KO eleitoral e o pacto da nação (II)

CONVERSA NA MULEMBA

Fernando Pacheco

A morte de José Eduardo dos Santos acontece num período de grande perplexidade na vida dos angolanos. O inusitado, lamentável e triste diferendo que opõe o Estado angolano e a família do ex-Presidente é revelador da crise geral que nos aflige desde há muito e da decadência que nos ameaça. Um diferendo entre poderes que se reclamam legítimos, mas pecam por tentações absolutistas. Uma disponibilidade para a procura de soluções com base no diálogo e na negociação deveria ter sido tentada há muito, pois era previsível que, com a evolução da doença, se chegaria a tal situação. Era apenas uma questão de tempo. Infelizmente tais soluções não fazem (ainda) parte da cultura política doméstica. A criação de uma comissão para as exéquias fúnebres sem alusão a representantes de familiares do falecido foi outro erro crasso. 

Para alimentar a contenda emergiu a guerra da comunicação. A limitação no acesso à comunicação social pública angolana por parte das filhas é lastimável e resulta no recurso às estações televisivas estrangeiras, tal como fazem outros actores políticos e sociais. Um parêntesis para recordar que Isabel dos Santos também abusou do seu poder no passado para tentar impedir o acesso dos angolanos à informação. O modo como a comunicação pública tratou o ex-Presidente ao longo da sua doença foi simplesmente deplorável – e todos recordamos, envergonhados, como um responsável da TPA desvalorizou o seu último regresso ao país. E volto a insistir que a insistência do MPLA no controlo desmesurado e inaceitável da comunicação social pública pode trazer-lhe muitos amargos de boca.           

A perplexidade ora vivida também tem a ver com o período eleitoral. Nestas ocasiões são frequentes em Angola os casos de intolerância política, traduzidos, por vezes, em violência física. São preocupantes tais manifestações, ainda que não ponham em causa a paz, exemplarmente preservada nos últimos vinte anos. Por isso vale a pena analisar as suas causas. 

Angola abraçou a democracia multipartidária como resultado de mudanças no país e no mundo – chegava ao fim a chamada guerra fria –, e depois de um processo moroso de negociações para se alcançar a paz. A expectativa dos apoiantes de uma das partes era, na altura, que a realização de eleições conduziria a uma alternância inevitável do poder, dado o desgaste do partido governante desde a independência. Por tal razão foi enorme a pressão para que a transição até à data das eleições fosse muito curta (apenas 16 meses), o que acabou por não permitir a pacificação dos espíritos e a integração das partes em conflito numa nova sociedade. Na percepção de muitos angolanos ficou a prevalecer a ideia de que a democracia se esgotava em eleições, mal que vem ensombrando o nosso ambiente político até aos dias de hoje. 

A expectativa gorou-se, o partido que vinha governando ganhou as eleições de 1992, o adversário não reconheceu a derrota e com isso provocou o reinício da guerra. Entretanto, o partido no poder continuou, como no passado, confundido com o Estado, principalmente depois de alcançada a paz, e mais ainda com a aprovação da Constituição de 2010, consumando uma hegemonia que não deixa, ao arrepio do que diz a Constituição, espaço à oposição, prejudicando a construção da democracia e, em última instância, os seus interesses estratégicos.

Depois da arrasadora vitória em 2008, a crescente insatisfação popular e o desgaste do exercício do poder têm levado o partido governante a perder progressivamente votos nas duas últimas eleições. Apesar de medidas irregulares e ilegais que ferem a justiça eleitoral, como, por exemplo, a sempre referida parcialidade da comunicação social pública e a utilização abusiva de bens públicos, é expectável que a sua penalização em 2022 seja maior. Observadores imparciais acreditam que estas serão as mais disputadas eleições depois de 1992, facto que os leva a mostrarem-se preocupados com o aumento das tensões políticas e sociais à medida que se aproxima o dia 24 de Agosto, pois a intolerância política tende a agravar-se.

Daí a importância do recurso a mediadores sociais para os diferendos políticos. Uma vez mais faz-se o apelo à comunicação social – toda ela – para a divulgação de informação com verdade e isenção e para a promoção de práticas visando a resolução democrática dos problemas e a pacificação das mentes, ao invés da difusão do ódio. Ouvir da parte do poder de Estado insinuações sobre pretensos planos de desestabilização não é nada recomendável. Ouvimos episódios do mesmo tipo noutras ocasiões sem que jamais fossem apresentadas evidências. Como até hoje não foram reveladas ao público as “evidências” sobre as “arruaças” de 10 de Janeiro último, nem se julgam supostos envolvidos detidos desde então.

Outro tipo de mediação tem de ser a da sociedade civil. Por definição a sociedade civil deve ser um espaço pluralista e integrador de diversidades, um espaço crítico livre que influencie o poder sem pretender participar nele, um espaço sem poder mas com a autoridade que lhe advém dos seus saberes e competências. Assim será desejável o seu amplo envolvimento em missões de observação eleitoral, pelo que se considera inaceitável o levantamento de obstáculos à sua acção. Sabemos que as perversões da política e dos seus poderes perturbam a afirmação da sociedade civil angolana através de cooptações e confrontos e desviam as suas organizações e actores dos seus propósitos e comportamentos. Que actores da sociedade civil sejam requisitados por partidos para integrarem as suas listas de candidatos pode representar um crescendo da sua importância – tal era impensável há uns anos atrás –, mas também uma fraqueza pela demissão de valores em que podem incorrer aqueles que se dizem da sociedade civil, o que prejudica a percepção desta pelos cidadãos comuns. 

É hoje mais ou menos consensual que se regista uma certa inflexão nas tendências de voto. À medida que o tempo passa a UNITA, vista no passado como um partido “rural”, vem ganhando expressão nas cidades. Isto pode ser explicado pela chegada de cada vez mais jovens à idade de votar, mas também pelo chamado êxodo rural – confirmado pela mais recente divulgação dos dados demográficos – que é explicado não apenas pela procura de oportunidades socias e de emprego nas cidades, mas também a fuga de jovens habitantes das aldeias da tutela dos mais velhos. Na verdade, dada a cooptação das autoridades tradicionais e de outros líderes comunitários pelo MPLA, estes agem nas aldeias como caciques na imposição do sentido de voto, enquanto nas cidades há mais liberdade e mais acesso à informação.

A correcção de aspectos negativos de 1992 e 2010 poderia acontecer se houvesse abertura para um pacto de convergência democrática que conformasse um consenso e um compromisso nacional para solução de problemas actuais e futuros da sociedade angolana e consubstanciado, entre outros aspectos, numa revisão constitucional consensual, na descentralização política e na despartidarização do Estado. Um pacto que se ancorasse numa fórmula simples: o reconhecimento pleno dos direitos cívicos e políticos dos cidadãos, que conformam a democracia política, e dos seus direitos económicos, sociais e culturais, que configuram a democracia económica, ou aquilo a que se chama desenvolvimento. 

Novo Jornal, 15/7/22

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