Pode Angola melhorar? (III)

CONVERSA NA MULEMBA 

Visitei há dias em Malanje aquela que deve ser a maior empresa de produção de milho em Angola, onde decorre a colheita de uma produção estimada em 22 mil toneladas em 3.500 hectares, sem recurso à rega. É disso que se deve falar quando se fala em produção em larga escala, tão maltratada pela nossa comunicação social, que a associa frequentemente a números que estão a uma distância abissal.

No Bailundo, o ‘negócio’ de certos camponeses é o aluguer de enxadas para outros que não as possuem, afirmou (cito de memória) o Ministro da Agricultura durante uma sessão do Café CIPRA no passado mês de Março. Este é um dos muitos paradoxos da sociedade angolana em geral e da nossa agricultura em particular. Num país onde se fala de tecnologia de ponta a torto-e-a-direito e se exibe uma linha de montagem de tractores, não existe uma simples unidade de produção de instrumentos agrícolas rudimentares, o mínimo de que um camponês pobre necessita para produzir os seus próprios alimentos e com isso mitigar a fome de que a sua família padece. Trata-se de um dos muitos registos que assinalam a falta de atenção – para ser suave – das elites angolanas para com os pobres. 

Entre os indicadores que atestam o atraso da agricultura angolana podem ser apontados a elevadíssima percentagem da área cultivada (70% de 5,5 milhões de hectares) com recurso a instrumentos manuais – o que exige um enorme esforço de agricultores mal nutridos, especialmente das mulheres – e o baixíssimo consumo de fertilizantes (sete quilos por hectare, contra 67 na Zâmbia). Com estes dois indicadores a produtividade do trabalho e das plantas tem de ser forçosamente baixa. O ramalhete pode ser composto com a reduzida verba atribuída ao sector no Orçamento Geral do Estado (menos de 2% em 2022), o que não permite elevação do nível tecnológico (com sementes de melhor qualidade, fertilizantes e correctivos na medida certa e mecanização na medida certa) sem a qual não se podem esperar aumentos de produtividade.  

Não obstante, a produção agrícola nacional aumentou nos últimos dois anos, apesar de outras agravantes do contexto, como a pandemia, a irregularidade das chuvas e o mau estado das estradas. Isso deveu-se à resiliência dos agricultores angolanos e a um conjunto de medidas simples que já deveriam ter sido tomadas há muito pelo Executivo, dadas as insistentes propostas de organizações e individualidades da sociedade civil. É o caso da realização de feiras provinciais e municipais (123 em 2021, fora as inúmeras por iniciativa das populações sem interferência do Executivo ou da sociedade englobante, como sucede no Uíge há décadas; da criação das Escolas no Campo dos Agricultores, uma metodologia de extensão rural inovadora em Angola mas antiga noutros países de África e da Ásia e que tarda em ser popularizada entre nós; da nova atitude do Executivo em bonificar e facilitar o crédito a cooperativas e associações, embora numa escala ainda reduzida; a adopção das caixas comunitárias como um sistema de micro crédito mútuo, ensaiado por algumas ONGs, envolvendo agricultores que beneficiam de projectos de assistência técnica e financeira por parte de agências internacionais.  

Os passos dados são importantes, mas representam pouco para a necessidade de inversão do ciclo injusto e perigoso que afecta as famílias rurais: redução de capacidades, pobreza, migração de jovens, feminização da agricultura familiar, retrocesso para a produção limitada à subsistência, exclusão social e criminalidade. Um ciclo vicioso que para ser revertido em virtuoso tem de contar com a sempre adiada descentralização e com a criação de redes de pequenos e médios centros populacionais no interior do País capazes de prestarem serviços de tipo diversificado, económicos e sociais, às populações rurais e de gerarem emprego não-agrícola. 

Visitei há dias em Malanje aquela que deve ser a maior empresa de produção de milho em Angola, onde decorre a colheita de uma produção estimada em 22 mil toneladas em 3.500 hectares, sem recurso à rega. É disso que se deve falar quando se fala em produção em larga escala, tão maltratada pela nossa comunicação social, que a associa frequentemente a números que estão a uma distância abissal. Impressiona pela dimensão, mas também pela organização, pela gestão eficaz e eficiente (ao contrário do que é habitual entre nós começou do pequeno) e pela notável responsabilidade social. Desde o refeitório onde comem todos os trabalhadores três vezes ao dia, ao apoio multifacetado prestado a 200 famílias de duas comunidades situadas na envolvente da fazenda. Para além dos empregos oferecidos aos residentes, as comunidades começam a registar o regresso, ainda que tímido, de jovens que haviam migrado para as cidades. 

Trata-se da Unicanda, uma empresa propriedade da Unitel, localizada na comuna do Cuale, município de Calandula (comuna que nos anos 80 era de longe a maior produtora de mandioca e perdeu grande parte da população) onde foi feito um investimento de 30 milhões de dólares e que ao fim de quatro anos apresenta uma receita anual estimada de 10 milhões de dólares. Essa receita permite não apenas cobrir os custos do ano, mas também começar a amortizar os investimentos e permitir novos, mas está ameaçada pela não recomendável importação de fuba de milho, que vai contra os interesses da produção nacional mas dá jeito para as eleições. Importa fazer notar esta informação, por comparação com os projectos públicos a que o saudoso Joaquim Russo (1946-2020) apelidou de Dubai Agrícola e aqui têm sido criticados por mim, todos eles com maior investimento e quase todos falidos e vendidos ao desbarato pelo Estado, mas também com inúmeros projectos privados que tiveram igual fim. 

Estamos perante alguns exemplos do que chamei a Angola que deu certo. Estou convencido que essa Angola seria bem maior e melhor se não se insistisse em governar com base nos interesses específicos de um partido e na sua obstinação em manter uma hegemonia doentia. É o partido que quer uma Angola com mais democracia, desenvolvimento e inclusão e exige que até para se ser director de escola ou simplesmente coordenador de disciplina é exigida militância ou confiança política. É no mínimo assustador. Claro que se compreende depois porque os responsáveis “obrigam” os alunos a participarem nos mais variados tipos de manifestação.    

Para mais Angola dar certo é necessário que o partido no poder entenda que a insistência na partidarização da sociedade é extremamente prejudicial aos angolanos e no final das contas a ele próprio. Com tal insistência não se poderá pôr em marcha o inadiável reforço institucional e das capacidades (sem o qual o ambicionado desenvolvimento será uma quimera), não será possível aproveitar o enorme potencial criador e inovador dos mais variados segmentos da sociedade (sem o que não se poderá falar de inclusão e de democracia), não se conseguirá conquistar a simpatia e a confiança da larguíssima franja da juventude que tem legítimas expectativas e ambições. 

Para mais Angola melhorar e dar certo é imperioso que se acabe com a vergonha a que se assiste diariamente na comunicação social pública. Que não permite vislumbrar um bom ambiente para as próximas eleições.  

Fernando Pacheco, Novo Jornal, 14/4/22

(Publicação autorizada pelo autor)

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