Uma reflexão sobre Tolerância

Os meios de comunicação e os seus profissionais, devem estar preparados para desempenhar a sua função social na nossa sociedade tão carente de valores e princípios democráticos de facto, e os pratiquem em todas as ocasiões que se lhes apresentem. Mas essa preparação subentende a interiorização dos mesmos valores e princípios e a coragem necessária para os exercitar na actividade do dia-a-dia em ambiente autoritário, que desrespeita a diversidade que nos caracteriza e impõe a visão monolítica de uma memória colectiva que desde há 48 anos se pretende hegemónica e que recorre ao argumento da força, sempre que necessário, para se impor à força dos argumentos.

POR CESALTINA ABREU*

Escutando ontem o programa de uma rádio luandense dedicada à juventude, percebi a referência à Tolerância como a aceitação e respeito pelos valores e princípios dos outros, remetendo para a ideia de o que é necessário para a coexistência e a convivência pacíficas e proveitosas para todos nelas envolvidos. Considerando o que me pareceu como um carácter educativo/pedagógico no referido programa, de imediato me ocorreu que a abordagem estava incompleta. Ou seja, não se pode, apenas, fazer um apelo à Tolerância porque, em meu entender, ela precisa ser acompanhada pelo Respeito – respeitar o que é digno de respeito – para então se transformar nessa ferramenta de consciência política que permite criar ambientes plurais, de jure e de facto.

O exercício da Tolerância por cada um de nós, é entendido pelos outros como aquilo que estamos dispostos a aceitar. Ora, para começar, tolerar não significa aceitar o que se tolera. Mas, é preciso ter consciência que o ‘Ser Tolerante’ tem limites, e um deles, é não tolerar a Intolerância. É não aceitar populismos, fascismos e outros ‘ismos’ cada vez mais presentes nas nossas sociedades!

A capacidade de comunicação entre actores sociais concretiza-se através de construções discursivas que contribuem para a produção das representações sociais, como o particularismo e o universalismo. Estas são construções sociais fundamentais à existência, e ao fortalecimento, de um ambiente sociopolítico capaz de promover a definição de uma Nação angolana em termos multiculturais, e a sua integração ‘no tempo do mundo’. Mas esse processo precisa assentar seus caboucos num clima de crescente confiança entre indivíduos e grupos sociais(1) e basear-se no respeito pelas suas identidades históricas e socioculturais, na partilha do poder, nas garantias de participação e de representação, e na opção por um regime político que promova a autonomia local ou regional. Mas isto requer vontade política, e o engajamento da maior diversidade possível de actores sociais, para que o potencial de mudança encontre terreno fértil à sua concretização, aproveitando as oportunidades da interacção e as sinergias na região, no continente e no planeta.

A perspectiva de constante re-adaptação da estrutura contemporânea que confere flexibilidade e movimento às culturas no contínuo ciclo de mudança do processo de modernização, cria oportunidades para a negociação de novos pactos sociais, incluindo consensos de fins e de meios, e dissensos com base no respeito e reconhecimento dos mesmos enquanto ‘desacordos morais’(2). A inclusão de uma vasta gama de desacordos morais dignos de respeito, oferecendo a oportunidade de defender posições de dissenso com seriedade moral, criaria as condições para a aprendizagem de convivência com a diferença, de que tanto carecemos!

A construção colectiva de mútuos entendimentos, os consensos, sobre o percurso de Angola e a construção social de: a) um passado – memória social – no qual todos se revejam, b) uma visão de futuro projectada a partir desse passado comum e dos caminhos para a alcançar, c) de um projecto de organização da vida colectiva em sociedade, d) uma intersubjectividade colectiva – a angolanidade –, entre outros, pressupondo a aceitação dos dissensos moralmente aceitáveis, que antes referi, e até de conflitos(3), naturais em ambiente de diversidade de objectivos e de interesses das sociedades modernas.

O respeito pelas diferenças e a acomodação dos dissensos abrem espaços para a manifestação de valores locais, e criam oportunidade para incluir, como válidos, os debates e os discursos que, aos diversos níveis e envolvendo os mais variados tipos de actores sociais, se manifestam na esfera pública em oposição aos discursos predominantes. Neste entendimento, a esfera pública é constituída por vários públicos, os quais recorrem aos respectivos sistemas de valores para produzir representações sobre a realidade, formular críticas sobre os problemas identificados e apresentar propostas de solução, nas quais por norma se incluem.

A sociedade civil é um espaço fundamental para a formação democrática da opinião pública, enquanto expressão do consenso ou de dissenso com respeito às instituições, veiculada pelos órgãos de comunicação social. Esta função surge particularmente valorizada, dada a situação de transição que o país vive, de um regime(4) totalitário (no qual a sociedade civil foi absorvida pelo Estado/partido e onde prevalecia uma opinião oficial), para um regime que se anuncia pluralista no discurso, mas que continua a mostrar extrema dificuldade em lidar com a diferença de opinião e de formas de estar em sociedade.

Voltando ao programa radiofónico que escutei ontem, e ao seu papel ‘educativo’, importa concebê-lo de maneira que realmente cumpra a função social que anuncia. Mas isso implica que os meios de comunicação, e os seus profissionais, se preparem para desempenhar tal função na nossa sociedade tão carente de valores e princípios democráticos de facto, e os pratiquem em todas as ocasiões que se lhes apresentem. Essa preparação subentende a interiorização dos mesmos valores e princípios e a coragem necessária para os exercitar na actividade do dia-a-dia em ambiente autoritário, que desrespeita a diversidade que nos caracteriza e impõe a visão monolítica de uma memória colectiva que desde há 48 anos se pretende hegemónica e que recorre ao argumento da força, sempre que necessário, para se impor à força dos argumentos.

Anotações:

1 Há muitos estudos sobre a importância da Confiança na sociedade, como meio e como bem público; quem estiver interessado poderei passar algumas referências de autores que venho consultando para os meus trabalhos; 2 Igualmente, para esta abordagem sobre a construção social de consensos e a inclusão dos dissensos dignos de respeito. Poderei passar algumas referências a quem estiver interessado; 3 O mesmo para a importância do discurso na ‘tradução’ das vontades e dos interesses politicos e na produção de conhecimento. 4 O conceito de “regime” é usado para significar os distintos arranjos institucionais, como por exemplo: democracia representativa, autoritarismo burocrático, regime de partido-estado.

Sobre a autora:

*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e o Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.

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