(A propósito da deliberação punitiva do Conselho de Disciplina, na sequência da partilha nas redes sociais de um áudio de revelações do Treinador Tramagal)
O mundo futebolístico angolano foi colocado em estado de choque, em função do conteúdo de um áudio, posto a circular nas redes sociais, na primeira quinzena do mês de Junho último, e que se disseminou como um vírus, pois, em amena cavaqueira, o treinador Agostinho Tramagal, ligado à Académica Petróleos do Lobito, e o jornalista Adolfo Manuel, afecto à Rádio 5 do Grupo RNA, trouxeram à tona momentos sórdidos do nosso futebol, relacionados a negociatas sobre jogos e resultados de competições sob a égide da Federação Angolana de Futebol (FAF). E transcorridos cerca de 3 meses, sobre a data do vazamento do áudio, surgiu o Conselho de Disciplina da FAF com uma deliberação, produzida no âmbito do processo disciplinar, por si instaurado, sob n.º0006/23, contida no Comunicado Oficial da FAF, n.º31/SG/23, de 31 de Agosto.
Temos, então, dois fenómenos sobre os quais encetaremos um exercício abreviado de anatomia, de modo a vislumbrarmos e extrairmos conclusões sobre o essencial dos respectivos teores: de um lado, o áudio de revelações “tramagais” e, do outro, a deliberação, de demonstração de força, do órgão disciplinador da FAF.
Em relação ao áudio, depois de o ouvir com a devida atenção, se percebe que se trata de uma gravação feita pelo jornalista Adolfo Manuel, da Rádio 5/RNA, na perspectiva de se redimir/salvar a sua imagem, junto do presidente do Kabuscorp do Palanca, uma vez que foi ele, tal como em vezes anteriores, quem intermediou o acerto de resultado e de valores monetários entre o referido presidente e o treinador Tramagal, relativamente ao jogo para a Taça de Angola entre a Académica do Lobito e o Kabuscorp do Palanca. Com aquela diligência, o jornalista pretendia provar que estavam efectivamente entregues os valores aos destinatários, treinador Tramagal e, por via dele, aos jogadores, e que a falha no cumprimento do acerto de resultado estava no lado dos lobitangas.
Eis, afinal, a história central do áudio, não se sabe em que circunstâncias foi gravado, nem das razões da sua partilha em “velocidade furiosa”, mas, no seu cerne está a necessidade das pessoas envolvidas, na combinação de resultados, travarem-se de razões sobre quem terá falhado, tendo como incidência o jogo relativo à Taça de Angola entre a Académica do Lobito e o Kabuscorp do Palanca, que se realizou no Estádio do Buraco, Lobito, no passado dia 23 de Maio. Logo, os agentes desportivos, enquanto sujeitos da trama, envolvidos são: o treinador da Académica do Lobito, Agostinho Tramagal; o presidente do Clube Kabuscorp, Bento Kangamba; o atleta da Académica do Lobito, Márcio Luvambo; e o próprio jornalista da Rádio 5/RNA, autor da gravação, Adolfo Manuel Bambino.
Pelo que, havendo necessidade, pelos órgãos da FAF, de apuramento dos factos revelados, os sujeitos ora mencionados é que se constituiriam na parte arguida do processo, porquanto, todos os demais agentes e clubes, designadamente, presidente do Clube Williete de Benguela, o atleta Kaporal, o Atlético Petróleos de Luanda (APL) e o 1.º de Agosto foram citados en passant, não sendo elementos da trama e motivos da conversa gravada. Esta é, na nossa visão, a correcta delimitação subjectiva para o processo disciplinar, em sede dos órgãos da FAF.
Agora, a inclusão no processo de agentes citados no áudio, em primeira linha, e os citados, de passagem, estes como casos de ilustração usado pelo treinador Tramagal, não foi o caminho mais acertado, de sorte que acabou por ficar de fora do “raio demolidor” do Conselho de Disciplina (CD) da FAF um deles. Vejamos: o Clube Williete de Benguela, por via do seu presidente é referido, dentre outras artimanhas, como tendo estado na base da ausência em campo do atleta Kaporal da Académica, através de eventual contrapartida financeira, no jogo que opós o Williete à Académica, entretanto, nem o presidente Wilson Faria, nem o atleta em causa foram chamados à pedra pelo CD, fazendo suscitar e reforçar suspeições de tratamento privilegiado que o Williete tem vindo a beneficiar no âmbito da FAF e da própria imprensa. Essa omissão tem relevância, num processo que se queria de reposição da legalidade e da justiça desportiva, face a eventuais condutas lesivas de boas práticas, protagonizadas por agentes do nosso Futebol.
