ZOOM DA TUNDAVALA
Também elas são um bem público. Devem ser cuidadas, mantidas, conservadas. Pelo dono, por alguém, ou por alguma entidade sob a sua responsabilidade. Portanto, será lícito admitir que a depredação que resulta da falta de cuidado, conservação, manutenção, “das veias por onde circula o sangue deste país”, se se quiser, que resulta da incúria do próprio dono, devia ser adequadamente tipificada.
A expressão “o calcanhar de Aquiles” é usada quando se faz referência a um ponto fraco ou vulnerável de uma pessoa, ou organização. Essa expressão deriva da lenda grega de Aquiles, um herói invencível que tinha apenas um ponto fraco – seu calcanhar. Segundo a lenda, a sua mãe, a deusa Tétis, para o tornar invencível, banhou-o no rio Estrige, mas, segurou-o pelo calcanhar, tornando vulnerável essa parte do seu corpo. Não vamos deambular pela mitologia grega porque essa, é mesmo ciência, e estuda os mitos, as lendas, os deuses… já agora, gregos. Vamos só dar uma volta pela nossa realidade que, não sendo propriamente mitologia, não tarda constituirá matéria para cientistas se aplicarem, muito seriamente, no estudo da razão de ser de tantos calcanhares de aqui(les). Afinal já lá vai quase meio século desta nossa história, não é brincadeira. Por isso, é aceitável ser perturbador dar conta que aqui(les) temos tantos calcanhares.
Ninguém duvidará se se disser que um dos mais problemáticos calcanhares que aqui(les) temos, sem tirar o (des)mérito de todos os outros, reside na ausência total e completa de programas, planos, estratégias, chamem-lhes o que quiserem, de manutenção, conservação, preservação da coisa pública.
Neste particular, o principal calcanhar que aqui(les) estamos com ele, é o das estradas, centrando a atenção nas principais, as designadas “estradas nacionais”, já que as secundárias e as terciárias deixaram de estar na lista dos “interesses”, e parece até que já não estão no mapa. Apesar de muito se ter falado e escrito sobre estradas, delas e da sua importância, do tema “estradas” estar permanentemente na ordem do dia, certo é que, só quando troveja é que alguém se lembra da Santa Bárbara.
Com o fim da guerra civil, assistiu-se a uma desenfreada corrida à reparação/reabilitação das estradas, pois era certo, elas estavam mesmo péssimas, demorava-se uma infinidade de tempo para percorrer meia dúzia de quilómetros, o país mexia e precisava de andar. Tão desenfreada foi a corrida que, nessa maratona, fizeram-se estradas da maneira que é sabido porque, desenfreada, também, foi a correria aos dinheiros que jorravam a rodos dos cofres públicos, e até se prometeu que o país vai ter mais estradas asfaltadas que no tempo do colono. Bazófias!
Daí para cá, nunca se ouviu falar, viu, ou se soube da existência de um programa consistente, sério, responsável, de manutenção, conservação, do que afinal tanto custou a todos: as estradas. O calcanhar é tão grande que aqui(les) nem sequer se é capaz de levar a cabo um trabalho permanente de tapa-buracos, de limpeza de bermas e valas e, as estradas, que são muito importantes na hora de fazer discursos, são deixadas ao abandono, não há quem cuide delas, faça a sua manutenção de forma permanente. Supostamente será mais “vantajoso” reabilitar uma estrada quando ela está totalmente rebentada, do que fazer a sua manutenção pontual, regular, programada. Num país onde importar tudo é que fica bem e é bonito, nem sequer há a habilidade para ir aqui bem perto, em África, onde até se pode ir de carro e, pelo menos, ver e copiar o que se faz por lá em matéria de conservação das estradas. Nem para copiar há capacidade! Ou interesse!
O calcanhar é tão grande, que aqui(les) já nem se sabe onde mais dói porque, apesar da existência formal de uma série de instituições, organismos, voltados para as estradas, apesar de ser conhecido “o dono” delas, não se sabe sequer, com exactidão, quem é responsável pela sua manutenção e conservação. Ou pela falta dela.
