NUANCES E IMPLICAÇÕES DA DECISÃO DA DIRECÇÃO DA RÁDIO ESSENCIAL: UMA VISÃO INTERDISCIPLINAR

POR MIGUEL ÂNGELO

No decorrer do curso de doutoramento que fiz, pela Nova Escola Doctoral da Universidade Nova de Lisboa, do curso de “Desenvolvimento de Competências Académicas”, uma das matérias de transcendental importância no domínio desta formação que foi leccionada, tem a ver com a necessidade e a importância da interdisciplinaridade e/ou multidisciplinaridade, no estudo, análise ou abordagem dos fenómenos, no exercício de qualquer actividade profissional, e muito mais, para processos de tomada de decisão, sempre que se pretender alcançar maior eficácia e eficiência com os resultados, reduzir os riscos, erros ou os impactos negativos, bem como consentir a menor margem de erro para com os objectivos que se pretendem atingir. 

Em países como o nosso, quase sempre falhamos neste domínio, quer pessoalmente como profissionalmente, assim como a nível das instituições. A ideia de que, como profissionais numa determinada área, estamos  habilitados, automaticamente, a tomar as decisões que achamos mais consentâneas para o domínio específico em que actuamos, leva-nos sempre a cometer erros involuntários ou a não perceber que outros ramos do saber poderão analisar a mesma situação a partir de um outro ângulo e que, se fossem consultados, ajudariam sempre a analisar o quadro de uma maneira mais ampla. 

Volto a propósito deste tema por quê? Nunca foi minha intenção e era absolutamente inimaginável, pensar em estudar a conduta ou a personalidade de quem quer que fosse, até porque não é a minha área específica de formação, nem a área a que me tenho dedicado profissionalmente. Quando decidi analisar a conduta e os traços da personalidade do senhor general Miala, atendendo os seus próprios actos que nunca cheguei a compreender as razões, nem as motivações, uma vez que sempre acreditei que até então tivéssemos muito boas relações, pensei logo que devia contar com a colaboração de outros especialistas e foi daí que entrei em contacto com um amigo, médico psiquiatra forense de nacionalidade brasileira. 

Este, por sua vez, procurou constituir uma equipa, na qual incluiu um psicanalista e um psicólogo, e todos actuam no domínio forense no Brasil. Este amigo, com algumas reticências, chamou logo à minha atenção, dizendo que, do ponto de vista ético e deontológico, não era permitido expor um indivíduo acometido por sinais de patologias de fórum psicótico, psiquiátrico ou outro do domínio psíquico-mental, uma vez que, além da estigmatização a que o indivíduo viria a estar sujeito perante a sociedade, a deontologia profissional recomenda a estudar o problema patológico e não o indivíduo, tendo sempre presente a salvaguarda da sua imagem, honra, dignidade e os seus demais direitos de personalidade. Eis a razão por que o nome de nenhum deles consta pelo seu contributo para os aspectos que aparecem no meu livro, sob o título “Angola na Era da Pós-Verdade”.

Mas, foi deles que obtive os aspectos necessários, para a devida fundamentação teórica sobre os traços de personalidade que aparecem no livro, atribuídos ao senhor general Miala. Quanto mais não fosse, não se tratando de um estudo puramente psiquiátrico, psicanalítico ou psicológico, mas sim sociológico, era necessário ter em conta os aspectos teóricos a serem inseridos, para o seu devido enquadramento. Também vale dizer que eles tiveram de compreender o meu posicionamento, uma vez que não tinha outra saída, para expor práticas e acções tão descabidas e incompreensíveis. Nem mesmo a vontade pura e simples de abusar do poder justificariam. Por isso, não hesitaram em dar-me o melhor apoio neste sentido. 

