Luís dos Passos. “Quem matou em casa do Kiferro foi o Tony Laton” (Parte 2 fim)

Coincidência – com a oportunidade de abordagem deste tema sobre o “27 de Maio” –  na sequência do pedido de perdão feito em nome do Estado pelo presidente João Lourenço por essa altura no ano transacto, o Governo vai entregar, amanhã, quarta-feira (08.06), as ossadas de quatro das vítimas da chacina que se seguiu após a suposta intentona de 1977. São (dizem), os restos mortais de Nito Alves, suposto líder de uma alegada tentativa de golpe de Estado, de Jacob João Caetano “Monstro Imortal”, de Arsénio José Lourenço Mesquita “Sianuk” e de Ilídio Ramalhete.

Com base em declarações de familiares de várias vitimas residentes em Angola e no exterior, este processo está envolvo por uma grande nuvem de suspeição, por falta de transparência nalguns actos mas também pela ligação de alguns técnicos (quiçá coordenação efectiva), supostamente, aos Serviços de Inteligência, para eles, uma entidade que pode encobrir factos por estar ao serviço do Estado, mas também do partido dominante, que afinal, tem as suas impressões digitais na chacina, o que não deveria ser. E essa suspeição não deve ser ignorada, porque é plausível, porque ao longo desses 43 anos, e suportada por testemunhos de vítimas de tortura e de matadores, muitos corpos foram queimados, alguns até vivos, ou atirados ao mar, mas também à rios infestados por jacarés. Portanto, esse é de facto um processo complexo, que pode estar a servir apenas, de bandeira política para benefício, também político, da força dominante do Sistema que baralha e dá as cartas.

Francisco Queiroz, ministro da Justiça e coordenador Comissão de Reconciliação e Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP), que anunciou mais esta entrega, disse que as ossadas destas quatro pessoas encontravam-se junto dos restos mortais de cerca de 20 outros indivíduos, estando ainda a decorrer o processo de análise genética para determinar o ADN. Essa informação, por si só, pode parecer contraditória, porque Monstro Imortal e Nito Alves foram presos, torturados e mortos em períodos diferentes. Um, logo no início e outro, só depois da sua captura, no Piri, dois meses depois, em Julho, como aliás, Luís dos Passos faz referência porque esteve com ele nas matas. 

Este projecto Desamarra (a história), continuará no encalce de factos que esclareçam este e outros casos relacionados com o nosso passado e presente. Apesar de nesta segunda parte darmos por concluída a entrevista que nos foi concedida por Luís dos Passos, a quem agradecemos, isso não significa, entretanto, que encerramos a abordagem deste caso porque continua a enlutar a nossa história e as famílias angolanas. E esse sentimento não se expiará, enquanto o nosso “Deus visível e invisível”, refiro-me ao “Sistema” implantado pelo MPLA não perceber, que a solução, ou melhor, o verdadeiro perdão e a nossa reconciliação, não devem continuar prisioneiros dos seus interesses. Até porque, hoje, ninguém mais está interessado em perseguições, em prisões ou em novas matanças. Estamos sim mais interessados na paz das nossas consciências, um processo que é mutante mas permanente, e não passa pela criação de novos fogos de hostilidade. Porque afinal, negros, mulatos ou brancos os que torturaram e mataram, os que foram torturados e morrem, negros, mulatos e brancos, pertencem todos à mesma família: Angola.

Mas, na construção do futuro, não vale deixar pontas soltas. “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8:32)

Ramiro Aleixo

KG- Disse, na primeira parte da entrevista, que foi você quem autorizou que levassem Petroff para o hospital, na viatura de Saydi Mingas. Mas ele (Saydi Mingas) também estava detido na 9ª Brigada? Como assim?

LP– Sim! Saydi Mingas estava lá, detido na 9ª Brigada, e o carro também. Estavam lá detidos também o comandante Bula (José Manuel Paiva), o comandante Nzagi (Eugénio Verissímo da Costa), o comandante Dangereux (Paulo Mungongo), o comandante Petroff (Santana André Pitra) e o comandante Che Guevara (Garrido). E isso porque quando há uma insurreição, todos os adversários ou quem possa oferecer resistência devem ser detidos. E foi o que aconteceu. Mas nunca houve intenção de os matar. Se assim fosse, o Petroff, que mandou a Polícia disparar contra a população, não teria saído de lá. Não havia interesse nenhum vê-lo a contorcer-se com dores, e por isso, ordenei que o levassem para o hospital. Naquele momento, por ausência dos demais, a autoridade máxima naquela unidade era eu. E foi assim que ele se safou. Não voltou mais.

Colocou também a questão sobre a suposta intervenção do doutor Banana (Mello Xavier) e que foi ele quem levou o Petroff. Isso é mentira, até porque eu já conhecia bem o Mello Xavier, sabia que nunca foi médico. Que eu me lembre, ele nem o 5º ano fez. Eu conhecia-o do Liceu Paulo Dias de Novais. Quando havia provas de frequência, inventava sempre situações para escapar-se e até há uma cena engendrada em que supostamente fracturou os dois braços, envolveu-os em gesso, mas era só para não participar nas provas. Só que uma professora encontrou-o de noite a tocar piano numa festa. Ele já tocava nos The Five King. No pós-independência, uns meses antes, quando regressou de Espanha, apareceu alegando que era empresário do Joselito (cantor espanhol nos anos 60/70) para ver se ganhava algum dinheiro. Portanto, ele não conseguiu enganar-nos. Todos sabíamos que ele não era médico.

