Eu sou daqueles angolanos que desde a infância e a juventude sonhou e ainda hoje continua a sonhar com uma Angola culta. E jamais vou deixar de sonhar. O que significa para mim uma Angola culta? Uma Angola culta seria uma Angola cheia de livros à venda, livros em bibliotecas escolares e bibliotecas de bairro em cada província. Uma Angola culta seria uma Angola com jornais, revistas a circularem em cada recanto deste país. Uma Angola culta seria uma Angola com professores cultos. Uma Angola culta seria uma Angola onde os dirigentes tivessem mais palavras de afecto para os governados e menos palavrões contra a juventude. Uma Angola culta seria uma Angola onde a prioridade não fosse a Defesa e Segurança, mas a Educação. Uma Angola culta seria uma Angola onde o livro que eu escrevo fosse editado numa tiragem de 10 mil exemplares e não de apenas mil.
Uma Angola culta seria uma Angola onde o Governo tivesse a capacidade de planificar a economia e o sector social em função do crescimento demográfico de 5 milhões de angolanos a cada década.
PLANIFICAR O FUTURO
Planificar e prever o futuro são duas constantes administrativas sem as quais resulta, por exemplo, o estado caótico da capital do país, sem infra-estruturas de mobilidade, uma cidade erguida sob o princípio popular do tunga ngó.
Se a cada década nascem cinco milhões de pessoas em Angola, isso significa que a cada dez anos é preciso planificar a construção de, pelo menos, quantas escolas novas? Há os alunos que passam, em cinco anos, para outro nível de ensino, portanto, alguns desses 5 milhões nascidos hoje, vão entrar para as mesmas escolas que já existem, mas haverá uma parte deles que precisarão de novas escolas. E quem diz escolas, diz pão com manteiga, leite, chá, e deve dizer, seguramente, LIVROS e professores cultos.
Dos 34 milhões de angolanos que somos hoje, 10 milhões serão pessoas ligadas à actividade do intelecto, pessoas que têm algum pacto com o feitiço da leitura, desde estudantes do ensino de base ao universitário, docentes, escritores, jornalistas, profissionais liberais e outros intelectuais e gestores da coisa pública que se têm de actualizar constantemente e têm de ler, ainda que seja o jornal. Portanto, para uma população de potenciais leitores calculada em 10 milhões, o país tem de colocar na rua, a cada ano, pelo menos 100 mil livros e mais de 500 mil exemplares – para não dizer mesmo mais de um milhão – de publicações periódicas (jornais, revistas, livros de banda desenhada, panfletos publicitários e outros produtos próprios do mercado editorial), visto que um livro ou uma publicação periódica podem ser lidos por 100 pessoas durante um ano. Pergunto: será que o INE possui dados sobre a produção anual de livros em Angola? Temos noção da necessidade destes bens culturais na planificação económica?
Visto que o Estado não cuida deste sector como devia, nós, os escritores, estamos em perigo de extinção. Porquê? Simplesmente, porque não há escritores sem leitores. E estando os leitores em perigo de extinção, também nós sairemos de cena, o que é realmente muito avassalador. É assim como um terramoto educacional. Ele existe uma hiperligação fundamental entre a Literatura, os livros, e o sistema de Educação. Os escritores autóctones do tempo colonial, como Cordeiro da Matta e Assis Júnior só surgiram quando o ensino em Angola começou a abrir as portas aos naturais da terra. Então, se em Angola somos independentes, o que se passa no nosso país, para um livro não poder sair a público com uma tiragem com mais de mil exemplares? Isto na prosa. Se for poesia, 400 exemplares que não se vendem em 5 anos.
Com base nesta última tiragem comparativamente ao universo potencial de leitores (10 milhões), o cálculo de leitores activos no nosso país rondará os 0,004 por cento. Com esta base percentual inexpressiva, como é que poderemos sonhar com o desenvolvimento, se um país se faz com homens e com livros, como bem disse o escritor brasileiro Monteiro Lobato? Com apenas 400 leitores activos no país, como é possível sequer falar em construção da democracia? Não se constrói nenhuma democracia sem, pelo menos, um décimo da população de leitores activos. TAMBÉM NÃO SE CONSTRÓI DEMOCRACIA ALGUMA, enquanto houver pessoas analfabetas.
