CAPÍTULO 4
As makas principais mantinham-se pendentes, perspectivando-se futuro difícil para as populações e para as gerações vindouras. Como sempre, calavam-se as vozes, deixando os corações resignados com tudo.
Já havia uma certa noção de pudor por essa altura. Diferenciava-se bem zuáta de zuála. Alguma roupa ia cobrindo os corpos negros e as suas intimidades. Passou a ser normal verem-se grupos de nga-muhatu a exibirem tanga feita de peles e cordas, mais tarde de panos garridos. Muitas delas carregavam crianças às costas, obrigando a gestos difíceis para amamentá-las ao desatarem em berraria.
Seguindo a velha tradição, as mulheres reuniam-se em tempo certo nos serões de ajuntamento. Tanto na bwala de Katambi como nas demais da tribo. Sempre à volta de crepitantes fogueiras acesas à noite. Cercavam em roda grande o enorme mbondu, secular embondeiro, símbolo representativo da força do regime. Normalmente plantado em amplo local, principal praça de todas as bwala.
Os masungirilu eram espectáculo belo e quase perfeito. O fogo a subir em aspirais de fagulhas incandescentes, impressionava. Emprestava brilho especial aos saraus que acolhiam rezas, danças, coros e cânticos espirituosos. Mas não se comparavam aos rituais dos ngana-a‘riala. Normalmente abrilhantados por sons de muitos ngoma fabricados com pele de pakása, era bonito vê-los surrados com extraordinário vigor. Homens talhados para lutas e outros trabalhos duros, encarregavam-se dessa tarefa musical. Viam-se nos seus rostos as mesmas marcas da vontade de se atirarem aos ocupantes. Submissos, sabiam enfrentar no silêncio o inimigo poderoso. Com imensa coragem defendiam a vida do povo.
Alguns conseguiam esquivar-se do flagelo da escravatura. Os que escapavam às levas ajudavam no aconselhamento da população. Serviços de limpeza da bwala; preparação de novos caçadores e pescadores; ensino da produção de fogo e acarretamento de água dos rios; formação de tratadores de doenças malignas e de mestres de confecção dos milongo próprios para as curas. Ainda, a aprendizagem do diálogo com os bichos dos muxitu.
As mulheres sem homem aprontavam-se também para lutas, inclusive as de corpo-a-corpo. Diferentes das muhatu unicamente voltadas para a culinária, eram aptas a acender nas masuika, fogo de cozinhar matete, mélu, kizáka e outras iguarias especiais. Havia as peritas na arte de sunguinar com o homem escolhido e de ter liberdade para fazer malandro; também as que se distinguiam em aprimorar técnicas do amiganço; havia aulas sobre regras de convivência com as rivais, donas do mesmo homem, e ainda formas de apoiar parturientes. Enfim, era um manancial de assuntos sociais a dominar as agendas dos tais serões.
Contavam-se por muitos os problemas geridos pelas autoridades wakangu. Alguns considerados de enorme responsabilidade, caso da problemática das hienas. Tinha-se estendido, naturalmente, com todos os seus mistérios, aos vários núcleos populacionais da nação.
Ficou lendária a imagem de Bebeka a ser alimentada pela hiena gatuna, aos finais de tarde, num plateau bem referenciado na grandiosa savana wakangu.
Naturalmente havia outros problemas na bwala principal. Um dos mais preocupantes era o da eterna rivalidade que opunha, em aceso confronto político, Tendungumba a Katambi, o Sôba Maior, o Chefe Supremo dos povos kangu. Uma maka recheada de contornos difíceis que, para cúmulo, colocava em evidência a postura pouco digna de Titundu, o filho varão do dissidente.
O Ngana contestatário não deixava de se preocupar com as atitudes do primogénito, as suas makavinham de longe. Lembra-se que Tendungumba era o primeiro-conselheiro e líder dos kakiáma, um grupo da mesma ascendência do de Katambi, porém, por razões da natureza africana, divergente da linha ideológica da instável organização que os acolhia na Grande Família. Enquanto titular de um cargo importante, não o soube honrar em momentos cruciais, afastando-se dos ideais sagrados dos kangu, para defender posições unilaterais dos nzuakahima.
