“Laranja Mecânica” Made in Angola

JAcQUEs TOU AQUI!  

Se te deixares levar pelo desespero, 

não terás força nos momentos de angústia.

frase de um diálogo do filme “Laranja Mecânica”

Apesar de ter sido produzido há uns bons anos, o filme de Stanley Kubrick com o seu manancial de imagens violentas, ainda hoje me perturba. Andei um ror de tempo e de várias formas a ver se entendia a mensagem que passava para o público. Viu-o duas vezes em salas de cinema quando da sua estreia e mais tarde, para aí uns vinte anos depois disso. Muito recentemente, revisitei-o, desta feita em casa, via televisão. Apesar dessas sessões repositórias, ainda hoje não posso afirmar com certeza absoluta se consegui captar correctamente a mensagem que o filme transmite ao espectador. Um filme grandioso no género de violência, de medo, de susto, de terror e horror, substantivos que a ele se colam e me ocorrem para o qualificar. Porém, há um pouco mais para além desse simples enunciado. 

Assim, mesmo que atenda às diferenças existentes entre uma história de ficção e os factos marcantes da nossa vida real; mesmo que reconheça hoje que o cinema, com as suas virtudes e inúmeras e sofisticadas técnicas se transformou, tal como a vida, a mente e os consequentes hábitos das pessoas, também se transformaram em certos aspectos, profunda e dolorosamente; ainda que admita como natural essa evolução do pensamento e das coisas, torna-se quase impossível não fazer comparações críticas entre a visão actual que temos dos fenómenos presentes no nosso dia-a-dia e o cada vez mais aprimorado foco cinematográfico que recai sobre o comportamento humano. Por via desse exercício, nós aqui em Angola, chegamos facilmente à conclusão preocupante de que as cenas do nosso absurdo quotidiano começam perigosamente a superar as imagens fantasmagóricas e surreais criadas pelos mestres do cinema.

“Laranja Mecânica” era, e ainda é, na realidade, um filme difícil. Também a vida em Angola era, sempre foi e ainda é, na realidade, uma existência muito difícil, principalmente para os mais necessitados, o povo em geral. Só não era ou não é para aquela camada de gente acomodada e a outra que compõe o numeroso grupo de “esquemáticos” que enchem a nossa banda. 

A apreciação dos catedráticos da sétima arte feita na época da estreia mundial da obra-prima de Kubrick, ocorrida entre Dezembro de 1971 e Janeiro/Fevereiro de 1972, foi marcada pela convergência de pontos de vista relativamente à sua qualidade fora de série e, sobretudo, sobre a violência incrustada e retratada na fita de um modo quase brutal. Abro um parêntesis para referir que entre nós, o quotidiano é pródigo no uso intencional da força física ou do poder, na miséria exposta a céu aberto, na fome e na doença, enfim, em toda a brutalidade das condições de vida miserável das populações que conhecemos bem. Essas precárias condições de vida têm definido no sentido mais puro da expressão e ao longo dos anos, a violência nas suas mais variadas versões. Brutal, idêntica em tudo à violência mostrada pelo cinema e, particularmente, pelo filme do norte-americano Stanley Kubrick, considerado um génio do cinema, o sexto entre os melhores realizadores de todos os tempos. Fecho o parêntesis.

“Laranja Mecânica” mostra-nos um Alex, interpretado magistralmente por Malcolm McDowell. Faz o papel de um carismático sociopata, líder de uma gangue de arruaceiros a quem ele chama de drugues, o mesmo tratamento que aqui se dá a certos amigos (bradas como brothers, ou camaradas). Os seus interesses incluíam muita droga que misturavam no leite, o “leite-com”, e ainda a música clássica, especialmente a de Beethoven. Contemplavam ainda o cometimento de estupro em mulheres e outros crimes semelhantes em violência. Abro outro parêntesis para entrar novamente na onda da comparação: quantos Alexs da nossa desgraça e desencanto, drogados (não com leite mas com gasolina e whiskys venenosos) e violentos, assassinos desequilibrados, andam à solta na nossa sociedade, mormente na cidade de Luanda? Será que a violência usada por Alex e seus comparsas não será semelhante à que volta e meia somos obrigados a assistir no nosso deplorável mundo, protagonizada pela desenfreada delinquência juvenil, com seus chefes e bradas, com toda uma movimentação ridiculamente mostrada, que nos captura e nos vai sufocando?

