Ucrânia. Prolongamento da guerra é, moralmente, indefensável

Um governo que envia os cidadãos para a guerra, mesmo que se trate de uma guerra de defesa, também é responsável pelos mortos, os sofrimentos e a destruição que ela engendra

Joe Biden, presidente dos Estados Unidos da América efectuou um períplo ao Médio Oriente em que participou na cimeira do Conselho de Cooperação do Golfo (GCC)+3, em Jeddah, que contou com a presença dos Estados de Omã, Bahrein, Kuwait, Qatar, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos (EAU), Egito, Iraque e Jordânia, no quadro da estratégia da sua administração para isolar a Rússia, conseguir mais abastecimento de petróleo, mas também, de continuação da pressão sobre o Irão, com o aliado Israel, que acusam de estar a desenvolver armas nucleares. Enquanto isso, apesar do desgaste das sanções que dão conta que só na União Europeia foram congelados 14 mil milhões de euros em bens, a economia russa continua a respirar saúde. E como se diz em Angola, “para dar mais raiva”, Vladimir Putin, presidente da Rússia, tem viagem marcada para o Irão. O objectivo é o de reforçar relações estratégicas de parceria. E imaginem no que vem aí, se por alegada segurança, Israel atacar o Irão?

Enquanto isso, até mesmo nos noticiários internacionais, a guerra na Ucrânia deixou de ser destaque. Como tudo em demasia, também ela entrou na fase de desgaste, de saturação, enfarta, já não constitui actualidade. Em Portugal, por exemplo, prioridade é o combate aos incêndios. Em Itália e Alemanha, estão invadidos pelo medo de chegar ao inverno com os stocks de combustíveis em baixo. Como se pode verificar, a factura que os europeus estão a pagar, já é extremamente alta e os níveis de inflação sobem. E tudo isso, por causa de uma guerra que bem podia ser evitada, mas também pela falta de discernimento das lideranças europeias, subjugadas  à um alinhamento que, em vez de trazer a paz, aumenta o foco de tensão com entrega de mais armas. Para quê? Para que morram mais ucranianos? Para que haja mais destruição? Será que todas essas vítimas morrem mesmo pela defesa dos valores da democracia na Europa?

Como refere Alexander Grau num texto ‘ressuscitado´ pelo Courrier Internacional na sua edição de Julho, “combater até à última bala é desumano. Não interessa a causa por que se luta”. Será que Zelensky ainda não entendeu, ou até entendeu mas não consegue livrar-se de compromissos assumidos com os Estados Unidos? No meio de tantas probabilidades, será que não entendeu que até ele mesmo corre o risco de ser golpeado pelos seus seguidores?

A defesa de grandes ideais não justifica a guerra. No Bundestag, na quinta-feira, 17 de Março, as coisas passaram-se como o previsto. Não, na verdade correram ainda pior do que o previsto, já que, depois de o presidente ucraniano Zelenski ter terminado o seu discurso perante os deputados, não se passou absolutamente nada. Seguiu-se dali para a ordem de trabalhos do dia. Um desperdício histórico.

Embriagados com as narrativas sobre o heroísmo dos ucranianos, preferimos evitar a questão central do conflito na Ucrânia: o prolongamento da guerra, designadamente graças à entrega de armas por parte da Alemanha, era moralmente defensável?

Ainda assim, o jornalista Theo Koll questionou o embaixador ucraniano Andrij Melnyk, durante a emissão da ZDF Maybrit Illner: “Estão preparados para aceitar que haja um limite de número de vitimas civis?” Melnyk indignou-se. “A pergunta é cínica”, respondeu, “são Putin e a Rússia os responsáveis por esses mortos”. 

O que é verdade, evidentemente. Mas a resposta dele é demasiado fácil. Um governo que envia os cidadãos para a guerra, mesmo que se trate de uma guerra de defesa, também é responsável pelos mortos, os sofrimentos e a destruição que ela engendra. Talvez essa devastação seja mais fácil de suportar pelas pessoas, porque ela resulta de um combate por uma boa causa. Ainda assim, a devastação continua a ser devastação. Uma morte por uma causa justa continua a ser uma morte. E aqueles que não se deixam enganar pelos discursos poeirentos sobre o heroísmo e a guerra de libertação devem perguntar-se se tal devastação é justificada.

Uma das raras pessoas que apresentaram claramente esta questão na Alemanha foi (o jornalista científico e filósofo) Richard David Prechet. Para ele, a entrega de armas ocidentais não é mais do que uma forma de prolongar esta guerra e de semear a morte e a miséria. A indignação e tudo o que nós sabemos sobre o rigor da Rússia não deveriam dispensar-nos de “fazer tudo o que é possível para evitar o pior, numa iniciativa de realpolitik. (A realpolitik, literalmente “política realista”, é uma política internacional baseada mais nas relações de força do que em condições ideológicas).

No fundo, trata-se do velho conflito entre a ética de convicção e a ética de responsabilidade. Será que é preciso cismar dogmaticamente em defender grandes ideais como a democracia e a independência, à custa da vida de milhares de mortos, de destruição e de uma escalada extremamente perigosa de uma guerra? Ou será melhor optar por assumir a responsabilidade de proteger a vida e o bem-estar dos cidadãos?

Também se pode abordar o problema de um ponto de vista utilitário e perguntar como fazer o maior número possível de pessoas felizes. A resposta é relativamente simples. Mais vale um fim terrível do que um terror sem fim, poderia dizer-se. Mesmo as causas mais nobres não justificam milhares de mortos e a destruição de regiões inteiras. Combater até a última bala é desumano. Não interessa a causa por que se luta.

O duvidoso pathos que Zelensky tentou insuflar no Bundestag – e que ele exibe quase quotidianamente nos vídeos que publica – não pode fazer com que nos esqueçamos disso. Os ucranianos também morrem por nós? Pela democracia? Pela liberdade? Infelizmente, isso nem sequer é verdade. Mas isto é mais importante: o nó das sociedades liberais não é o colectivo, mas o indivíduo. É a vida do indivíduo que é sagrada. Uma sociedade liberal não sacrifica ninguém – mesmo por uma boa causa, porque nada justifica uma morte.

Neste turbilhão de emoções, muitos esqueceram-se disso, mesmo na Alemanha. No entanto, morrer pela democracia não é melhor do que morrer pela Rússia. O resultado é o mesmo: a morte. Morrer por ideais nobres? Por nós? Basta de conversas. Todos estes homens novos, quer eles sejam russos ou ucranianos, morrem – é simplesmente isso. Morrem na dor, na miséria, sozinhos.

Aqueles que contribuem para que esta guerra prossiga, sob o baluarte de belos ideais e enviando armas, não fazem mais do que contribuir para que a dor, a miséria e a morte continuem. Se o Busdestag houvesse tido verdadeiramente coragem (em Março), teria exigido a paragem imediata das hostilidades – de ambas as partes. Ousemos ser pacifistas.

Autor: Alexander Crau

Adaptação: Kesongo

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