O gesto de rebeldia de Tendungumba, ausente na primeira reunião do caso dos kiáma intrusos, não estava esquecido. As exigências do filho, as reclamações a fazerem eco em toda a bwala, o incontrolado entusiasmo de ser chefe a engrossar o problema, mantinham-se vivos.
– U akambe o sonhi – troçou-se vivamente dele e do seu comportamento indecoroso. Da falta de vergonha mostrada.
Os abusos do candidato que já não era propriamente jovem e era também pai de um número elevado de filhos, não se restringiam aos da ambição pelo poder. Eram conhecidos e comentados outros atrevimentos de Titundu. Atitudes que feriam princípios da educação kangu, susceptíveis de manchar a reputação e o prestígio da tribo. Fez notícia o assédio a Ngalaxa, a mulher de Kapólo, muzangala caído em desgraça por não possuir arte e engenho de engravidar a esposa. Declaradamente mbâku, indisponível e impotente, o homem sofreu calado a desdita, e suportou durante larga temporada, o escárnio das pessoas, por virtude das investidas de Titundu.
Tendo sido afectadas de modo grave as relações Katambi/Tendungumba por via desses factos vergonhosos, vieram ao de cima outras questões. A importância dos kakiáma no contexto político vigente era uma delas. Não se podia esquecer que representavam um grupo preponderante da nação wakangu. Implantados na zona situada entre o extenso Vale do Kambinza e a Lagoa dos Sapos Verdes, esta localizada nas proximidades do conhecido Mulundu iá Mazundu, dominavam imenso território e exerciam grande influência nas populações.
Titundu, estava habilitado, pela linha patriarcal de sucessão tradicional, a substituir seu pai, o poderoso Tendungumba.
– É ndengue ainda, falta-lhe muézu, não tem barba rija – reclamavam os veteranos, enquanto Katambi torcia o nariz ao chegarem-lhe certas novidades a respeito dessa maka.
– Ua muari’a-kimi a u sunga ni ndungue – corroboravam os sábios esgrimindo a tese segundo a qual só a barba dos mais velhos potenciava habilidades para ser chefe.
– Nunca participou numa batalha dura – não tem passado de luta… – reforçavam-se comentários pouco abonatórios a seu respeito.
– Tendungumba recebeu recomendação do espírito de Kitári – correra notícia. As exclamações rasgavam rostos surpreendidos de orelha a orelha.
Obrigavam, inclusive, os aboamados a voltar os xingu para trás, à custa de esgares dolorosos. Tratava-se de mujimbu muito sério. A questão era perigosa e até levou Katambi a torcer novamente o nariz.
– Ua kambe kilunji – em surdina, Katambi desconsiderou jocosamente o seu primeiro-conselheiro, tratando-o sem respeito, como vulgar homem sem juízo.
– Deixem estar. Ua mu kungula kiá – prometeu sanção alvitrando exclusão política em encontro restrito de conselheiros acontecido meses antes. Sabia-se que era um acto nada fácil de ser concretizado.
Inesperadamente começou a ver-se a bwala e a sociedade no geral, numa perspectiva diferente. Sentiam-se novas energias e outras vontades em pulsação. À boa maneira do tempo bravo e kióua, a necessidade da definição de certos poderes e da sua hierarquização era exigida. Mesmo tacanhas e embora caladas, as pessoas reivindicavam liberdade e justiça. Sonhavam e viam-se transportadas para cenários de muitos anos à frente do tempo antigo da vida. Um panorama onde fazia sentido e tinha cabimento a presença de todos os kiáma da nação wakangu. Considerava-se exigência de pleno direito.
Foi em ambiente efervescente, considerado revoltoso, enquadrado numa conquista surrealista para o tempo então em curso, que se avolumaram insinuações acerca do milagre da visita nocturna a ser realizada por uma sumidade, precisamente pelo guia espiritual de todos os povos da região.
Mantinha-se, incólume, a adoração à divindade criada há séculos pela imaginação dos Ngana mais espertos. Era uma imagem idolatrada e associada à riqueza e prosperidade das poderosas famílias. Influenciava também as mais temidas feras dos muxitu. Leões e ratos, onças e mabecos, todos submissos faziam vénias. Tempos de muita fé.