LITERATURA E EDUCAÇÃO
Como referi atrás, existe uma hiperligação fundamental entre a Literatura, os livros, e o sistema de Educação.
Se atentarmos para o currículo escolar do Ensino de Base, constataremos que um aluno que conclui os seis anos de escolaridade terá lido 30 manuais de diversas disciplinas, com um total aproximado de 3 mil páginas e 500 mil palavras.
Desses manuais, os de Língua Portuguesa, adoptados em 2018, têm no final de cada texto, o respectivo vocabulário. O da primeira classe tem 112 páginas, incluindo as fichas de trabalho. Inclui também um conto infantil O Sapo e o Ovo. O da segunda classe tem 118 páginas, com canções, curiosidades e provérbios. O da terceira classe, com 160 páginas, tem um poema de Manuel Rui, Os Meninos do Huambo e um conto de Cremilda de Lima, O Peito Celeste. O da quarta classe, com 117 páginas, tem um conto de Gabriela Antunes, Kibala, o Rei Leão. O da 5ª classe tem 95 páginas, com 11 contos, da página 44 à 55, e inclui sete poemas da página 65 à 74. Já o da 6ª classe, o maior de todos, com 184 páginas, insere 9 poemas (pág. 114 a 128); 16 contos populares (pág. 126 a 147) e um Bloco Gramatical, da página 152 até à página 181.
Portanto, temos, para o Ensino de Base, apenas na disciplina de Língua Portuguesa, um total de 786 páginas de literatura diversa, incluindo as normas da língua.
Esta análise dos manuais vem provar que a literatura não está ausente da escola angolana, como se propala aos quatro ventos, dizendo certas pessoas que os nossos alunos não dominam a língua por falta de literatura infantil na escola. Isso é uma falácia. É bom recordar que, no tempo colonial, toda a instrução primária era ministrada sem nenhum Plano Nacional de Leitura, sem qualquer livro de literatura infantil agregado ao plano curricular. Apenas havia os manuais de leitura. E ainda hoje se diz que a quarta classe do colono dava mais proficiência linguística que o ensino médio dos nossos dias. A literatura de ficção só era agregada a partir do quinto ano do liceu.
Uma notícia publicada no jornal Vanguarda, a 28 de Novembro de 2019, cita o representante residente do Banco Mundial em Angola, Olivier Lambert, dizendo que o potencial médio de um quadro nascido em Angola é de 30%.
Lambert explicou que a qualidade do Ensino em Angola é tão baixa que “um aluno que frequenta a escola durante 8 anos, em termos práticos, é como só tivesse frequentado dois ou três anos e os outros 5 anos contam apenas como presença”.
Onde está a raiz deste problema? A raiz deste problema está na forma como se explora os 30 manuais escolares, com as 30 mil páginas e as cerca de 500 mil palavras, ou, para sermos muito mais estrictos, ainda que sejam as 700 páginas somente dos manuais de LP.
Os manuais de Língua Portuguesa, base para a compreensão das outras disciplinas, não estão a ser explorados como deviam nas nossas escolas. Este fenómeno decorre da débil formação dos professores e da escandalosa ausência ou ineficácia da inspecção escolar. A formação académica dos pedagogos, infelizmente, não dá ênfase à leitura e esta é uma situação contraditória, pois segundo o escritor brasileiro Machado de Assis “não se contrata um instrutor de natação que não sabe nadar, no entanto, as salas de aula estão repletas de pessoas que, apesar de não lerem, tentam ensinar”.
O caminho para se chegar ao ponto óptimo da literacia no seio dos alunos passa, incontornavelmente, pela literacia literária dos professores. Pugnar pela criação de hábitos de leitura no seio da camada infantil e infanto-juvenil, não resulta do simples esforço de colocar livros nas bibliotecas escolares e municipais.
