AS MEDALHAS E OS COMPORTAMENTOS

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O canalha mais completo, é mais visível naquele tipo de pessoa que se esquece, sistematicamente, de elementos comportamentais essenciais. Como aquele que obriga o indivíduo estranho à terra do outro, a ter obrigação de respeitar o seu legítimo dono, por muito coitadinho que ele seja.

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

1 – A reflexão filosófica sobre o conceito de liberdade está desde a Antiguidade Clássica até à Época Contemporânea privilegiadamente associada à oposição entre ser livre e ser escravo. É o paradigma de todas as relações sociais.

Citando Hegel, a professora Regina Queiroz, angolana que é sobrinha de Viriato da Cruz e docente na Universidade Lusófona, em Lisboa, faz essa abertura no magnífico ensaio intitulado “Liberdade”, um trabalho inserido na colecção “Filosofia & Valores” das Edições 70. Trata-se de uma obra que recomendo vivamente, por tudo o que oferece ao leitor sobre a questão da liberdade, um dos conceitos mais intrincados, contestáveis e complexos da história do pensamento humano, segundo a autora.

2 – Li com a devida atenção algumas das muitas opiniões emitidas acerca das medalhas com que, na semana passada, foram agraciados cidadãos angolanos, entre os quais me incluo, a propósito dos Cinquenta Anos da nossa Independência. Até Novembro próximo, serão muitos mais os compatriotas contemplados, segundo ouvi dizer. Terá de ser, já que há muitos nomes em falta. Figuras importantes da sociedade angolana. 

Entretanto, desdobram-se os comentários sobre os critérios de escolha, a mistura de nomes contemplados, o merecimento de uns e o demérito de outros. Chega-se a falar da qualidade, do nível, da classe, de como vêm uns pobres coitados a serem distinguidos! Haveria forma melhor de se escolher e anunciar o prémio? Provavelmente sim. Se fosse eu a determinar, encontraria certamente outra forma de o fazer. Lá estaria a Liberdade em actuação. Cada um a pensar com a sua cabeça. 

– A contundência de certas opiniões sobre o mérito ou não de quem foi ou vai ser medalhado, não deixou de me alertar para um outro conceito, este igualmente próximo da Liberdade das pessoas. Refiro-me ao da canalhice da pessoa humana. Sem o fazer filosoficamente, tentarei explicar-me. Toda a gente é livre de ser o que é, mais ou menos canalha. Mas a canalhice maior, entre tudo o que tem de mau, consegue induzir a população a ignorar o canalha verdadeiro, de aceitá-lo até com os seus defeitos de carácter, só possíveis em tipos manifestamente beras, que têm na tese do ódio o único modo de ocultarem a nenhuma importância a que o povo há muito os votou. O canalha mais completo, é mais visível naquele tipo de pessoa que se esquece sistematicamente de elementos comportamentais essenciais. Como aquele que obriga o indivíduo estranho à terra do outro, a ter obrigação de respeitar o seu legítimo dono, por muito coitadinho que ele seja. Mas, enfim, a lógica da canalhice é fácil de ser observada, está normalmente assente na cobardia das suas atitudes. Por falar nisso, não foi há muito tempo que vi, ao vivo, um desses intérpretes em mostra vergonhosa de como age um cobarde. 

4 – Enquanto não chegam novidades sobre o futuro da União dos Escritores Angolanos que necessita urgentemente de se erguer, passarei a partir desta data e na medida do possível, a dar conta aos meus leitores do que tenho feito nestes últimos tempos no domínio da literatura. O texto que segue é o da abertura do último dos três livros que lançarei até ao final do ano. Espero que o apreciem.

Vivem-se momentos difíceis nos tempos de mudança que o mundo enfrenta. A mentira, a cobardia e a desonestidade andam de braço dado e apresentam-se no máximo do seu esplendor. A farsa mostra-se com descaramento em discursos que avisam sobre os seus perigos. É pecado ter ponto de vista, emitir opinião. Não é fácil a causa da verdade, já dizia Dostoievski. As narrativas sérias correm risco de serem aprisionadas em cadeias de vulgares lugares-comuns. Não obstante, têm a virtude de descobrir no domínio da ruindade humana, várias formas e estilos nas espécies da gente malformada que anda por aí à solta. 

Corro alguns riscos ao percorrer uns certos labirintos da palavra. Conheço os seus perigos. Avaliei todas as circunstâncias e, em consciência, decidi escrever. Aconteceu depois de ter lido Uma Carta para Garcia”, obra de 1899 do norte-americano Elbert Hubbard. Nesse texto, o escritor censura e condena “esta incapacidade para a acção independente, esta estupidez moral, esta fraqueza de vontade, esta falta de disposição para pôr mãos à obra”, para profetizar a seguir, “são coisas que hão de afastar para um futuro longínquo o socialismo puro”.