Ora, da conversa que tive e agora vou tendo com o meu amigo médico psiquiatra, em relação à decisão tomada pela Rádio Essencial de retirar a minha entrevista das suas plataformas, disse-me ele, novamente, o seguinte: “num caso destes, nem está em causa a legitimidade da decisão, nem os seus fundamentos que podem ser, na óptica deles, justificáveis. A rádio tem toda a legitimidade de fazer o que achar melhor para a sua imagem e do seu Conselho Directivo”. 

“No entanto, teria de saber avaliar, porque a própria decisão da rádio teve muito a ver com o que foi dito na entrevista. Qualquer indivíduo atento percebe que esta decisão foi muito menos favorável para a pessoa visada. A rádio alegou ausência de provas nas suas afirmações e reagiu, retirando a entrevista das suas plataformas. Contrariamente, esta é uma atitude que nunca aconteceu da parte da pessoa visada. Nunca esta pessoa reagiu às suas afirmações que são públicas, feitas à VOA, nem contra o que está escrito no livro. Aliás, isto foi dito por si na entrevista, e, ainda que a pessoa visada viesse a alegar falta de conhecimento em relação ao assunto ou ao livro, esta seria a oportunidade soberana para agir,  aproveitando o veículo da rádio. Não foi o que aconteceu. A reacção da rádio confirma, precisamente, tudo quanto você disse e muito pedagogicamente, na entrevista que ouvi, falando de violações abusivas dos instrumentos legais que regem e regulam a actividade de uma instituição tão sensível, pelo seu mais alto responsável”. 

“Quer dizer que a mensagem que eles transmitiram para a sociedade é que eles são pessoas “normais”, ao passo que a pessoa visada não é. E isto como decisão e pelas alegações que fazem dos motivos da decisão, está muito mais explícito do que implícito. Repare, também, que mais de 24 horas depois, para uma entrevista que percorreu o mundo, a pessoa visada mantém-se serena, fingindo que ignora o caso, enquanto a rádio está sob flagelo da sociedade e o entrevistado continua como se não tivesse dito nada, como também nenhum órgão competente do país reagiu.  Mais vale fazer de conta que não ouviram o que você disse”. 

Cá para nós já sabemos que aguardam por “ordens superiores”. Continuando, o especialista questiona: “o que isto quer dizer? Quer dizer que, se a direcção da Rádio Essencial tivesse, antes de tomar a sua decisão, consultado um especialista, independentemente dos seus fundamentos jornalísticos, este talvez a tivesse alertado para o facto de que a sua decisão seria muito mais prejudicial para a imagem da pessoa visada. Isto considerando que a decisão tenha sido pura e simples do seu Conselho Directivo. Se a decisão adviesse de alguma pressão externa, ainda assim, a direcção da Rádio Essencial deveria consultar um especialista neste domínio psiquiátrico, que a teria aconselhado no mesmo sentido. Ou seja, é a pessoa visada que deve exigir provas ao entrevistado, já que a rádio fez o seu trabalho conforme o que o entrevistado traz publicamente no seu livro, que também está publicamente disponível.  Não é um livro clandestino. E se fosse, o entrevistado não viria publicamente falar sobre o referido livro. A rádio, ao se referir em falta de provas, não apenas reforça a ideia do entrevistado de que, se o que está no livro fosse uma exposição gratuita, o senhor general Miala já se teria queixado, porque ninguém gostaria de ver o seu nome exposto gratuitamente, como demonstra que a aparente indiferença do senhor general Miala é uma certeza inequívoca do que foi afirmado pelo entrevistado, tal como está no livro”. 

Diz, também, que, “se fosse aqui no Brasil, talvez até seria a pessoa visada a processar a rádio pela retirada da entrevista das suas plataformas digitais, uma vez que a rádio alega que a decisão foi do seu Conselho Directivo. Ora, fosse qual fosse o argumento, a pessoa visada poderia interpretar tal decisão como uma protecção ao entrevistado. Ou seja, a anulação da prova. Depois de lhe ter dado voz. Veja que uma decisão, quando não bem avaliada, isto é, dependendo do contexto, pode ter repercussões diferentes”.