O Che Guevara também não teve problemas, porque quando foi detido ele próprio colocou a questão nos seguintes termos: “Meus filhos, afinal é para lutar contra o Iko Carreira? Se soubesse eu saia logo de manhã convosco!” E deixamo-lo solto. O Tino Cabuato, esse mau, mijou-se todo mas ninguém o prendeu, porque era um borra-botas. Não valia nada, não tinha importância nenhuma.

Quero recordar e esclarecer também, ainda sobre isso, que nós não tínhamos nenhuma ambulância para transportar toda essa malta para o Sambizanga. Eles foram transportados da unidade para o Sambizanga, para a casa do Kiferro, num carro normal.

KG- E como é que eles depois apareceram mortos? 

LP- Foram fuzilados em casa do próprio Kiferro, e isso pode ser confirmado junto da família dele, por exemplo da Carla, sua irmã, que foi vice-governadora de Luanda. Eles foram fuzilados por um homem da DISA, conhecido por Toni Laton, que apareceu lá sem se saber como, e, provavelmente, com a ajuda de alguém, colocou os corpos numa ambulância que depois foi encontrada naquelas barrocas entre o Sambizanga e o Miramar.

KG- Mas então eles não foram fuzilados pelos “fraccionistas”?

LP- Não! Isso não é verdade. Foram todos fuzilados ali sim, por esse tal Toni Laton, que disparou indiscriminadamente para o compartimento onde eles estavam fechados. Os meus detractores, como o Silva Mateus, para ganhar alguma cotação no MPLA, dizem que foi o Luís dos Passos quem matou. São mentirosos. Se tivesse sido eu, não teria dificuldade de dizer que fui eu. Os militares entrariam em acção para no palácio pressionarem Agostinho Neto a afastar corruptos e inconsequentes! Mas não houve necessidade de fazer isso, até porque se houve orientação de cima para fuzilar – e não havia – seria o Zé Mingas quem teria que dar a ordem. Mas não deu e não daria essa ordem, por motivo algum. Porque motivo ele havia de mandar matar o próprio irmão, o Saydi Mingas? Fazia sentido isso? No nível de conflito que existia, havia motivo para o Zé Mingas dar ordem para matar o próprio irmão? Não havia?

Outra questão que é importante recordar, é que foi o Zé Mingas quem me entregou a lista elaborada pela DISA para levar ao Nito Alves e ao Zé Van-Dúnem, onde estavam referenciados os 70 indivíduos que deveriam ser presos antes, entre 23 e 25 de Março, quando se fez a primeira previsão da insurreição. E nessa lista não constavam os nomes de Nito Alves nem o de Zé Van-Dúnem. E quando eu perguntei porquê, ele disse-me que o objectivo da DISA é que eles deveriam ficar em liberdade, para continuar a atrair gente que eles continuariam a prender. Um truque que já era utilizado pela PIDE. Portanto, o que estava preparado é que eles ficariam ainda mais tempo soltos, para atrair mais gente. E durante aqueles dias, eles estavam a preparar a cadeia de S. Paulo para receber esses presos. O Hélder Neto foi encontrado as cinco da manhã na cadeia de S. Paulo, porque estava lá a executar trabalhos para receber essas pessoas. O Carlos Jorge também estava noutra cadeia, na Casa de Reclusão, a fazer o mesmo trabalho. Por isso é que a tropa da Direcção Política quando foi à casa do Carlos Jorge não o encontrou.

Mas, abro aqui um parêntesis para dizer que, contrariamente ao que escreveu um tal Queirós, eles não foram assassinados pelo Borges Kiabukissa (citado no Relatório do Bureau Político do MPLA), o homem que me ia substituir nessa área de organização partidária, que chefiou a operação da ida a casa do Carlis Jorge. Ninguém abria a porta, e quando ela foi arrombada, a mulher dele atirou-se contra o primeiro soldado que estava a frente. E no puxa daqui puxa dali, a arma disparou e ela ficou ferida no braço. Depois de comunicarem a ocorrência por rádio, eu orientei que levassem a senhora para o hospital. E assim se fez.  A senhora, acompanhada por dois homens, foi levada para o hospital. Isso atesta que não havia intenção de matar ninguém.

KG- Nessa Declaração do Bureau Político constam vários nomes de acusados…

LP- Sim! Estão lá vários nomes, mas o que se diz sobre a actuação de cada um não é tão verdade assim…

KG- Refere-se por exemplo que com a ajuda de Luís dos Passos e Rafael dos Santos, das FAPA, constituíram três esquadrões da morte chefiados por esses dois responsáveis e por Sidónio Borges, da DISA, e dos quais participaram entre outros, Manuel Albino Gonzaga “Chiquinho”, Piko Madiwana, Caló, Barreira da Morte, Catalahadi e elementos da Guarnição do Comissariado Político. Estes grupos, de acordo com a declaração, deveriam liquidar os responsáveis do Comité Central, do Estado Maior e da DISA visados segundo um plano preparado por Manuel Gomes, um antigo comando que Nito Alves coloca na sua supervisão dos assassinatos…

LP- Eu não conheci esse tal Sidónio, nem esse tal Manuel Gomes, referenciado como comando. Isso foi tudo uma história inventada para justificar o que depois fizeram. Foram buscar nomes de pessoas que já estavam presas e talvez mortas, e puseram nessa declaração.