O anjo Kitári, segundo a tradição, aparecera a Tendungumba, como em ocasiões anteriores surpreendera outros chefes. Sempre em noites de lua cheia, sempre no panteão dos guerreiros, no território de Katambi. O anjo surgira para orientar os chefes. Por isso eles eram iluminados, tal como seriam os sucessores. Foi assim, desde os tempos remotos dos mais antigos sekulu. O anjo prometia conforto, riqueza, poder e bem-estar.
– Ku mundu iêtu, nanhi Ngana Nzâmbi? Ninguém é Deus, nem mesmo Kitári. Ele também tem um dia de descer na terra, nas vistas de todos, e pagar os seus pecados. Do tempo em que foi Ngana maior… – ousava-se a crítica ao idolatrado anjo. Olhares assustados focaram o atrevido.
– Mais respeito a Kitári – advertiram algumas vozes crentes.
– Respeito é falar a verdade das coisas. Ele já cá esteve, dizem os nossos kota, e toda a gente sabe que no seu tempo de glória, de mandar em tudo e em todos, cometeu abusos, muitos erros que estamos a sofrer até hoje em dia.
– Ninguém pode dizer isso. É pecado falar sobre os santos e a sua imaculada santidade, nunca se vai provar nada contra… – persistiam os avisos dos mais velhos.
– Não faz mal. A verdade mesmo é que todos estão a falar. O povo já sabe da sua passagem por este mundu iêtu, onde protegeu apenas a sua família e os seus amigos. Fez sofrer o povo…
– Kuku ua bangue, kuku ua futa diz-se que aqui se faz, aqui se paga – sentenciaram outros afoitos a juntarem-se aos primeiros incendiários da conversa. Contrariavam decididamente os velhos defensores da política indígena da Grande Família.
Os conselheiros Tandela e Ijico, andavam rondando nas proximidades. Bisbilhotando, investigando, tentando apanhar incautos. Captar afirmações imprudentes. Nas suas mentes passeavam chicotes, preparavam-se, em conversa motivadora, cães, cavalos e outros animais fiéis, os mais ferozes para situações do género. Jogava-se com a figura de Tendungumba, a manter-se firme nos seus propósitos ambiciosos. O seu discurso era demagógico, mas falava em mudança. Alguns acreditavam, e isso era importante. Contraditoriamente, não se desembaraçava da recalcitrante posição do seu amado filho.
Estava evidente que pai e filho jamais aceitariam ver o poder da nzámba grande eternamente nas mãos do caquéctico Katambi e sob o controlo dos seus descendentes. Inveja e egoísmo a superar simples vontades, iam, por outro lado, vencendo o bom senso que se escondia nos estreitos becos da comunidade.
Imperativos de ordem superior, razões sanguíneas e de carácter tradicional, garantiam ao chefe Katambi a legitimidade e a consequente preservação do seu lugar. A contestação deveria ser severamente punida. O homem tinha que ser considerado, havia sido escolhido pelos valores tradicionais e pela vontade de grande parte da população. Ele era simplesmente Kalunga, o insigne, o chefe supremo de toda a região.
– Não basta só ser chefe. Para mandar bem é preciso ser inteligente, tem que saber ver o que é a nação inteira… – reclamavam os apaniguados de Tendungumba, esgrimindo direitos inalienáveis doskakiáma.
Nestas circunstâncias, era impossível esconderem-se as divisões existentes no seio da tribo, nos meandros insondáveis da Grande Família. A situação mantinha-se há tempo incontável. Kixibu atrás de kixibu, mahinza seguido de mahinza. Pode-se dizer que essas contradições vinham já do tempo em que iniciara a luta contra os brancos. No espírito de certos kakiáma e mais propriamente de Tendungumba e de Titundu, avolumava-se o desejo de deposição do velho ngana, com a utilização da força extrema a não ser descartada. Mas um golpe no comando da tribo não estava na mente de nenhum cidadão. Já havia morrido muita gente em querelas inúteis.
Continua…