a maioria da população vive na miséria.
Tal como lá, com Daniel Chapo, também por cá, com João Lourenço, já vi um filme parecido com esse empossamento. O presidente substituto, também com o suporte da máquina institucional, recursos e meios públicos, foi ‘eleito’ e jurou que faria e seria diferente. Encheu-nos de esperança. E até mostrou alguma diferença na fase inicial. Mas por curto período. Percebe-se agora, que forçava uma imagem de marketing socializante, que não se enquadra na moldura do seu verdadeiro (mau)carácter, egocentrista, ditatorial, de poucos amigos, que não sendo bom para a própria família e amigos, logicamente, não pode ser na relação com o Estado e com as instituições. Escolheram-no, ao que se diz entre pares, por ser calado e discreto, como se isso fosse condição bastante para dirigir uma nação per si problemática. Esqueceram-se do adágio, que dá conta que “os calados partem mais pratos que os que falam muito”. E ele já partiu a louça toda. Rebentou com o país.
O disfarce de reformador não tardou a cair, e confortado com o fato de poderes herdado do seu chefe, deu-nos a volta, vindo ao de cima o seu verdadeiro “eu”, que deu lugar a um chefe (não se confunda com líder) arrogante, recalcado, mal assessorado ou pouco dado a ouvir a assessoria (veja-se o caso do indulto à Zenu dos Santos, um caso que não teve condenação). Num segundo acto, de todo macabro, usando a sua postura silenciosa e do exercício gentio do poder, ajudou a empurrar o seu chefe para a morte, começando a tortura pela sua parte psicológica mais sensível, os seus filhos, perseguindo-os, bem como alguns colaboradores servidores do Estado (como os que tem na sua entourage), numa jogada selectiva, doseada nos laboratórios da maldade do sistema, que não lhe concedeu a oportunidade sequer de ser ouvido pelos órgãos de Justiça. Tornaram-nos responsáveis de proa de um projecto de falência do Estado, bem mais abrangente e com centena e meia de participantes activos, ilibando-se e ilibando o MPLA, para a seguir transformá-lo num instrumento que utiliza para se eternizar no poder. Um procedimento, pior até, do que aquele que no seu empossamento jurou não seguir.
Por tudo isso e por arrasto, o MPLA foi perdendo popularidade e ter sido considerado vencedor das eleições em 2022 com maioria qualificada, foi para boa parte dos angolanos, como engolir um grande pepino inteiro com jindungo. E graças a elevação política dos ‘perdedores’, Angola não estremeceu com o vibrar do mesmo ‘grito de Ipiranga’ bradado pelos moçambicanos, que, sem dúvida, foram mais audazes. Mas, hoje, há mais angolanos com saudades daquele que foi presidente, apesar dos erros cometidos e da pobreza deixada, do que satisfação com o modelo de gestão e empatia com o presidente substituto, com todas as ‘virtudes’ que a “camarilha que o acompanha” atribui. Porque entre o primeiro e o segundo mandato, por ego, o projecto do presidente substituto primou pela destruição da imagem do seu antecessor, e de transformar-se no novo ‘Deus’ angolano, no insubstituível, no idolatrado, no líder incontestado. Ao ponto de pensar que merece um terceiro mandato, violando (ou remendando) a Constituição, ou de se julgar também no direito de escolher o seu substituto.
Como todos os ditadores e maus presidentes referenciados pela história (africana em particular), quer continuar a manejar as rédeas do poder. Porque não está seguro; porque fez mais mal que bem à nação e aos governados, e agora, desgastado física e mentalmente, tem medo do retorno; porque entrou triunfante, de peito aberto, mas está agora enrascado, não sabe como sair e tornou-se ele próprio refém do sistema.