Quando os homens (presos) foram levados para o Sambizanga e depois aparece o tal Tony Laton que os fuzila, puseram os corpos numa ambulância que saiu de lá para as Barrocas do Miramar. O único que saiu de lá vivo foi Ciel da Conceição “Gato”. Mas ele devia contar a história de como é que depois de regado com combustível (gasóleo) e de terem ateado fogo, conseguiu safar-se. Por outro lado, estavam lá dois colaboradores do Nito Alves, que também foram fuzilados. O NZagi, que alguém de uma família veio dizer que foi apanhado depois, mas eu não confirmo porque sei que estava lá nos quartéis de manhã. O NZagi era colaborador de Nito Alves e o Eurico era outro amigo dele. Se eram colaboradores de Nito Alves, o chefe deles, o Zé Mingas, não ia dizer aos demais para levarem o seu próprio irmão, Saydi Mingas, para que o fuzilassem e queimassem. Até hoje pergunto-me como é que o NZagi apareceu morto nesse grupo? Só pode ser porque eles precisavam de criar um álibi para nos matarem. E morreram todos, incluindo o Saydi Mingas.

Reafirmo que não houve nenhuma tentativa de golpe e aquilo foi um falhanço, porque Nito Alves nunca pensou em fazer um golpe. Se tivesse pensado em golpe, teria sido melhor. E foi por não pensar em golpe, que alguns generais recuaram, disseram logo que não participariam. E foi o que aconteceu. Mas não havia, de facto, um plano estruturado. E quando as coisas correram mal, já não deu para fazer mais nada.

A maioria dos meus colegas, a excepção daqueles que foram até ao Piri e que éramos cerca de 100, pensaram que seriam julgados. O Galiano, o Kitumba, o Betinho, o Mbala  e outros, toda essa gente que foi fuzilada, pensava que havia de ser julgada e que teriam a oportunidade de fazer a sua defesa, porque achavam que do ponto de vista dialéctico, tinham razão. Eu só escapei porque não acreditei nisso. Tenho um primo que chegou a vice-presidente do MPLA, no Congo, o José Domingos Kiosa, que contou um dia ao meu irmão Boaventura Cardoso, quando fez uma viagem em serviço pela Nigéria e por aí fora, que estava refugiado há bastante tempo porque Agostinho Neto tentou matá-lo. Atiraram uma granada em sua casa, no Congo, e um dos filhos até ficou deficiente de uma perna. E depois também contou a história do Mathias Migueis, que foram enterrados vivos e deixaram-nos com as cabeças de fora, ao sol. Conhecendo todos esses casos, fiquei com a percepção de que havia muita coisa mal esclarecida.

Já um primo meu, que estava na FNLA, o Rosário Neto, filho de uma prima, a Júlia Filipe Barroso, uma referência nossa em Malanje porque foi organizador das lutas na Baixa do Cassanje e fugiu mesmo de Malanje para o Congo Kinshasa, foi morto a mando de Holden Roberto. Então naquele momento pensei nessa história do Domingos Kiosa e não tive dúvida de que Neto havia de mandar matar-me. Contrariamente ao que os outros pensaram, eu achei que tinha que me pôr à fresco. 

Mas também não fugi de forma atabalhoada. Não! Fui para casa arrumar as minhas coisas. Não deixei vestígios, contrariamente aquelas fotografias que apareceram e do que se escreveu que encontraram armas em casa do Luís dos Passos, incluindo caçadeiras. Tudo isso foi mentira. Não deixei nada disso. Até a máquina policopiadora  enterrei; papeis, livros sobre Fundamentos da Teoria Marxista Leninista, de Constantinov, que naquela altura consumíamos, tudo isso enterrei. Não deixei nada. Despedi a minha mãe que estava preocupada. Nem sequer disse nada aos meus irmãos. Sabia que eles não iam pegar-me facilmente. Mas se fossem até minha casa tinham que ir com tropa preparada para o combate, porque eu podia matar alguns. Não aceitaria entregar-me, como aconteceu com os outros. Sairia a disparar, a matar e eles a disparar e a matar. Seria um combate sério ali à porta. Não sairia assim. Eles só foram à minha casa muitos dias depois. 

KG- Fugiu com o Nito Alves ou ele estava, como se diz, sob custodia da embaixada da URSS?

LP- O Nito Alves fugiu por Caxito.

KG- Mas há uma versão alimentada por cubanos, que diz que ele  esteve na embaixada da União Soviética e foram eles quem receberam o Nito Alves. Não é verdadeira?

