Após verem chumbadas as reclamações contra a exclusão de 7.341 nomes das listas definitivas para os exames do Concurso Público de ingresso no Sistema Nacional de Saúde, dezenas de concorrentes, maioritariamente enfermeiros, marcharam até a sede do Governo Provincial na quinta-feira (22) onde, com “pompa e circunstância”, decorria a cerimónia de tomada de posse do novo elenco governativo.
Enquanto o governador de Benguela, segurando uma taça de champanhe, brindava com 28 responsáveis, entre reconduzidos e estreantes no aparelho governativo local, do lado de fora do Museu Nacional de Arqueologia, onde decorreu o evento, se ouvia as vozes dos reclamantes que se manifestavam contra alegadas irregularidades no Concurso Público de acesso a 415 vagas e, nomeadamente, para a carreira médica, assistente social, apoio hospitalar, técnicos de diagnóstico e terapêutica e de enfermagem.
Apanhadas em contramão, as várias autoridades “barricadas no Museu”, entre as quais o governador Luís Nunes e o comandante provincial da Polícia Nacional, levaram alguns minutos para perceber que a onda de protestos, em nome dos 7.431 candidatos afastados das provas do concurso da Saúde, havia chegado à porta do edifício-sede do Governo.
O Concurso Público, que opõe enfermeiros e a Direcção Provincial da Saúde em Benguela, contou com a participação de 28.596 inscritos, sendo que 21.615 foram seleccionados para os testes escritos, já em curso, enquanto 7.431 foram barrados, por alegadamente não terem conseguido preencher todos os requisitos. Uma versão contrariada pelos candidatos que denunciam que as constantes falhas no sistema de cadastramento online do Ministério da Saúde (MINSA) ditaram a rejeição dos seus processos.
No entanto, assim que o comissário Aristófanes dos Santos, mais alta patente responsável da Polícia Nacional em Benguela, tomou conhecimento da subida de tom dos protestos que inquietavam alguns funcionários do Governo Provincial e transeuntes, acelerou os passos para fora, arregaçou as mangas, pegou no telefone e fez o óbvio.
E não tardou a reacção. Equipas da PIR (Polícia de Intervenção Rápida) apareceram em peso no parque de estacionamento que constitui a ténue fronteira entre a Sede do Governo Provincial e o agora transfigurado Museu Nacional de Arqueologia, e também no jardim defronte ao Gabinete Provincial da Saúde, onde os manifestantes com vários cartazes na mão e muito nervosismo à flor da pele gritavam, numa derradeira tentativa do “tudo ou nada”.
De repente…, o rimbombar de uma, duas, três, quatro e talvez cinco granadas de gás lacrimogéneo dispersou os contestatários. Um cenário sem precedentes, quase de “terror”, o vivido na tarde do dia 22, nas proximidades do Palácio do Governo de Benguela e naquele largo.
Minutos depois, foi reposta a ordem e tranquilidade públicas e o governador provincial, empossados e convidados, sob escolta policial, puderam sair do Museu Nacional de Arqueologia, como quem respirasse de alívio.
Mas, os efeitos nocivos das bombas disparadas pela polícia afectaram os ocupantes de residências nas proximidades dos locais, com o pânico – por conta do ar irrespirável – a assombrar alunos, professores e educadores infantis em duas escolas e uma creche, incluindo automobilistas e motoqueiros também “apanhados” de surpresa pela fúria da intervenção das forças policiais para reposição da ordem pública.
Com os holofotes apontados para o director do Gabinete Provincial da Saúde, António Manuel Cabinda, cuja demissão era uma das reivindicações, os profissionais de saúde ergueram suas vozes: “Queremos os nossos direitos”; “Queremos fazer prova”. Algo a que ninguém pôde ficar indiferente na nave central daquela casa museológica de Benguela, à praia Morena, hoje, transformada em um auditório de luxo.
Em causa, segundo os manifestantes, visivelmente desesperados com o apagão da luz verde para o emprego, estão os custos de cerca de 30 mil kwanzas arcados com a inserção de documentos no portal online do MINSA.
Duas semanas depois de se concentrarem no jardim, a poucos metros do portão do Gabinete Provincial de Saúde, onde foram dispersados várias vezes pela polícia chamada ao local, na quinta-feira os enfermeiros transferiram o alegórico “muro das lamentações” para o Governo Provincial, na esperança de ver resolvida o drama do desemprego que lhes tira o pão.
Depois de dias de hesitação e “blackout” à imprensa, finalmente, o director do Gabinete Provincial da Saúde veio a terreiro, quiçá para evitar que a corda rebentasse.
Numa conferência de imprensa, como que para acalmar os ânimos exaltados, que só ultrapassaram as fronteiras do bom senso porque o diálogo foi sendo adiado, não obstante os avisos à “navegação”, António Manuel Cabinda apontou o dedo aos jovens recém-formados na área de enfermagem pelos dissabores que estão a viver.
Com um monte de processos de candidatos sobre a mesa, António Manuel Cabinda, ainda antes de ser reconduzido no cargo, deu o exemplo de candidatos que só apresentaram uma folha branca, “sem mais qualquer documento”, e naturalmente, nestas condições, não podiam ser admitidos à prova.
