A revisão revanchista!

Por Carlos Ribeiro

Onze anos depois e, uma revisão cosmética pontual, feita a revelia da própria CRA de 2010, o resultado final não difere do já famoso e desgastante “mais do mesmo”, matematicamente falando! As críticas à forma como o processo de revisão e promulgação decorreu, de nada serviram e pelo contrário, acentuaram a certeza (inclusive para aqueles que, participaram na sua elaboração técnica, com ressalvas para os que agora estão em patamares políticos e que, por razões de alguma alienação social, não se manifestam publicamente) de que, o país precisa de uma constituição que defina de uma vez por todas o seu rumo! Ou somos um país de único “órgão centralizador” do poder soberano, ou somos uma composição democrática universal de órgãos de soberania onde o poder soberano recai sobre a entidade e não sobre o seu titular.

Para todos os efeitos negativos na vigência da nossa Constituição, o principal factor de descrédito, continua a ser a indefinição que deriva da concentração de poderes funcionais e a relação entre os Órgãos de Soberania (considerado centralizador por uma sumidade jurídica, nas vestes agora pelo que tudo indica, de desafecto do sistema) relação essa que chega a ser enternecedora pelo elevado senso de subserviência dos demais Órgãos!

Entretanto, falar de revisão implica antes rever o contexto histórico em que foi redigida e aprovada a CRA2010.Trata-se, pois, de uma Constituição imposta em função das circunstâncias políticas e visou salvaguardar a classe governante, perpectuar o Sistema de um partido “destinado” a governar sempre, com base em um direito histórico inalienável, atolado por uma plêiade intermitente de partidos historicamente de cariz “oposicionista” permanente e imutável. Originou, com isso, que a Constituição, espelhasse os 38 anos de governação ininterrupta, assente no “centralismo democrático”, onde o culto da personalidade, era exaltado em toda sua dimensão e, pelo que tudo indica, parece ter sido repassado em toda sua plenitude (tamanha é a coincidência)!

A CRA2010, reflectiu (embora agora, com a revisão, aparente, o contrário) ainda a isenção do dever de prestação de contas dos membros do governo, reduzidos à condição de “auxiliares” do Titular do Poder Executivo na gestão da “coisa pública”. Salta à vista aqui, o valor político do vice-presidente da República que deveria merecer um melhor tratamento institucional por ter sido eleito e não nomeado, no entanto, desvalorizado pela colação descarada contida art.131°, n°1 da CRA, prerrogativa atribuída ao presidente da República enquanto Órgão de Soberania (o que, seguramente, nos leva a suposição de que o vice-presidente é também Órgão de Soberania. A menos que tal só aconteça quando substitui o PR e temporariamente é detentor da imunidade presidencial)! Seria talvez uma espécie de afirmação política ver a próxima ou o próximo a negociar as possíveis pastas sob sua responsabilidade antes de ser eleito.

Por força da “não” prestação de contas dos seus auxiliares, pesa sobre o ex-PR, (e o actual, poderá vir a responder pelo mesmo também), a presunção de responsabilidade criminal já que os auxiliares estão isentos dessa responsabilidade ou e talvez mesmo civil, ao abrigo do cumprimento de “ordens superiores” mesmo que essas tenham tido um carácter ilícito, em contradição ao que diz a lei sobre a “não transmissibilidade” da responsabilidade criminal. Nessa perspectiva, seria de todo interessante ver de que forma as propostas do novo “código de procedimento administrativo” e o “código de processo e contencioso administrativo”, abordam essa questão, do ponto de vista da transferência de imunidade, enquanto no cumprimento da ordem superior e a rejeição do subordinado em cumprir tal ordem, se esta for contra os seus valores éticos e religiosos.

Se, anos atrás, José Eduardo dos Santos tivesse “tido” algum discernimento e colocasse, portanto, o seu lugar a outro é provável que, tivéssemos hoje, uma CRA adequada a um modelo de governação no qual a concentração de vários poderes, “num” único titular seria talvez, o menor dos nossos problemas constitucionais. E esse desiderato ganhou inadvertidamente uma triste conotação jurisprudencial com o Acórdão 319/2013 que, supostamente, deveria nos fazer entender essa questão, mas que, infelizmente, teve o condão de ser um poço de contradições no que concerne a “identificação funcional” do convocado.

Neste acórdão, o Tribunal Constitucional “rejeitou” também a aplicação do mecanismo de controlo que em democracia, impede a concentração do poder político, em uma única pessoa ou em um grupo político, por considerar que, em Angola e, ao abrigo da CRA2010 (claro!), a separação de poderes e a relação entre o PR e a AN (e por consequência, os tribunais) é por coordenação!!? Diz ainda que, nos termos da Constituição, o Executivo não está subordinado ao Legislativo.