Volto ao filme que narra a horrível série de crimes da tal gangue, a sua captura, e a tentativa de reabilitação através da experimental técnica de condicionamento psicológico, chamada de “a técnica Ludovico”, promovida pelo Ministro do Interior (interpretado por Anthony Sharp). Alex é narrador na maior parte do filme. Fala em nadsat, uma fracturada gíria adolescente composta de gírias rimadas eslavas (especialmente russo), inglês e cockney. Resumindo, um vocabulário superiormente criado por Anthony Burgess para o diálogo entre os delinquentes. Burgess é o autor do livro com o mesmo título editado em 1962 e no qual se baseia Kubrick para a realização do filme. Nova abertura de parêntesis para de novo comparar e recordar a rica gíria luandense, sobretudo essa, que os delinquentes angolanos utilizam e apuram com mestria na sua acção criminosa, e assim fazer mais uma aproximação da nossa realidade ao filme. Não vai caber nela a figura do Ministro do Interior angolano e é pena, por desconhecermos que métodos ou experiências são utilizadas em Angola na reabilitação de delinquentes, nem sequer se a nível da saúde existe histórico actualizado da população com enfermidades psicológicas (de certeza existirão e não em número baixo) em actuação no horroroso mundo do crime. Fecho parêntesis.

Porque recordamos momentos de “ultraviolência” fornecidos por “Laranja Mecânica”, não posso esquecer, por mais que tente, a cena em que a gangue estupra e mata a esposa do escritor F. Alexander, enquanto Alex canta deslumbrado, “Singing in the Rain”, música e bailado imortalizados no sapateado do genial Gene Kelly em “Serenata à chuva”. Cena chocante, terrível e assustadora, essa do jovem marginal a cantar.

Por outro lado, temos que reter as imagens e verificar como fica presente em nós a forma como se empregam imagens violentas e perturbadoras para abordar a psiquiatria, a delinquência juvenil, os grupos de jovens transviados, e outros assuntos sociais, políticos e económicos num Reino Unido da Grã-Bretanha à beira, naquele tempo, de um futuro muito próximo da utopia. Quase igual a nós nos tempos que correm, atrevo-me a comparar com algum exagero. Ou será que não?

O filme permanece ainda uma influente obra do cinema e é frequentemente referenciado em festivais e encontros da sétima arte e da cultura popular em todo o mundo, recebendo diversos elogios pela sua temática ousada e controversa, pelo universo de estilo fantástico criado por Kubrick para além de ser sempre enaltecida a actuação de Malcolm McDowell. Todavia, e segundo a opinião do realizador espanhol Luis Buñuel, depois de o considerar admirável, não passou apenas de um filme sobre o que o mundo moderno significava!

Por hoje chega de ficção e de violência. Fixemo-nos sim, com um foco de lente potente, capaz de nos fazer sentir novas sensações na apreciação de cenas dos filmes que passam diariamente no gigantesco ecrã da vida em Angola, e a busca de soluções para abolir de vez as cenas tristes deste mundo terrível que vivemos agora. 

Vão os cumprimentos habituais aos meus leitores e amigos. Espero por todos no próximo domingo, à hora do matabicho.

Luanda, 7 de Maio de 2022 

P.S. – Na manhã do dia  6, partiu mais um amigo. Esse era dos bons. Estou desolado, camarada. Adeus Zeca Cohen! Sentidos pêsames a toda a família. Até sempre.

One Comment
  1. Mais um excelente artigo do meu amigo Jacques, saludos da Argentina!!!!!!!!!!!!!!

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