Os adeptos da sociedade decente e estruturada, género “socialismo puro” identificado pelo americano, não podem ficar indiferentes a temas semelhantes ao escrito de Hubbard. Confesso que fiquei fascinado, embora consciente da distância que separa os angolanos dessa longeva ideia. 

Nas últimas quatro décadas, tenho utilizando como posso, argumentos para identificar e criticar os erros que fazem a nossa desgraça. Passei a apontar o dedo às práticas desarrumadas da frágil sociedade angolana. Elas só acontecem por causa da governação que temos, afirmo-o vezes sem conta. Não me desvio desse tom crítico enquanto persistirem os maus hábitos da maioria da população. A mesma incapacidade, a mesma estupidez, a mesma fraqueza e falta de disposição denunciadas na “carta para Garcia” escrita por Hubbard. 

Angola necessita de ser guiada por novos métodos e, a todos os níveis, por atitudes mais dignas dos seus cidadãos. Tanto dos que são governados como dos que governam.

Ao longo dos anos, contabilizo. São inúmeras as crónicas escritas e as entrevistas dadas, são muitos os órgãos de comunicação contactados. As tomadas de posição públicas não resultam, são tentativas frustradas. A mágoa permanece em mim, tal como se mantém a vontade de não desistir. Insisto na utilização da força da esperança, a última que deixarei expirar. A minha visão crítica, independente de outros factores, não deixará de condenar os erros crassos da administração do País. São os responsáveis maiores das práticas que nos limitam e destroem. Condicionam e impedem cada vez mais o alcance da tal sociedade igual para todos em Angola.

Mudar é difícil, muito mais num País que teima em não mudar. Mas mudar não é impossível. Até porque o mundo foi feito sempre de mudanças. Foi, pois, na base desse pensamento, que decidi escrever este livro. Atento à nossa realidade e numa cuidada observação do quotidiano, tentei, apoiado na longa experiência de vida que tenho, descrever o comportamento das pessoas. Umas governando, outras a serem governadas. Lembrando o trágico passado, mas retratando melhor o presente enquanto perspectivo o futuro incerto do maravilhoso povo angolano.  

Valerá a pena apostar-se num livro, neste País de maus costumes, de baixa literacia e com escassos hábitos de leitura? Tudo vale a pena se a alma não é pequena, já dizia o poeta. Claro que não será um livro nascido nestas circunstâncias nem sequer as ideias do seu autor, capazes, por si só, de mudar um cenário tão difícil como é este que se enfrenta. Mas, pode acontecer, no entanto, que à laia do que sugere o texto do escritor americano, “a minha carta” chegue ao seu destinatário. Neste momento e para o “meu caso”, não importa o que acontece no mundo. O importante é que, este livro e porventura outros, sejam lidos por um Garcia angolano ou por muitos outros, mas que sejam da estirpe do general imaginado por Elbert Hubbard. Que sejam, ao menos, da estrutura de alguém que abra portas à reflexão. Alguém capaz de dar sinal, num toque a rebate, que alerte os valores do patriotismo. Alguém que desperte consciências e sensibilidades teimosamente adormecidas. De um modo a que se inicie, enfim, a jornada direccionada a uma vida melhor. Foi nessa perspectiva, que resolvi escrever este romance assente na maneira de estar e em típicos costumes angolanos.

Após esboçar dois títulos (Alvorada e Munguriná) dei-lhe definitivamente o que melhor reflecte o orgulho que sinto em ser angolano. De ser parte deste maravilhoso povo que humildemente pretendo homenagear. Que mostra também, tanto o inconformismo que me aflige como a esperança que me anima ao escrevê-lo. 

Não me incomodam nem as análises políticas nem a crítica literária que possam recair sobre o meu trabalho. O mais importante é que este texto seja bem entendido por quem o possa ou queira ler. VIVA ESTE POVO MARAVILHOSO não é, nem pretende ser, imitação da obra-prima de João Ubaldo Ribeiro (Viva o Povo Brasileiro). Não me atrevo a tanto. É sim, uma semificção despretensiosa mas muito verdadeira, que glorifica a coragem e a capacidade de sofrimento dos meus conterrâneos. Apraz-me, por isso, oferecer este trabalho aos meus leitores e, com o maior respeito, a todos os patriotas angolanos.” 

É nesse tom que abro o discurso de um romance de cerca de 300 páginas que espero seja apreciado em livro por todos vós.

Dito isto, e apresentando os meus respeitosos cumprimentos, espero-vos a todos, queridos amigos e camaradas, estimados leitores, até ao domingo próximo, à hora do matabicho.

Lisboa, 25 de Maio de 2025

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