LP- É falsa. O Nito Alves saiu de Luanda para o Piri. Chegamos no mesmo dia e encontramo-nos com o Bakalof e o Bagé, que fugiram separados, mas com os seus motoristas e guardas. O motorista do Nito, o Audácia, também foi fuzilado. O Bakalof levou dois motoristas, o Será e mais um outro. Eu fugi por Pango Aluquem. Segui por Maria Teresa, entrei pelo Cuanza Norte, cortei por Pango Aluquem e depois fui parar a Quibaxi e ao Piri. Chegados lá, conversamos sobre o que havíamos de fazer, guerrilha, por exemplo. Recusamos fazer guerra, mas concordamos que teríamos que estar melhor organizados, o que não fizemos antes. Eu também tinha uma noção muito vaga sobre isso, porque já se dizia, na mata, que vamos ter grupos em Malanje, Huambo e em mais províncias; que vamos atacar o nosso adversário porque senão matavam-nos. Já viu o que seria se 20 mil homens, com toda a 9ª Brigada, tivessem fugido para a mata? Eles não conseguiriam apanhar-nos. Podíamos morrer de fome ou de outra coisa qualquer. Depois enfiados numa mata sempre te safas. Estive lá 12 anos e sete meses e sempre me safei. 

No grupo de Nito Alves éramos 22, mas fomos diminuindo e ficamos 17, separados, porque uns, tal como o Bakalof, eram de Nambuangongo. Eu, o Bagé e o Nito Alves ficamos no Piri, numa zona em que havia um rio no meio, o Dange lá em cima e Dande aqui em baixo. Certo dia saí com o Bagé para fazer reconhecimento, para ver quem era o comandante que andava por lá. Eles tinham enviado o Margoso.  E ficamos ali a recolher informação. Depois de cumprida a missão de reconhecimento, não conseguimos voltar porque acabou-se a carga da bateria do rádio. E já havíamos sido atacados e nesse ataque prenderam todas as mulheres, entre as quais a Boneca, a Fé Narciso (irmã do Tany Narciso) e Virinha (Elvira da Conceição), comandante do Destacamento Feminino, a unidade que foi atacar a Cadeia de S. Paulo para libertar os presos. Essas quatro estavam lá. A Nandy, estava grávida, havia sido presa com o Veloso em Catete, e fugiu pela linha férrea. Como diziam na RNA, puxou pela pistola para tentar matar-se e o Veloso não deixou. Estávamos lá todos com essas senhoras.

KG- Todas essas pessoas que está a referenciar, foram mortas depois de terem fugido?

LP- Foi um mês depois do 27 de Maio. Eu acabei por ficar separado do grupo e sem saber como contactar com os seus integrantes. E em 13 ou 14 de Julho, o Nito Alves foi preso. Ele foi pedir informações a um familiar (primo) numa lavra, um velho chamado Simão, e esse indivíduo traiu-o. Denunciou-o às tropas que estavam por lá, dirigidas por Margoso. Para entreter Nito Alves, mandou matar uma galinha, já que ele estava com fome e cansado. Mas, afinal era uma armadilha. Quando Nito Alves deu conta do movimento de carros que estavam a chegar junto à cabana na lavra, como era guerrilheiro, conseguiu escapar-se rapidamente. Um nosso companheiro, da 9ª Brigada, que o acompanhava, o Cavongota, também tentou escapar, mas levou um tiro na barriga e morreu ali mesmo.

O Nito Alves ainda conseguiu sair dali. Mas como as lavras de mandioqueiras naquela zona dos Dembos são muito fechadas, não conseguiu ir muito longe. Ficaram ali aos tiros até de manhã, e Nito Alves ainda feriu sete dos seus perseguidores com a única pistola que tinha. Eles ficaram a pensar na certa: “Se com uma pistola ele feriu sete, estamos mal se continuamos aqui”. Então, para não continuarem a ter feridos e problemas, foram à uma sanzala do Piri, pegaram na população sob ameaça de armas, e meteram-na na plantação para “apanhar o vosso filho, senão vocês morrem todos”.

Quem comandou essa operação foi o Margoso, esse que durante a guerrilha foi da UPA e  muitas vezes já tinha ameaçado essa população de morte. Ele foi major, membro do Comité Central. Ele ameaçava a população que se não entrasse para a UPA seriam todos liquidados. Um dia o Margoso chegou sob ameaça de que se a população não fosse com ele para a mata, ele havia de mandar o quiçonde (formiga que actua em grandes concentrações como um exército). Havia uma senhora, Antonica Domingos Fula, mãe desse individuo que foi vice-governador do Bengo, que no meio de tanta gente que já tinha apanhado surra das tropas da FNLA, entre os quais o Ho-Chi-Min,  respondeu: “Olha comandante Margoso na minha sanzala diz-se: quando o quiçonde está para atacar, devemos preparar lenha com fogo para combatê-lo”. Ele, claro, não gostou. Respondeu que a população do Piri era “refilona. Um dia vocês vão ver”!

E as populações retiveram tudo isso. Quando aconteceu o 27 de Maio, o MPLA e a DISA pegaram num antigo chefe de posto colonial muito mau, o capitão Carlos, ex-colaborador da PIDE, e puseram todos esses contra o Nito Alves. Logicamente que o Margoso estava interessado em ver o Nito Alves morto. Aliás, para além de ser um adversário de Nito Alves nas matas, foi ele quem prendeu e mandou matar a Deolinda Rodrigues e outras e outros… Toda a gente naquela região sabe quem foi o Margoso. O tal Carlos, de agente da PIDE que andou a prender e a matar gente no Piri no tempo colonial, passou a capitão das FAPLA. Logo, duas pessoas muito interessadas em mostrar serviço. 