Mas até nisso, os moçambicanos deram um bom exemplo. Ao contrário do MPLA, foi no interior da FRELIMO que se disse a Filipe Jacinto Nyusi, que não há mais, que a sua gestão não atendia os desafios nem desse partido, nem de Moçambique. E os (verdadeiros) resultados das eleições reclamados por Venâncio Mondlane e a revolta que se seguiu, demonstraram o desastre que foi a sua governação. O alarme da derrota que se avizinhava (não fosse o eventual arranjo) serviu de alerta. Em 10 anos, agravou o passivo herdado dos seus antecessores, dois dos quais ainda vivos, que acompanharam cúmplices o filme de terror sem iniciativas para auxiliar a resolução desse conflito, que resulta também da inação deles, da cumplicidade enquanto criadores, promotores e beneficiários do sistema.
O tempo dirá, se embora num contexto completamente diferente do angolano, Daniel Chapo, daqui a algum tempo, também não dará a volta aos nossos irmãos moçambicanos. O tempo dirá. Mas, o que começa já a ser certeza é que, apesar da elevada contestação, não é expectável que Daniel Chapo seja deposto, que renunciará, ou que se submeterá a qualquer entendimento resultante de eventual concertação com a oposição ou com Venâncio Mondlane, particularmente, que o obrigue a abdicar ou a dividir o poder de que foi investido. O provável é que decorram ainda manifestações esporádicas, que, no entanto, não terão impacto e que Venâncio Mondlane tenha o seu espaço de intervenção mais reduzido e não possa contar com qualquer suporte da comunidade internacional ou regional.
Contudo, e como referiu no seu discurso no empossamento, Daniel Chapo está agora obrigado a dar sinais urgentes que conduzam à harmonização dos milhões de moçambicanos, que se revoltaram contra a continuidade da FRELIMO no exercício do poder, porque nada mais será igual ao passado de Nyusi. Quanto mais demorar nesse acerto, maior será o desgaste e a pressão sobre o seu governo e sobre si mesmo. Porque o povo, finalmente, percebeu que é o verdadeiro dono do poder, e assumiu que, distanciado dos partidos, pode ser a principal força galvanizadora da mudança. O que é triste, no entanto, lá como cá, é ver efectivos da polícia, do exército e de outros órgãos de segurança, a mando das suas chefias, matarem o seu próprio povo, aquele que juraram defender, quando esse povo clama por direitos fundamentais. Tal como cá, também se divorciaram do povo, para fazer a defesa de uma elite política que se autodepravou, quando deveriam direccionar a sua pressão sobre ela. E como angolano, sou forçado a reconhecer que, não necessitando de seguir a mesma via de luta contra a nossa ditadura, que igualmente se autodepravou, estamos muito distantes ainda dessa determinação dos moçambicanos. Não é porque a nossa ditadura seja melhor que a ditadura deles. Apenas porque persiste o medo por efeito de várias matanças, a maior das quais, no 27 de Maio de 1977. Mas o perigo da explosão persiste e pode acontecer, sim, a qualquer momento, porque o ‘combustível’ anda por aí derramado em cada esquina, e qualquer decisão impopular do governo, pode ser suficiente para acender o rastilho e…
Mas voltando ao caso moçambicano, o primeiro desafio de Daniel Chapo era a constituição e posse do novo governo consensual e já foi realizado. Não integra figuras com responsabilidade directa na gestão corrupta de Nyusi/FRELIMO, nem na onda de violência que se generalizou. Esse distanciamento de Daniel Chapo da militância da FRELIMO não deve ter sido uma decisão fácil, mas foi aplaudida por vários sectores da sociedade moçambicana. E ainda bem…
Incontornável, no entanto, é a realização de um encontro com Venâncio Mondlane, como dois irmãos que querem o bem comum para os moçambicanos. Ainda que nas vestes de presidente sem identidade institucional, conta com o apoio de parte considerável do povo moçambicano. Tornou-se, por direito, também porta-estandarte dos desfavorecidos, dos excluídos das políticas de governação da FRELIMO ao longo de 50 anos. Logo, qualquer concertação para o apaziguamento da sociedade moçambicana e o retorno à normalidade, passa necessariamente por Venâncio Mondlane.