“A própria direcção da rádio não soube ser suficientemente cautelosa. A rádio pode ser processada pela pessoa visada, com o pretexto de agir com o intuito de apagar as provas. No Brasil isto teria muitas implicações para a rádio, inclusive o facto de que teria a obrigação de saber o conteúdo do livro antes da entrevista ao seu autor. Se a direção da rádio sabia, de antemão, o conteúdo do livro por que será que deu voz ao seu autor?”, questiona. 

“A decisão de o entrevistar, por si só, seria passível de ser considerada uma acção dolosa com o intuito de ferir o bom nome, a honra e a dignidade da pessoa visada, neste caso, o senhor general Miala. Se o senhor general Miala como a pessoa visada ignora o facto, por que seria a direcção da rádio a se incomodar? Logo, não deixa de ser questionável a iniciativa da direcção da rádio de retirar a entrevista das suas plataformas. E se a pessoa visada que é o senhor general Miala processar a direcção da rádio por agir com o intuito de apagar as provas, uma vez que entrevista passou na íntegra? Estamos perante um dilema, em que mais uma vez o senhor general Miala é confrontado a agir contra a própria direcção da rádio face à sua decisão que tomou. A não ser que esteja por traz dela”. 

Segundo ainda este especialista, “a experiência que a direcção desta rádio deve retirar deste facto não é de se estar a pôr em causa a legitimidade da sua decisão, nem os seus fundamentos. Isto seria, uma outra discussão. O que deve ser analisado são as reacções face até ao que foi dito durante a entrevista, em que, nas suas próprias palavras, o entrevistado diz, com bastante clareza, que, se o que vem escrito no seu livro fosse uma exposição gratuita da pessoa visada, seria ela a se insurgir, para demonstrar que é infundado e, além de infundado, atenta contra a sua imagem, honra e dignidade. O que nunca fez.

“Ora, agindo em sentido contrário, a direcção da rádio confirma o pressuposto desta construção teórica.

“Ademais, se o senhor general Miala resolver agora sair do casulo para intentar uma acção judicial contra o entrevistado, a direcção da rádio não será poupada, como veículo da informação. O facto de a rádio alegar falta de provas nas afirmações do entrevistado e, por esse facto, ter retirado a entrevista das suas plataformas, não a iliba de culpa, pelo contrário, agrava a sua situação. Uma vez que foi o veículo da informação”.

“Contrariamente, se o entrevistado tiver como provar o que foi dito durante a entrevista e o que está escrito no livro, a direcção da rádio não deixará de se sentir completamente ridicularizada”. 

“A questão é: o que deveria então acontecer? O visado fazer uso do seu direito de contraditório e processar o entrevistado pelas suas afirmações, não só pelo que disse durante a entrevista, mas pelo que está escrito no seu livro. O que se podia esperar como consequência? Existirem, ou não, provas substanciais, quer para o que está no livro, quer para o que foi dito, que mais não foi o que está escrito no livro. Havendo provas, o visado passa a ser responsabilizado pelos seus actos. Não havendo provas, o entrevistado passa não apenas a ser responsabilizado pelas suas afirmações e construções teóricas infundadas, como seria completamente descredibilizado perante a sociedade.” 

“Daí que, dificilmente se pode crer que a direcção desta rádio agiu de motu próprio, na medida em que, nota-se, há intenção velada de descredibilizar a imagem do entrevistado e, ao mesmo tempo, de evitar que o assunto seja levado aos órgãos competentes, onde seria possível se assistir a um julgamento público com a apresentação de provas documentais e testemunhas. É isto que a pessoa visada tem estado, claramente, a evitar, se escudando na carapaça do cargo que ostenta”. 