Depois, quando as estradas viram autênticos queijos suíços, quando já não há estrada (queijo) e já só há buraco, quando troveja, e não se consegue conter as reclamações e é melhor fazer alguma coisa para “calar esses gajos”, lá vêm planos mirabolantes para a reabilitação de estradas, a Santa Bárbara, com custos infinitamente maiores, para tentar tapar o sol com a peneira. Nessas ocasiões, dinheiros aparecem, entregam-se as obras a quem seja mais da conveniência, mas, antes, como aconteceu há larguíssimos meses, vêm da capital, ministros, directores, (i)responsáveis de todos os escalões, de avião, lógico, para o Viti Vivari, ali perto da Cacula, na província da Huíla, para descerrar, perante a imprensa, como convém nestes casos, placas que anunciam o início da reparação/reabilitação do troço de… até…, na estrada nacional 105, para acalmar a malta e mostrar, perante as câmaras que, estamos a trabalhar. As obras levaram uma eternidade a arrancar e, ao que se julga, marcham ao alucinante passo de caracol.
É por demais evidente que, quem padece nos queijos suíços, caminhos tremendamente esburacados em que se transformaram as nossas estradas, são os que mais delas necessitam para ganhar o pão, para fazer o país acontecer, para não parar: os automobilistas, com especial destaque para os que as percorrem transportando cargas, ou passageiros. No entanto, todos os que as utilizam, já agora os também desejados turistas, são os que sofrem com o desgaste mais acentuado e acelerado dos veículos e com as consequências que disso resultam. São esses mesmos que, para percorrer a distância entre Lubango e Benguela, em 4X4, necessitam de, pelo menos, 6 horas, a uma média abaixo de 60 km/h, e muita perícia e paciência, para fintar tanto buraco e orifício. Ou seja, uma vergonha, que só não envergonha quem devia ter vergonha das estradas que estamos com elas.
Caricato é, também, culparem-se só e apenas outras causas pelos acidentes que ocorrem nas nossas estradas quando, não raras vezes, o acidente se ficou a dever mesmo ao mau, péssimo, estado das estradas. A culpa de qualquer acidente que ocorre nas estradas da nossa buala é sempre do mau estado da viatura, do condutor, por manobras isto e aquilo. Nunca é por culpa da estrada. Em países a sério, acidente causado pelo mau estado da estrada tem sempre culpado: o dono dela, que se obriga a ressarcir quem tenha sido lesado.
Numa altura em que muito se discute a criminalização da vandalização dos bens públicos, e até se pretendem penas mais pesadas para quem vandaliza um bem público do que para quem estupra, por exemplo, fica-se com a sensação de que se está a contornar o calcanhar da manutenção e conservação dos bens públicos, principalmente naqueles casos em que, essa falta, ou ausência de manutenção, tem causado estragos infinitamente maiores e de repercussões que ninguém se atreveu ainda a medir ou estimar.
Vozes, também sabidas, têm estado a considerar que a criminalização da vandalização de bens públicos que se pretende, visa essencialmente a que resulte de actos ou acções de natureza diferente e, vendo bem o assunto, certamente se está a assobiar para o lado para as consequências da depredação dos bens públicos que resulta da incapacidade, do desinteresse, da falta de vontade de conservar, manter, os bens cuja gestão e administração cabe e compete, no caso, ao próprio Estado.
Afinal, a estrada também é um bem público, que deve ser cuidado, mantido, conservado. Pelo dono, por alguém, ou por alguma entidade sob a sua responsabilidade. Portanto, será lícito admitir que a depredação que resulta da falta de cuidado, conservação, manutenção, “das veias por onde circula o sangue deste país”, as estradas, se se quiser, que resulta da incúria do próprio dono, devia ser adequadamente tipificada.
Nesse sentido, o pronunciamento que fez um deputado, lá, da casa das leis, indica isso mesmo: a importância dos bens e serviços públicos para a futuro de Angola (…) as estradas que conectam as nossas comunidades (…). Por isso, atacar estes recursos preciosos, é atacar o coração do nosso desenvolvimento, comprometendo o sonho de uma Angola justa e próspera para todos.
Concordando com o autor de tão “sábias” palavras, e já que elas vieram de alguém lá de dentro, que pretendeu, assim, justificar a já controversa proposta de lei da criminalização da vandalização dos bens públicos, não será criminalizável presumir a existência de matéria para criminalizar quem, por omissão, desleixo, falta de vontade ou de interesse, por incapacidade ou incompetência, não cuida, não mantém nem conserva, em suma, como disse o deputado, ataca estes recursos preciosos, (…), comprometendo o sonho de uma Angola justa e próspera para todos.
Ou há moralidade, ou comem todos!