KG- Mas, de acordo com um livro editado recentemente, o general Higino Carneiro diz que foi ele quem dirigiu a captura de Nito Alves…

LP- Eu nunca soube que o Higino Carneiro estava naquela zona. Eu tenho que desmenti-lo publicamente. Eu fiz reconhecimentos e nós tínhamos a informação toda de quem estava lá. Nós fazíamos incursões com regularidade. Eles pensavam que nós entravamos quando escurecesse, mas não. Antes de escurecer, por volta das 18:30, nós já estávamos lá dentro da vila. Tínhamos os nossos pivôs que nos davam a informação toda. E nunca falaram dele. E para já, é bom que ele saiba, não estamos aqui para esconder nada. O melhor local que tínhamos para nos escondermos era o mais próximo possível deles. E nos estávamos há menos de um quilómetro do quartel. Nós ouvíamos todo o barulho que faziam, até as conversas. O Bagé, estratega como era, disse logo que o melhor local para nos escondermos era o mais próximo deles. E o local escolhido foi à beira da estrada, numa picada que ia dar à uma fazenda próximo do Piri. Escondemo-nos ali durante sete meses. Dormíamos ali a vontade e de manhã estávamos prontos com as mochilas e armas. Mas foi aí onde ficamos durante sete meses. 

Eu contactava com frequência os nossos pivôs, e nunca foi confirmada essa versão do “Soldado da Pátria”, que escreveu (ou alguém escreveu por ele) a dizer que esteve lá. É assim que as filmagens mostram também a prenderem o comandante Bagé, e que ele estava por cima do tanque. Ninguém estava por cima de tanque nenhum, porque, primeiro, não se deve ficar por cima de um tanque porque tornamo-nos alvo fácil de se abater. Nem é verdade que ele dirigiu a operação da Rádio. Também ouvi que um jornalista, cameramen, filmou. É tudo mentira. Há muitos oportunistas que apareceram por aí.

KG- Durante a sua longa estadia na 1ª Região, ouviu falar de uma zona com a denominação de Bernô?

LP- Era de facto uma zona da 1ª Região, tida como intransponível, durante a guerra contra o colonialismo. Mas o que se passou é que, a determinada altura, ficaram sem munições. E então, uma arma servia para três guerrilheiros e podia ter apenas duas a três balas. Eles chamavam de “balas sebadas”, porque como estavam todas muito húmidas, era preciso abrir e apanhar pólvora de outras munições de fabrico português (ou ocidental) e voltar a colocar e fechar. Já não havia munições, mas mesmo assim, uma mina que montavam para uma viatura era uma autêntica bomba. Os sapadores que eles tinham fabricavam alguns engenhos, que faziam muitos estragos. Eram perigosíssimas. Os guerrilheiros da 1ª Região eram os mais activos, e por isso é que os portugueses tiveram inúmeras baixas nas zonas dos Dembos. Mais do que em qualquer outra zona de intervenção do MPLA. E não se esqueça que na 1ª Região, os anos de serviço da tropa portuguesa, tal como na Guiné, eram apenas dois, quando noutras eram três anos. E isso porque para sair vivo dali, era preciso muita sorte. 

Por outro lado, é preciso ter em conta que aquela região está ao alcance de dois aeroportos, o de Luanda e o do Negage, e as fazendas Santa Eulália e Maria Manuela serviam de aquartelamento das tropas e da logística, bem como outras fazendas que estavam em funcionamento. Os tiros de canhão estavam ao alcance de qualquer base. Então aquilo eram bombardeamentos a noite inteira. Mas mesmo assim, essa população foi tão resistente que nem com os helicópteros Puma, como dizia Lúcio Lara, conseguiram. Mas lá no Leste, os guerrilheiros tiveram que fugir, embora digam que recuaram estrategicamente. É mentira! E o que dizem esses mais-velhos todos que andaram pelo Leste, o Bassovava e outros, que estavam cansados de uma guerra de 14 anos, não… não… não… é preciso fazer bem as contas, porque matematicamente, não dão certo. Eles foram para o Leste em 1966/7 e para 1974 (altura em que teve lugar o decretar do fim da guerra contra o colonialismo) são sete anos, enquanto que, na 1ª Região, entraram em 1961 e fizeram 13 anos.  Portanto, o Dangereux e toda essa malta que esteve no Leste, que não nos venham dizer que estiveram lá 14 anos, porque isso é mentira.

Na 1ª Região, a guerrilha começou como luta de resistência popular, porque os portugueses, a determinada altura, começaram a bombardear as populações e elas encontraram segurança nas matas. Naquela fuga, em 1961, para sua própria proteção, sentiram necessidade de se organizar. Foi assim que o Monstro Imortal e outros, atacaram as cadeias e os quartéis do Úcua, mais outros pontos aqui e ali. Mas, é claro, com armas rudimentares que foram conseguindo nalguns sítios atacados.  