Entendemos que não é bem assim (embora a actual revisão tenha dado um aparente “talvez”), por ser o candidato presidencial, eleito na lista de deputados a Assembleia Nacional! Ora, por via dessa eleição, como sabemos, é automaticamente designado presidente da República e como tal, o seu assento como deputado é cancelado art.º 114, nº3 da CRA. A lei não é clara se esse cancelamento é definitivo ou temporário. No entanto, com a alteração promulgada, passa a ser possível o presidente da República que renunciar no início do seu mandato, reassumir o seu lugar no parlamento desde que tenha condições para o fazer até porque, essa forma de renúncia, não dá lugar a dissolução da Assembleia Nacional.

A partir desse formalismo (o de ter sido eleito pela lista de deputados), cria-se o laço de subordinação política. Há também, como se vê, uma subordinação por “intermediação” da aplicação do princípio da interdependência de funções que se materializa quando o PR é autorizado a legislar sobre matérias da exclusiva competência da AN. Logo, essa “autorização” se constitui também em um mecanismo de subordinação constitucional que acaba por justificar a fiscalização vinculativa dos actos do Executivo, apesar de este não ser um órgão de soberania e o facto de estar “acoplado” a dependência directa de uma pessoa com poder de soberania, não coloca o Executivo no mesmo nível ou equiparado à Assembleia Nacional no exercício do poder soberano.

Na realidade, o titular do Poder Executivo, em termos práticos, é titular de um cargo sem peso político efectivo, uma figura de estilo político meramente decorativa, pois está desprovido (por inerência da sobreposição de funções concentradas numa única pessoa) de qualquer poder de gestão governamental pelo facto de que, as decisões do Executivo serem presidenciais e não executivas. Essa dualidade de funções implica arranjos políticos de fachada, no quesito da fiscalização.

Daí que, numa tentativa de sacudir a poeira, o Tribunal Constitucional, no famigerado A-319/2013, para além de ignorar e, por conseguinte, não reconhecer a funcionabilidade executiva do TPE (ao citar alguns aspectos, passíveis de auditoria pela AN), incide essa fiscalização sobre os actos do presidente da República e não do TPE. Por outro lado, em um gesto de puro amadorismo constitucional, os juízes conselheiros, preferiram aplicar a técnica da avestruz (enfiar a cabeça num buraco na areia como forma de se esconder dos predadores) e relegar para a posteridade, a clarificação sobre se é constitucional ou não um órgão não soberano ser fiscalizado de forma vinculativa pela Assembleia Nacional porque o seu titular é em si mesmo, um Órgão de Soberania.

Tenhamos em consideração que, a Constituição, atribui poderes de soberania a dois órgãos e a uma pessoa o que leva a conclusões precipitadas de que, por inerência dessa subordinação, todos os demais órgãos da administração do Estado, sob coordenação “desse titular”, gozam das mesmas prerrogativas atribuídas constitucionalmente aos demais Órgãos de Soberania. Nessa perspectiva (errada por sinal), poderíamos, por exemplo, considerar que as FAA’s também, supostamente, gozam da mesma prerrogativa…

Atente que não é, pois, por mero capricho, em parte, já respondida pela CRA2010, ao considerar o Executivo, um órgão do poder do Estado (artigo 105°, n°1). Talvez seja por isso que os promotores da proposta de revisão da CRA se viram na contingência de ter que incluir, com limites e pendente a aprovação do PR, a convocação de auxiliares seus para responder perante comissão específica da AN, sem qualquer poder vinculativo sobre actos irregulares dos mesmos. Se, por causa da dependência hierárquica, o Executivo angolano fosse um Órgão de Soberania, representaria mais uma deturpação de um conceito de cidadania, com mais de dois mil anos de história (desde 2010 que, registamos fenómenos dessa índole, assentes na usurpação dos poderes do Estado para fins de aproveitamento pessoal ou do mesmo grupo político).

Por conseguinte, a contínua adaptação, sem revanchismos da CRA às exigências actuais, salvaguardaria a independência e autonomia dos Órgãos de Soberania e de gestão do Poder Soberano do Estado, reforçaria a aplicação da legitimidade fiscalizadora da Assembleia Nacional e consequentemente aumentaria os níveis de confiança do cidadão nas instituições do Estado e em seus representantes. No entanto, há que se dar também o devido reconhecimento à nossa Constituição por ter tido nos últimos onze anos, um desempenho regular, sobretudo no quesito “valorização” dos direitos humanos. Contudo, precisa alargar o “spectrum” da prossecução dos direitos políticos (oportunidade negada nesta revisão promulgada), na perspectiva de mais abrangente participação do cidadão na gestão do Estado como por exemplo, o facto de poder se candidatar à presidência da República, sem estar “afiliado” a um partido ou coligação política. Deve, igualmente, propiciar ao Tribunal Constitucional, a capacidade jurídica para solicitar à Assembleia Nacional a alteração de normas inconstitucionais, a exemplo do que diz o artigo 167°, n°1, conjugado com o artigo 161, al (a), alterando para o efeito, o artigo 233° na medida em que o Tribunal Constitucional, como guardião da legalidade e conformidade constitucional, deve (ria) ter tal iniciativa, dentro de limites específicos.

Na contramão, a CRARevista (CRAR/2021), acaba por ser apenas um mero resumo de justificativas de perpectuação revanchista do Estado Vigente!

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