A PROPÓSITO DO DIA MUNDIAL DA SEGURANÇA ALIMENTAR

A desigualdade social é a principal causa da fome e da destituição de grupos da população marginalizados na economia de mercado. E tem vindo a aumentar, nomeadamente através do empobrecimento progressivo da chamada ‘classe média’, e do não combate à destituição crescente da maioria da população

POR CESALTINA ABREU*

Em comunicações a dois eventos no âmbito da CPLP(1)abordei a questão da garantia do direito à alimentação, propondo a adopção de uma política que complemente segurança e soberania alimentar para estabilizar a oferta de alimentos. Retomo hoje algumas ideias. 

Angola precisa de ‘políticas públicas’, ou seja, políticas de Estado, resultantes da interacção com a sociedade e fortemente enraizadas nela, duradouras, resilientes às alternâncias políticas, distintas das actuais ‘políticas de governo’ que vamos tendo. As públicas visam a criação de oportunidades sociais – educação, saúde, reforma agrária, protecção social, habitação, etc.-, ou seja, assumem a prioridade de valorizar os recursos humanos para a expansão das suas capacidades e a melhoria da qualidade de vida, para além do efeito no aumento das habilidades profissionais. Em consequência, haverá um aumento da produção na economia e crescimento económico. 

A prevenção da fome e das crises resultantes de catástrofes naturais ou pandemias, implica a criação de serviços sociais para aumentar os níveis de segurança e de protecção aos grupos sociais mais vulneráveis, a melhoria do seu bem-estar e a criação de oportunidades e mecanismos de inclusão na cidadania através da participação política no processo de tomada de decisão, e da contribuição para a produção e a geração da riqueza e do rendimento nacional. 

Mas isso implica a complementaridade dos papéis de instituições e organizações – Estado, mercado, sistema democrático, meios de comunicação, sistemas de distribuição pública de serviços, entre outros -, na criação de oportunidades e perspectivas fundamentais ao desenvolvimento sustentável. É preciso complementar eficiência e equidade, principalmente em contextos de desigualdades nas liberdades substantivas, como é o caso das desvantagens acopladas prevalecentes em Angola: desigualdade de rendimentos, por um lado, e desigualdade de oportunidades de conversão de rendimentos em capacidades, por outro.

A desigualdade social é a principal causa da fome e da destituição de grupos da população marginalizados na economia de mercado. E tem vindo a aumentar, nomeadamente através do empobrecimento progressivo da chamada ‘classe média’, e do não combate à destituição crescente da maioria da população. É, também, agravada pela inexistência de disposições institucionais visando a criação de redes de segurança social, apesar das Estratégias de Combate à Pobreza (2004) e da Segurança Alimentar (2009). 

O mapa assinala a situação da fome no mundo. Nos países em amarelo em situação grave, nos países em laranja a situação é alarmante(2). Angola está na posição 98 do Índice Global da Fome (IGF) relativo a 2022, numa situação considerada Grave. 

A segurança alimentar de milhões de africanos continua a ser afectada pela subida dos preços dos alimentos e dos combustíveis(3). Segundo o Fundo Monetário Internacional, FMI, desde 2020, houve um aumento médio de 8,5% no custo de uma cesta básica em África. A situação pode ser agravada ainda mais pela crise de dívida em alguns países, e Angola (o único país de língua portuguesa referido no documento), apresenta um risco de inadimplência de dívida soberana na faixa de mais de 50%, até 2025(4). 

É imperativo garantir o investimento na produção agrária e piscícola, com dotações orçamentais não inferiores a 10% (compromisso regional da SADC), e o acesso e uso efectivo dos recursos relacionados, nomeadamente acesso, uso efectivo e titularidade da terra, e acesso, uso e gestão da água, ambos entendidos na dupla perspectiva de bem público e de mercadoria/valor económico. 