LEI DO ETERNO RETORNO
Estamos a viver hoje em quase todo o mundo o epifenómeno da desleitura. A desleitura provém de outro fenómeno criador do Homo Zappiens fixado na Internet, mas também da colisão entre a Declaração Universal dos Direitos Humanos – com a sua fé jurídica na dignidade da pessoa – e o contraponto a essa fé por parte da sociedade humana e da geo-política mundial, após o colonialismo.
Observa-se a lei do eterno retorno, proclamada por Frederico Nietzsche, com o seu padrão cíclico de certas recorrências, como as eras na roda do tempo, Kalachakra do budismo tântrico, expressando a ideia de um ciclo interminável de existência e conhecimento, Ouroboros grego mordendo a própria cauda, besouro rolando esterco da mitologia egípcia.
Observa-se o retorno à oralidade. Ao grito das cavernas da era primitiva. Às pinturas rupestres agora nas paredes das cidades. À espontaneidade do Spoken Word.
Perante esse epifenómeno que pode ter várias leituras, nós, angolanos, agravamos ainda mais este descompasso. Não temos no mercado livros acessíveis ao bolso da juventude. Não temos bibliotecas nas escolas do Ensino de Base. E, o mais grave, temos professores que não lêem o que deviam, tanto por falta de livros acessíveis no mercado, quanto por uma deficiente formação que exclui a leitura e devido ao agravado preço dos livros. Porém, o mais grave em todo este panorama de incultura e iliteracia geral é que guardamos na alma uma promessa que vinha da guerrilha, do poema de António Jacinto, o Monangambé que não sabia ler nem escrever, uma promessa dos nacionalistas de alfabetizar os manangambés do tempo colonial e acabar de vez com esse anátema no nosso país. Hoje, paradoxo dos paradoxos, não é já alfabetização que nos preocupa, é a própria criança que está na escola, mas é analfabeta, porque não aprende. Por essa razão, temos alunos no ensino superior que apresentam níveis de iliteracia do ensino de base.
Nesta conjuntura cultural de iliteracia disfuncional, um escritor se perguntará: porque é que vou escrever e apresentar um livro, se não vou ser lido?
É que, para além de toda a problemática que atrás levantei, existe outro handicap à leitura em Angola, que resulta do viés das assimetrias regionais. Angola ficou reduzida a Luanda, a sua capital. O livro – mesmo em pequenas tiragens – não chega ao Kwando Kwbango, ao Moxico, talvez nem a Ndalatando ou Cabinda. Temos este problema, num país que se vangloria de querer construir um só povo e uma só nação. O país precisa urgentemente de uma distribuidora do livro de Cabinda ao Cunene. É urgente equacionar o problema do comércio do livro, por forma a torna-lo eficiente e utilitário.
Mas o Estado tem, obrigatoriamente, de subvencionar o preço do livro, tal como já o fez uma vez através do projecto dos 11 clássicos, em que o livro custava 500 kz. Se o livro custar mais de 3 mil kwanzas, o custo de dez litros de gasolina, é difícil ver professores (que reclamam do parco salário) ou alunos (que não têm sequer duzentos kz para comprar o chamado bolinho ou a banana-pão assada para matarem a fome) comprarem livros.
OS NOSSOS VIZINHOS
Os angolanos não podem nem devem continuar a viver como uma ilha cultural e literária da África Ocidental. Devíamos realizar todos os anos um Festival Regional de Literatura, que concentre autores e obras dos cinco vizinhos: Angola, RDC, Congo Brazzaville, Zâmbia e Namíbia. Eles falam e escrevem em inglês e francês? Não faz mal. Sentemo-nos com eles, sonhemos alto e realizemos o sonho de pôr as nossas crianças a aprenderem o inglês e o francês na escola primária, bem como as crianças deles a aprenderem o português também desde a escola primária. Façamos traduções recíprocas de algumas obras representativas. Como último recurso, façamos então como o Ruanda e adoptemos o inglês como língua co-oficial, a par do português. Um país pode ter mais de uma ou duas línguas oficiais. Por isso é que já propus que também o Umbundo passasse a ser uma língua co-oficial, para nos situarmos na alma da africanidade. Mas não podemos viver isolados, com os olhos voltados para Portugal e o Brasil. Temos de conversar com os nossos irmãos vizinhos e nos ofertarmos prendas chamadas livros.