“Infelizmente, a direcção da rádio, por falta de uma melhor avaliação sobre o efeito contrário que a sua decisão pudesse causar, sem pôr em causa a sua legitimidade, nem os seus fundamentos de razão, acabou por confirmar tudo o que foi dito na entrevista. E ainda assim correr o risco de vir a ser acusada pela pessoa visada de agir com dolo, para, posteriormente, anular todas as provas, eliminando o conteúdo da entrevista das suas plataformas. Agora, eles devem ter senso suficiente para estarem capazes desta percepção”, disse, acrescentando que, “se algum deles tivesse já lido o livro, teria percebido os vários aspectos listados por Hervey Cleckley, entre os quais: 

1.⁠ ⁠Charme superficial, ou seja, capacidade para engar; 

2.⁠ Ausência de nervosismo e manifestações psiconeuróticas, que é um aspecto que tem muito a ver com a postura da pessoa visada, uma forma de fazer a sociedade crer que é um indivíduo comedido, mas, na verdade, sabendo ele que esta é a única maneira de fugir ao escrutínio da sociedade e da justiça;

3.⁠ ⁠⁠Tendência à mentira; 

4.⁠ Falta de remorso ou vergonha.

Isto só para citar alguns, atendendo ao que está a ser levado em consideração na ordem do vosso debate. O que é preciso ter em conta é que Cleckley lista 16 itens, mas o indivíduo não tem, necessariamente, de manifestar todos os sinais. Portanto, este é outro aspecto da análise da sua abordagem, como entrevistado, relativamente a sinais e traços de conduta e da personalidade. O que são sinais e traços? Se pedissem a mim, como médico, para apresentar os sintomas do mesmo problema, eu só teria como enumerar. Não teria como apresentar provas. Que provas? A sua explicação foi bastante pedagógica, apontando para as violações e falando da existência de provas destas violações. Mais do que isso, não é possível fazer”.

Daí que, diz ainda o médico, “por mais que respeitemos a decisão da direcção da rádio e os seus argumentos, o que eles devem perceber, querendo ou não, é que acabaram por prejudicar mais a imagem da pessoa visada do que o ajudar. O que foi dito durante a entrevista está dito e não é retirando a entrevista das plataformas que o efeito irá desaparecer. Pelo contrário, a própria decisão acabou por fomentar o problema e dar um juízo de certeza ao que foi dito, em vez de o descredibilizar, como era a pretensão. Esta avaliação é muito importante, do ponto de vista da percepção social, ou seja, da apreensão intelectual. Não estou a me referir à compreensão como tal, mas sim à apreensão dos estímulos da informação explícita e implícita que é: se a informação foi retirada é porque o que foi dito é verdadeiro. Ou seja, se o que foi dito não fosse verdadeiro, o entrevistado já estaria a contas com a justiça nas 24 horas que se seguiram ao dia da entrevista. Isto não aconteceu. O que aconteceu? A sociedade está apreensiva com a sua segurança, ao invés de estar expectante com uma acção da justiça, para punir quem prevaricou, que também pode ser você”.

Por isso, para reforçar diz o seguinte: “como já disse anteriormente, neste preciso momento, a única intervenção confiável só pode vir do próprio Presidente da República”, assim enfatizou o médico psiquiatra forense. 

O que se pretende com este artigo é mostrar a importância da interdisciplinaridade, para reduzir os efeitos negativos de algumas decisões que se podem tomar. Porque se, por um lado, se pode pensar que estamos a colher um benefício, por outro, poderemos estar prejudicar alguém, mesmo sem perceber. Tal como referiu, para concluir, o médico psiquiatra brasileiro: “você agora já não precisa de fundamento, nem para o que está escrito no livro. A postura da rádio é um exemplo prático de que eles não se enquadram no tipo patológico de indivíduos que se escondem por trás da máscara da sanidade. E, se o objectivo era salvaguardar a imagem da pessoa visada na entrevista, acabaram por expô-lo. Assim como, se por um lado, a rádio corre o risco de perder a sua marca de confiança, por outro, em termos práticos, salvou a imagem do entrevistado, dando consistência às suas afirmações, sobre as quais a sociedade em geral passou a fazer um juízo de certeza. Contra factos não há argumentos”.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PROCURAR