A maneira de operacionalizar o acesso e uso efectivo destes direitos depende muito de como a questão da garantia alimentar é encarada. Na perspectiva da soberania alimentar (defendida p.ex. pela Via Campesina), é o direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e a decidir o seu próprio sistema alimentar e produtivo. 

Na perspectiva da segurança alimentar (segundo a FAO), é a garantia do direito de todos ao acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e de modo permanente, com base em práticas alimentares saudáveis e respeitando as características culturais de cada povo, manifestadas no acto de se alimentar. É responsabilidade dos estados nacionais assegurarem este direito, e devem fazê-lo em articulação com a sociedade civil, dentro das formas possíveis para exercê-lo.

Em ambas as perspectivas, são centrais as ideias de qualidade e quantidade numa óptica sustentável, e da alimentação como Poder por parte de quem tem capacidade de produzir, armazenar e distribuir alimentos, contra quem não a tem; daí, o sentido de segurança nacional, apontando para a necessidade de formação de stocks estratégicos e circuitos de distribuição de alimentos. 

Proponho que se considere a complementaridade entre o sentido de “soberania”, garantindo o direito de escolher o que comer, a adequação e a qualidade dos alimentos, produzidos por sistemas socioambientais sustentáveis – agroecológicos -, que aproximam a produção e o consumo, que respeitam culturas e tradições alimentares, que são isentos de produtos químicos e, em geral, são produzidos pela agricultura familiar, e o sentido de “segurança” relacionado com medidas institucionais de garantia de stocks alimentares e de redes de asseguramento da distribuição de alimentos a quem deles necessita, nas quantidades que necessita e quando deles necessita. 

Proponho, ainda, como principais comprometimentos:
– Promover o uso dos alimentos locais na dieta alimentar, com base na pesquisa, divulgação e fomento de receitas e certificação de qualidade dos produtos;

– Fomentar indústrias transformadoras próximas aos locais da produção de subsistência para uso dos excedentes;

– Promover o uso de sementes locais, financiando as pesquisas necessárias ao seu melhoramento e maior rentabilidade, e criar bancos de sementes locais;

– Estimular a criação de redes de comércio no meio rural, relacionando-as com o comércio urbano;

– Repensar e criar as condições para o pleno funcionamento dos serviços de assistência técnica aos camponeses e de promoção dos seus produtos;

– Institucionalizar mecanismos de participação da sociedade para garantir o direito a uma alimentação adequada numa base universal, e a salvaguardar as necessidades especiais dos grupos sociais mais vulneráveis;

– Facilitar o acesso a sistemas de informação de mercado para a agricultura /agro-pecuária e piscicultura;

– Desenvolver as infraestruturas com impacto directo na promoção da produção agrária: vias de comunicação, sistemas de armazenamento e de distribuição, etc.;

– Conceber programas/projectos para o processamento de produtos agrários in loco e outras actividades que acrescentem valor à produção dos camponeses e contribuam para aumentar os seus rendimentos;

– Promover a livre transferência da tecnologia para adaptação à mudança climática, e o financiamento desta adaptação com concessões, não empréstimos;

– Criar reservas estratégicas de alimentos. 

(1) CPLP, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: 1. “O Observatório do Direito à Alimentação e o papel da Universidade”. Workshop, Maputo, 5/06/2012, e 2. “Soberania versus segurança alimentar”. I Fórum da Sociedade Civil da CPLP: Promovendo a participação social na CPLP. Brasília, 28 a 30 de Setembro de 2011 

(2)https://www.jn.pt/mundo/onda-de-crises-torna-sombria-a-situacao-da-fome-no-mundo- 15249981.html 

(3) Agência da ONU investe em sistemas alimentares mais sustentáveis na África, ONU News, 02 fevereiro 2023  

(4) UNICEF/ Office of Global Insight and Policy. Prospects for children: a global Outlook 2021-2025. FIGURE 2: PROSPECTS OF SOVEREIGN DEFAULT: (…), p.9 

Sobre a autora:

*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e o Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.

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