A população, para fazer resistência, escondeu-se nas matas. Mais tarde, uns regressaram e foram integrados nas tais “Sanzalas da Paz” mas outra parte continuou nas matas e para sobreviver, continuaram a fazer lavras. Não havia nenhuma intervenção do MPLA. É mentira! E por isso é que muitos mais-velhos naquela altura, por exemplo o pai do Bornito de Sousa, aderiram primeiro à UPA. Era o movimento mais conhecido. Não era o MPLA.

Essas populações começaram a fazer resistência, organizam uma pré-guerrilha e criaram obstáculos para dificultar a penetração das tropas portuguesas nessas áreas. Depois apareceu uma grande figura, que foi de facto o primeiro grande comandante da guerrilha na 1ª Região. Trata-se de Ferraz Bombo Mainga “Ferraz Bomboko”. Ele já tinha passado pelo exército colonial, possuía muita experiência, capacidade e era muito rápido a reagir. 

Ferraz Bomboko actuava tanto do lado da UPA como do MPLA, e era chamado pelos dois lados quando havia ataques fortes das tropas portuguesas. Ele não tinha problema. Só alguns anos mais tarde é que ele se integrou no MPLA. E essas populações que foram para a 1ª Região ficaram a fazer resistência até que, chegou, em 1966, o grupo dirigido por Monstro Imortal, que em 1962 foi para o Congo, na expectativa de regressar o mais rápido com homens mais bem formados e preparados. Mas, já naquela altura encontrou muitos problemas na direcção do MPLA, infestada de traidores, que diziam que não era possível, não deveriam regressar. E isso estendeu-se até 1966. Isso foi contado por ele, por Bakalof e outros, bem como aquela cena das armas e das munições trocadas.

Portanto, as divergências já começaram há muito tempo. Os problemas de racismo sempre existiram no seio do MPLA. Aquele complexo do negro colonizado, levou a que o chefe deles promovesse brancos e mulatos. Não era possível ser guerrilheiro e fazer três cursos superiores. Isso só foi possível, porque alguns passavam o tempo todo a estudar mas eram considerados guerrilheiros. De quê? De gabinete? Não brinquem com coisas sérias. Então começaram a surgir divergências sérias  por causa da promoção que se fazia de brancos e mulatos. E foi assim quando eu também entrei. Isso era o complexo do colonizado, que acha que o branco ou o mais claro é superior.

Mas nós naquela altura, em 1974, já vivíamos numa sociedade ultra-moderna em Angola e já não pensávamos como eles. Os nossos compatriotas, familiares, amigos, brancos ou mulatos, dávamo-nos todos sem problemas nenhuns. Estávamos todos juntos nos bairros…

KG- Era uma geração nova de angolanos formada com uma consciência diferente…

LP- Sim! Nós, nos anos 70, já não pensávamos nisso, nem para namorar ou casar. Mas lá, essas diferenças estavam muito patentes. Há o caso dos kiokos que se revoltaram primeiro, e mesmo alguns do norte, lá no Congo, quando prenderam Lúcio Lara. Foi por causa de tudo isso. Porque começaram a ver que havia uma certa primazia em relação aos mais claros, criada pela própria direcção do MPLA.

Todos começavam juntos, como guerrilheiros, mas quando chegasse a altura de escolher quem ia para a cozinha ou para a guarda, o chefe era sempre mulato. E nós questionávamos porque razão se fazia isso? Todos podíamos estar nesses lugares. Isso era complexo que eles tinham. E essa foi a causa da “Revolta do Leste”. O Daniel Chipenda foi enviado para falar com os kiokos, porque ele era poliglota e falava bem todas as línguas, e por isso foi indicado para apaziguar a situação com aquela gente toda que estava revoltada. Mas, depois também foi considerado como integrante do grupo da“Revolta do Leste”. Mas ele foi indicado por Agostinho Neto para ir lá ajudar a resolver a questão, mas os kiokos não viam com bons olhos essa gente. 

Eu falei com o Chipenda. Neto deu depois a volta e colocaram-no nessa situação. Mas, foi porque ele tentou apaziguar os conflitos que haviam no MPLA, que se foram agravando, agravando ao longo dos anos, até que se chegou ao 27 de Maio, ao fraccionismo. 

E o Neto só chegou a Luanda e se torna presidente, com suporte de Nito Alves. Todos sabemos disso, porque no Congresso de Lusaka, Daniel Chipenda tinha tudo para ser  eleito presidente do MPLA. Nito Alves era o representante da zona de guerra contra o colonialismo mais respeitada, porque era mais dura.  

KG- Então Agostinho Neto acabou por matar quem mais o defendeu?

LP- Foi exactamente isso. Mas, segundo Nito Alves, nas conversas que tive com ele, nesse congresso todos estavam contra Agostinho Neto. O argumento foi que o método utilizado para criticar Neto é que não foi apropriado. Até Lúcio Lara, Iko Carreira e outros estavam todos contra Agostinho Neto. Nito Alves quando viu aquela situação, achou que entre todos eles o que ainda era melhor era o próprio Agostinho Neto, e inverteu o discurso que fez naquele congresso (o primeiro) de Lusaka, realizado em Agosto de 1974. Ele tinha preparado um discurso muito impulsivo sobre a situação da 1ª Região porque estavam abandonados, tinham falta de tudo, desde o sal aos medicamentos sem justificação; faltavam munições que eles precisavam para atacar posições portuguesas. E o Nito Alves chegou lá, virou o discurso. Fez outro em defesa daquele que depois o matou.