Por outro lado, Daniel Chapo deve ter em conta que, agora, a luta dos excluídos já não é contra a eventual fraude eleitoral, nem contra a FRELIMO ou contra Filipe Nyusi, mas contra o Presidente da República que, eleito ou não, está investido com os símbolos da República. Que não siga, o exemplo do que aconteceu por cá, com o ego exacerbado do Presidente da República.
Também não o elegemos, mas sente-se de tal modo confortado com o poder que, inclusive no diálogo com a sociedade e os diferentes actores políticos e da economia, é selectivo. Fala, chama ou contacta quando e como quer, e não no quadro de uma hierarquia determinada pelos resultados eleitorais tornados oficiais, que estabelecem direitos por via de representatividade sufragada e presente na Assembleia Nacional.
O “gostar de ser presidente” não será boa estratégia (ou opção) para Daniel Chapo. Nós, angolanos, sabemos bem o que isso custa, porque pagamos um preço demasiado alto com a exclusão e com a usurpação de tudo a favor de uma só parte, o MPLA. O poder de “ser Presidente da República e camarada presidente” não deve ser visto como “absolutismo” e pior ainda, se misturado com os apetites dominantes de um partido. A FRELIMO lá, como o MPLA cá, apesar das realidades diferentes, são necessárias para a reconciliação e a democratização dos dois estados. Mas, os seus dirigentes e militantes devem tomar consciência que se tornaram numa componente tóxica que condiciona a estabilidade, o progresso social e económico, porque não perceberam que a melhor forma de governar é distribuir a riqueza. Com responsabilidade, com inclusão e a participação de todos; com comprometimento, nas tarefas de elevação do estado, em vez de à serventia e à militância partidária lambebotista, que sequestrou e transformou as nossas sociedades em unidades escravas e subservientes de elites corruptas, obcecadas pelo poder, que só querem poder, que de tão cegas e insaciáveis, a troco do seu bem-estar, até hipotecam ou vendem a nossa soberania.
Daniel Chapo apelou à paz e à concórdia, e deve começar já a partir pedra para abrir estradas de aproximação e apaziguamento com todos, impedindo o prosseguimento dos actos de violência e de selvajaria contra o seu próprio povo. Nunca fizeram, nem fazem sentido, particularmente agora, que serviços bem identificados, continuem a comandar raptos e assassinatos de militantes dos partidos da oposição. Porque a FRELIMO pode receber a mesma resposta e isso não será bom para nenhuma das partes.
Concluindo, o que ocorre em Moçambique, pode ter efeito dominó em Angola. Acredito que, se os períodos eleitorais coincidissem, provavelmente, o filme de terror de cá não seria rodado de forma diferente. Ou até seria, mas por força do maior número de mortos, feridos, presos e desaparecidos. Porque os órgãos que defendem o poder em Angola e que reprimem o exercício das nossas liberdades, também não têm mãos a medir no seu zelo. Batem, prendem e matam que se farta. Não há respeito pela vida. Vale tudo para que o MPLA e o Presidente ou o camarada presidente continuem no poder.
Será que em 2027 não veremos rodar em Angola, um filme de terror semelhante ao de Moçambique? Não temos indicadores contrários. Mas acreditamos que as nossas eleições poderão receber influência (boa ou má) dos bons (ou maus) resultados da governação de Daniel Chapo. Se conseguir terminar com a influência negativa da FRELIMO no funcionamento do Estado e das instituições, já será um grande passo e, provavelmente aqui, o delfim substituto que nos for imposto, apesar da vitória pré-formatada, não terá a vida facilitada se não fizer o copy paste. E João Lourenço poderá terminar os seus dias enclausurado na armadilha do partido que agora lhe pertence, com a família em fuga para as Seychelles.
É isso que não gostaríamos de assistir. Mas, infelizmente, é esse fim que o próprio escolheu, e é para lá que se encaminha.
Enfim…