Exagerar o que está bem, esconder o que está mal

CONVERSA NA MULEMBA

“Para mais Angola melhorar e dar certo é imperioso que se acabe com a vergonha a que se assiste diariamente na comunicação social pública. Que não permite vislumbrar um bom ambiente para as próximas eleições”. Assim terminava o texto da minha última conversa, a sugerir o mote para a seguinte

Comecei a consumir informação na minha meninice, por influência do meu Pai, que ouvia as notícias em português de Moscovo, Paris ou Brazzaville (incluindo mais tarde o Programa Angola Combatente), emissoras proibidas na altura pelo regime de Salazar. Já depois da independência seguia os noticiários da BBC, RFI, Voz da Alemanha e Voz da América para ter outras versões da marcha das guerras e do panorama internacional. Com o advento do multipartidarismo a situação alterou-se e internamente começou a haver um leque de maior escolha. O período que antecedeu as eleições de 1992 foi, a par da transição 74-75, aquele em que tivemos acesso a maior diversidade informativa.

Para se ter opinião sobre a qualidade da informação veiculada em Angola e no mundo não é necessário estudar comunicação social, do mesmo modo que para se apreciar cinema ou gastronomia não se exige que alguém seja cineasta ou chefe de cozinha.  

Comungo, pois, com todos quantos se sentem incomodados com a qualidade da nossa comunicação social, principalmente a pública por razões óbvias, pois ela não informa com verdade, não educa, não aborda muitas das preocupações da sociedade, enfim, afigura-se pouco útil aos cidadãos e é extremamente parcial no jogo político e partidário. 

Vale a pena recordar alguns factos. A Constituição da República de Angola refere no seu artigo 17º, parágrafo 4, que “Os partidos políticos têm direito a igualdade de tratamento por parte das entidades que exercem o poder público, direito a um tratamento imparcial da imprensa pública e direito de oposição democrática, nos termos da Constituição e da lei.” No artigo 44 e seus parágrafos 1, 2 e 3 diz-se que “É garantida a liberdade de imprensa, não podendo esta ser sujeita a qualquer censura prévia, nomeadamente de natureza política, ideológica ou artística”; que “O Estado assegura o pluralismo de expressão e garante a diferença de propriedade e a diversidade editorial dos meios de comunicação.”; e que “O Estado assegura a existência e o funcionamento independente e qualitativamente competitivo de um serviço público de rádio e de televisão.”

Por sua vez, no discurso de tomada de posse o Presidente da República afirmou que “a Constituição será a nossa bússola de orientação e as leis o nosso critério de decisão”, que “estamos longe de atingir o ideal … em matéria de pluralismo [na comunicação social]” e fez um apelo “aos servidores públicos para que mantenham uma maior abertura e aprendam a conviver com a crítica e com a diferença de opinião, favorecendo o debate de ideias, com o fim último da salvaguarda dos interesses da Nação e dos cidadãos”.

Durante os primeiros tempos da presente legislatura, tivemos uma comunicação social arejada que, sem ser brilhante, aparentava seguir uma nova via, apresentando ao público os males de que o País padecia. Lembro-me de, na altura, um alto dirigente do partido no poder ter desejado saber a minha opinião sobre o tema. Respondi que era importante continuar a mostrar o que estava mal, mas, ao mesmo tempo, continuar a escrutinar o protagonismo do Executivo, monitorando as mudanças que se fossem verificando, e mantendo o espírito crítico sobre a actividade dos responsáveis pela gestão da coisa pública.

Pareceu-me que os meus argumentos não o convenceram. Na realidade, depois de passado o tempo de nojo em relação ao mandato anterior, para o qual eram remetidas as culpas pelo estado calamitoso em que se encontrava uma parte substancial do território, dos serviços públicos e da população, o estado de graça eclipsou-se. 

O que vemos hoje? A legislação é violada todos os dias pelos órgãos de comunicação social, principalmente os públicos, pela tutela e pelo regulador. No final das contas pelo Executivo, que, por via disso, corre até o risco de ser processado judicialmente. As promessas de 2017 foram esquecidas, e passou-se a exagerar, e de que maneira, os novos feitos, de modo quase ridículo. 

No mês de Abril os noticiários do principal canal televisivo encheram os olhos e os ouvidos das pessoas, de manhã, à tarde e à noite, com as repetições dos valores da paz – com desrespeito por princípios da reconciliação nacional – que, como se fosse pouco, apanhavam ainda as cansativas reportagens “Por Angola”. Mas dizer que o novo Hospital de Cabinda não fica a dever nada ao Hospital da Luz, em Lisboa, faz algum sentido? E exaltar a entrega de títulos de terras a mil famílias num processo iniciado há mais de três anos quando que há 2,9 milhões de famílias agricultoras? E elogiar os benefícios da Reserva Estratégica Alimentar sem que se analisem os efeitos perversos que o processo está a gerar na produção nacional e os prejuízos dos agricultores? E embandeirarmos em arco por termos subido quatro lugares e ultrapassado o Brasil em matéria de liberdade de imprensa, escondendo as duras críticas da mesma organização a Angola? E salientar os apoios aos ex-militares 20 anos depois do fim da guerra, agora que muitos terão morrido e outros estão próximos do fim da vida, sem que se analise criticamente o abandono em que eles se encontraram durante todo esse tempo? 

Do mesmo modo que se exageram os feitos, escondem-se os efeitos (um morto, 23 casas destruídas e centenas de pessoas sem abrigo) da chuva no dia 14 de Abril em Luanda; as demolições sem negociação nem aviso prévio de residências que famílias humildes construíram com muitos sacrifícios nas cercanias do futuro aeroporto de Luanda; a evolução do espantoso caso Lussaty; os roubos nas fazendas e as invasões de terras, reflexo da crise também escondida, e que estão a minar a confiança dos agricultores; as várias greves em sectores fundamentais da sociedade e as razões dos grevistas e sindicalistas; o escândalo da obrigatoriedade de alunos e trabalhadores da função pública participarem nos actos de massas do partido no poder; as críticas ao Executivo por parte de padres e outros religiosos; os efeitos negativos da valorização do Kwanza na produção nacional e na vida dos produtores, entre muitos outros factos.

Seria expectável que estes desafios fossem analisados no debate parlamentar proposto pelo partido maioritário no passado 21 de Abril. Uma vez mais ficou demonstrada a incapacidade de quem manda nessa matéria. Debater não é fazer discursos, mas sim trocar pontos de vista e procurar soluções para os problemas. O resultado daqueles discursos foi uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. Desse modo, o fantasma da fraude eleitoral continuará a povoar a mente de grande parte dos cidadãos.  

Fernando Pacheco, Novo Jornal, 20/5/22 (com permissão do autor)

PS – A proposta da Nova Divisão Administrativa (NDA) que circula nas redes sociais incorre em algumas incongruências que importaria assinalar. Por exemplo, não faz sentido separar o Município do Púri dos de Negage e Bungo, pois todos integram uma região natural de notável relevância económica que é o Planalto de Camabatela. Infelizmente repetimos os erros do poder colonial.

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