“Candidatos com nível médio estavam a candidatar-se para vagas de médicos. Não é possível…”, explicou. E acrescentou que, mesmo na fase de reclamação, que foi de 25 a 29 de Julho deste ano, houve candidatos que voltaram a cometer os mesmos erros, isto é, insuficiência de documentos.
Outra falha imputada aos candidatos reclamantes, teve a ver com a tentativa de se inscreverem já fora do prazo, isto porque a carteira profissional foi emitida pela Ordem dos Enfermeiros apenas este mês, o que implica estar extemporâneo.
“O concurso não pode parar”, disse. E defendeu que ao seu pelouro chegaram mais de mil reclamações. Prova de que o sector não ignorou os candidatos insatisfeitos. Pelo contrário, como referiu, “… já sentamos com alguns candidatos. Fomos ao portal (online responsável pelo cadastramento) e realmente reconheceram que falharam no processo de inscrição”.
TRANSPARÊNCIA QUESTIONADA. Embora não tivesse afastado a possibilidade de eventuais “erros humanos”, o director António Manuel Cabinda refutou com veemência as acusações dos manifestantes, afirmando que há transparência no concurso e fiabilidade no sistema de cadastramento online, que pode ser alvo de auditoria.
Joaquina Bel, que se tornou símbolo dos protestos dos enfermeiros em Benguela, não poupa as suas críticas ao Ministério da Saúde, considerando injusta a exclusão de milhares de jovens que queriam apenas lutar por uma vaga no mercado de trabalho.
“Na primeira fase, entregamos todos os documentos com sucesso. Só que depois saiu uma lista provisória com falta de alguns documentos, como a carteira profissional”, revela Joaquina.
Perante este cenário, a jovem suspeita que o problema possa estar na mesma página online da Saúde, ao mesmo tempo que se queixa de ter sido excluída injustamente, por causa da terceira dose da vacina da Covid-19.
“Mas eu já tenho a terceira dose e inseri o documento. Mesmo assim, o meu nome não saiu na última lista”, referiu, frisando que, em Luanda, os candidatos na mesma situação que ela terão sido atendidos. E questiona: “Será que Angola é só Luanda?” E por essa razão, pede justificação, mas disseram que não vão fazer nada, porque tudo depende de Luanda.
Quem também participou dos protestos é a finalista do curso de Enfermagem Geral Lúcia Mendes. Garante ser detentora de uma carteira profissional com o carimbo da Ordem dos Enfermeiros, daí não compreender a razão por que a sua inscrição foi rejeitada no site do Ministério da Saúde.
“No acto de reclamação, enviei a cópia da carteira profissional no mesmo portal. Depois, entreguei no Governo Provincial de Benguela, mas o sistema continua a excluir o meu nome”, reclama Lúcia, enquanto é abraçada por uma colega, em jeito de consolação. Segundo ela, há duas semanas que os enfermeiros procuram uma resposta.
“Não estamos a entender se o problema é do MINSA ou do Governo Provincial. Não sabemos…”, lamenta, recusando a ideia de que os enfermeiros estivessem a criar arruaças na via pública. “A luta é pelo emprego”, acentuou.
Com a voz embargada pela emoção, e lágrimas nos olhos, Belmiro Visayo tenta, pela segunda vez, a sorte de participar no Concurso Público da Saúde. Na primeira vez, em 2019, o jovem foi atraiçoado pela nota negativa e viu adiado o sonho de entrar na Saúde. Mas agora, nem sequer fez o exame. E justifica que a culpa é do sistema de cadastramento que não reconhece o recibo com o número da Ordem dos Enfermeiros.
“Sinto-me indignado”, confessa. E avança: “Há colegas em Luanda que, nas mesmas condições que eu (ainda esperam pela carteira profissional) foram admitidos apenas com recibo comprovativo da inscrição na Ordem”.
Por outro lado, há quem considere que há dualidade de critério por parte das autoridades, principalmente no caso da idade limite de ingresso na rede de saúde pública. É o caso da manifestante Lurdes Helena Cachimbele, 36 anos, que alega ter sido excluída pelo factor idade, tal como duas outras colegas, com 28 e 32 anos.
“Vimos a ficha de uma colega com 49 anos que vai fazer a prova”, conta ela, pensando que isso indicia falta de transparência no concurso.
Uma vez mais, Lúcia Mendes, uma das candidatas mais novas do grupo, queixa-se da brutalidade da polícia, que travou duas vezes a procissão dos candidatos que se dirigiam às instalações da representação da TV Zimbo para que fossem ouvidos.
“A Polícia usou gás lacrimogéneo. Fomos empurradas e levaram os nossos cartazes. Os bebés nas costas das colegas passaram mal”, conta com indignação. E deu conta de alguns casos de desmaio, após inalaçãodo gás lacrimogéneo, pelo que foram assistidas por ambulâncias.
Apesar do aparato policial, os candidatos prometem continuar os protestos, num braço-de-ferro sem fim à vista, estando na forja uma vigília defronte ao Gabinete Provincial da Saúde.
Caso para dizer que os próximos dias prometem capítulos agridoces desta novela, que mesmo sem a cobertura mediática das duas principais estações televisivas, a Zimbo e TPA, vai ganhando audiência nas ruas da cidade das Acácias Rubras.
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