Mas é preciso que se diga, que no dia 22 ou 23 de Maio, Nito Alves e o José Van-Dúnem ainda almoçaram com Agostinho Neto. Depois daquela expulsão do Comité Central, no dia 21, anunciada durante aquele comício no Pavilhão da Cidadela Desportiva, Neto chamou os dois para almoçar. Quando alguns, como Pacavira e outros, diziam que eles deveriam ser presos, Neto disse que não, que era uma divergência mas tinha que ser vista. E isso porquê? Porque segundo o que me disse Nito Alves, Neto utilizava sempre a mesma artimanha e perguntava: “Camarada Nito para fazer uma revolução séria com quem podemos contar”? E Nito Alves indicava alguns nomes. Ele, como era delfim de Agostinho Neto, perguntava-lhe o mesmo. E ele repetia os mesmos nomes: “O Iko Carreira é um preguiçoso, o Lúcio Lara também não dá nada”. Repetia sempre o mesmo ‘disco’. Até que Nito Alves percebeu o jogo, porque viu que Neto queria é saber dos nomes que ele tinha como proposta. Estava apenas a passar informação. Mas continuou sempre muito próximo dele.

Agostinho Neto disse à Nito Alves, durante o almoço depois da expulsão, que não haveria problema algum, que iriam ocorrer apenas algumas reformas, mas era necessário ter calma. No dia 25 de Maio, o tal dia que se diz que deveria ter acontecido a insurreição e falhou, o Nito Alves foi ao Palácio avisar Neto que haveria de meter as ‘massas’ (população) na rua. Ele recebeu essa informação na noite do dia 25. Algumas reuniões eram feitas numa casa situada no interior do bairro que hoje se chama Hoji Ya Henda, próxima do restaurante Mãe Preta. Fui informado nesse encontro, que Nito Alves disse a Agostinho Neto que meteria as ‘massas’ na rua. Aliás, nessa reunião, no Hoji Ya Henda, estavam lá todos os dirigentes de ‘massas’: entre os civis estavam o Mbala Bernardo, do programa radiofónico Kidibanguela  irmão do embaixador no Vietname, o Betinho, o Nzamba e depois havia os militares Nito Alves, Zé Van-Dúnem, Sianuk, Bakalof e outros. Todos estavam lá, quando ele passou essa informação de que avisou Neto que haveria de meter as ‘massas’ na rua. Não houve nada clandestinidade. Neto sabia de tudo e todos nós falávamos disso em nossas casas. Nada estava a ser escondido. Todo mundo sabia. A minha noiva sabia que havíamos de fazer uma manifestação. A dúvida que existia é se os cubanos se meteriam e se acontecesse, podia haver guerra. Eu disse à minha noiva que se eu morresse, ela que fosse a sua vida. Pronto! Podia morrer. Naquele tempo tínhamos espírito revolucionário. Reafirmei que se os cubanos entrassem, daríamos tudo por tudo, que haveria guerra e eu poderia morrer. “Amanhã pode ser o nosso fim” – disse e despedi-me dela assim.

A reunião de concertação até estava para ter lugar no dia 21,  no Museu, mas depois foi transferida para outro sítio, a casa do senhor Silvestre Capemba, um antigo preso político no tempo colonial, onde também se realizaram várias reuniões. Eu estive lá, e ouvi de Nito Alves a informação de que tinha avisado Agostinho Neto. Fui para lá porque pediram para aparecer com os assessores soviéticos, para falar com o Zé Van-Dúnem. Nessa altura também informei ao Nito Alves que um major cubano, de nome Vitória, disse-me que sabiam que estava a ser preparada uma manifestação, mas avisou que se ela tivesse a participação de militares eles iriam intervir. Se fossem só civis, estava bem. Mas se incluísse militares, eles iriam intervir.

Disse-lhe também, que na 9ª Brigada decorreu uma reunião onde se condenou o Nito Alves. O tal major cubano até levou uma declaração com uma lista com nomes dos que assinaram, mas o Zé Candongo não aceitou assinar porque era contra o Nito Alves. Esse major disse-me também que “esse tinha que ser fuzilado já”. Eu evitei que ele fosse falar com o adjunto da Direcção Política, que era o Dino Matross (Julião Mateus Paulo). Atendi-o no meu gabinete, acompanhei-o a descer as escadas daquele prédio ao lado da Sociborda (na rua rainha Nginga), despedi-me dele e então fui comunicar ao Zé Van-Dúnem e ao Bakalof. Esse major cubano era nada mais nada menos, que o segundo homem que comandava os cubanos em Angola. Sabe o que é que o Bakalof respondeu: “Se os tanques saírem com os cubanos o povo subirá neles”. Fiquei intrigado com o que acabara de ouvir. 

E o Betinho, meu primo por sinal, disse pior: “Luís essa não é informação para trazer aqui”! Respondi apenas: “Pronto! Está dito”.