Adentrando para a famigerada deliberação do CD da FAF, temos de frisar, à partida, que os procedimentos usados e a linha de inquirição seguida foram tidos, por essa estrutura da FAF, como os mais adequados para a justa resolução dos problemas/males identificados no Futebol, já que o Direito Desportivo tem princípios e regras próprios, mesmo havendo apelo sistemático a princípios e regras de ramos de Direitos mais consolidados, como o Direito Penal/Processo Penal e o Direito Civil/Processo Civil. Seguramente, outras pessoas ou outras estruturas seguiriam procedimentos e linhas de inquirição totalmente diferentes, até nas conclusões para as sanções a aplicar.
A título de exemplo, sendo o Desporto, em geral, e o Futebol, em particular, espaços de virtudes, era de boa acção, pelos órgãos da FAF, chamar os verdadeiros agentes da trama (Tramagal e o seu Clube, Kangamba e o seu Clube, Márcio e Adolfo), porque, repetimos, o que está em causa é o jogo para a Taça de Angola entre a Académica e Kabuscorp, e não qualquer outro jogo que envolvesse clubes diferentes, para a devida chamada de atenção sobre as consequências dos actos praticados, com sanções pecuniárias ou de outra natureza. Em acréscimo, lhes seria dito que, em caso de voltarem a cair na mesma situação as sanções seriam de maior impacto. Os agentes citados, por acaso (Wilson Faria, APL e D‘Agosto), também seriam chamados para uma reprimenda, ao estilo puxão de orelhas, porque, à luz da legislação da FIFA incorre em adulteração de resultado, portanto, conduta sancionável, quem usa de artifícios extra-campos, no seu jogo ou no jogo de terceiros, com ofertas financeiras, para a vitória ou para a derrota.
Assim sendo, tendo o CD da FAF, seguido as vias que escolheu, nos leva a questionar se, como qualquer Juiz/Julgador, terão prestado a devida atenção para os efeitos devastadores, não apenas para os clubes visados, mas, sobretudo, para o Futebol e o Desporto Nacionais, das medidas que tomaram? Terão lançado mãos de valores/juízos/princípios como a ponderação, o bom senso, a razoabilidade, a proporcionalidade, a igualdade de tratamento, o não entrar em contradição com deliberações anteriores, a primitividade de réus, só para citar esses, para se chegar a uma deliberação verdadeiramente judiciosa? No rol de medidas a aplicar, havendo uma hierarquia de sanções, será que se optou pelas mais adequadas, atendendo ao tipo de infracção, ao grau de participação dos clubes e ao dolo ou negligência associados aos actos? Por fim, a quem aproveita ou quem se beneficia com esse pretendido afastamento de toda a actividade futebolística, por 2 (dois) anos, do APL, quando no presente momento, é o clube que eleva mais alto as cores do país nas competições africanas de clubes, tendo, por mérito próprio, conquistado um lugar no restrito grupo de 8 (oito) equipas que disputarão, a partir deste ano, a primeira edição da Superliga Africana de Futebol?
Porém, há um lado positivo em tudo isso, i.é, o mote para a mudança do quadro. Porquanto, temos a soberana oportunidade de envolver, daqui para a frente, o nosso Futebol com um novo manto, o manto dos bons valores, das boas práticas e dos costumes condizentes com o fair-play. Que a FAF e as instâncias do Poder Judiciário tenham capacidade suficientes para captar todos os áudios e outros meios de denúncia de actos de corrupção (activa e passiva) no nosso Futebol, e no Desporto como um todo, que sempre existiram e continuarão a existir entre nós, para serem convenientemente investigados e punidos, à semelhança do que se tenta fazer a nível do Estado, em relação à depredação do património público e à malversação do Erário. Não podemos mais voltar ao tempo, sem precisar de recuar em demasia, como em 2015, em que o Senhor Horácio “Mi” Mosquito, munido de documentação bastante, para se iniciar investigações/inquirições sobre a corrupção no Futebol, pelos órgãos da FAF, órgãos de apoio ao Titular do Poder Executivo e instâncias do Poder Judiciário, que, até hoje, essas instituições não moveram nenhuma palha! Nem aos “procedimentos subterrâneos” que ouvimos denunciados à meia luz e à boca pequena, por altura dos processos de renovação de mandatos em Federações Desportivas, que depois aparecerem sob a forma de lamúrias de dirigentes de Associações Provinciais, por promessas não cumpridas pelos indivíduos eleitos! E nem ao tempo recente, em que, para os Conselhos Jurisdicional e de Disciplina da FAF, os áudios, obtidos nas circunstâncias em que o Adolfo Manuel fez, não têm valor de prova, devido à ilegalidade da sua obtenção!
Por conseguinte, para um novo começo no nosso Futebol, para um quadro morigerador de condutas, não há voltas a dar, precisamos caminhar todos e juntos para o cenário em que sejamos capazes de expurgar, a cada passo em falso, os elementos que só estão no Desporto e no Futebol para terem ganhos sem olhar aos meios. Definitivamente, esses não fazem falta, incluindo dirigentes que se fazem eleger, por meio de promessas de fundos e mundos ou coisas e loisas. Angola deve dizer basta!
Temos dito!