Quando sai dali, fui ter com os meus colegas e amigos lá fora, o Paulito, que era adjunto na FAPA-DA, o Salvador e o Zé Candongo e disse-lhes: “Epá! Estamos mal. Isso será um fracasso porque os cubanos vão intervir. Fui comunicar aos mais-velhos e responderam-me que o povo subirá nos tanques”.

“O quê”? – perguntou o Salvador intrigado: “Vamos morrer” – disse.

Respondi apenas que já estávamos metidos, que “havíamos de morrer”.

Por isso é que me interrogo, porque razão não saíram todos de Luanda? Eles sabiam que os militares seriam mortos, fuzilados. Nós sabíamos. Os civis seriam presos e julgados conforme a implicação. Mas os militares não! Por isso é que fico parvo, não entendo como é que ficaram aqui sentados à espera.

KG- E foram todos caçados, ou melhor, assassinados…

LP- Foi demais!    

KG- Conviveu com Nito Alves no cativeiro, abordou tudo isso com ele, como é que o considerava e hoje, com outra visão das coisas, como é que o considera? Um herói, fabricado pela conjuntura? Como é que o considera olhando para esse passado?

LP– Herói não! Outro modelo, alguém que pretendia mudanças, que tinha outra perspectiva para o país. Mas entre nós, apoiantes, havia muita confusão, muitas coisas com as quais não concordávamos. O Zé e o Nito também tinham divergências em alguns pontos, e acredito que mesmo que resultasse uma mudança, podia acontecer outra ´revolução´ entre nós. Havia colegas militares que, pelo facto de estarem engajados nos preparativos da manifestação, já achavam que deveriam receber patentes de majores ou de capitães. O Tiago, por exemplo, dizia que “depois disso tudo só aceito a patente de capitão”.

Eu e outros colegas, o Paulito, olhamos para ele e comentei: “Isso aqui está uma grande confusão. Tem a patente de segundo-tenente e só por participar nisso quer ser capitão? Só porque é amigo de Nito Alves? Caramba! Isso assim não vai dar”. Achávamos que depois de tudo teria que se fazer uma reforma muito profunda.

Portanto, o Nito Alves era um jovem que tínhamos como inteligente, que teve a grande oportunidade de dar o seu contributo, mas também não conhecia a União Soviética que ele próprio apoiava. Se tivesse o conhecimento que nós temos hoje, ou que passamos a ter mais tarde, racistas como eles eram, não teria apoiado.

KG- No meio de tudo isso, há também muita fantasia em relação ao tal apoio soviético a Nito Alves e Zeca Van-Dúnem?

LP- Muita fantasia. Apoio concreto e directo não houve. Eu estive em reuniões com o coronel  Victor mas, de facto, ele nunca confirmou qualquer apoio. Eles queriam que se fizesse qualquer coisa, porque não queriam mais Agostinho Neto, mas não com envolvimento directo. Como quem diz: “Epá… façam, ganhem e depois vamos ver”. Para não perderem o tacho, de um lado ou de outro. 

KG- Sabia de algum projecto ou investigação da CIA, sobre os cenários com ou sem Agostinho Neto. Havia alguma coisa sobre isso?

LP– Sim! Havia. Sabíamos disso, e por isso também estávamos com receio. E Nito Alves tentou sempre influenciar Agostinho Neto, dizendo que “eles próprios poderiam matá-lo, e que era preciso ter cuidado com os infiltrados da CIA no Comité Central e no Bureau Político, porque eles próprios é que poderiam liquidá-lo”. Mas, como Neto  era amigo de Lúcio Lara, Onambwe e outros, não acreditava.

Mas ele também tinha muitos problemas. Por essa altura, também já não conseguia discernir tudo o que se estava a passar e por isso perdeu-se no 27 de Maio. Ele tinha problemas grandes de dependência do álcool. Conheci um individuo angolano que foi guarda-costas  de Agostinho Neto, que disse que ele bebia tanto whisky, que para a Maria Eugénia (esposa) não dar conta, ele escondia garrafas no autoclismo da casa de banho, daqueles que tinham o tanque por cima e uma corrente ou fio que se puxava para fazer a descarga. Só depois de morrer é que deram conta. 

Ele tinha graves problemas com o álcool, tanto que nessa última reunião do Comité Central em que expulsaram Nito Alves e outros, para ganhar coragem na tomada de decisão deixou por instantes a sala de reunião e foi enfiar uma boa dose de whisky. E quando regressou, sentou-se do lado onde estava o Lúcio Lara e disse: “Agora aqui não há presidente. Ganha o mais forte”.

Foi assim que os cobardolas como Lopo do Nascimento, José Eduardo dos Santos e outros, todos esses que pareciam que apoiavam os ideais de Nito Alves, todos eles mudaram logo. Aliás, mesmo a seguir ao 27 de Maio, muita gente depois de presa apanhou surra para dizer se José Eduardo dos Santos estava ligado à nós. O Dedé, que esteve connosco no PRD, disse que apanhou muito para dizer se José Eduardo dos Santos estava ou não do nosso lado. E José Eduardo dos Santos só escapou porque quando o Onambwé estava preparado para ir buscá-lo, ele estava no gabinete de Agostinho Neto. E ele como podia entrar sem pedir licença, abriu a porta e disse: “Camarada presidente eu vim buscar esse fraccionista”. E foi Agostinho Neto quem disse que ele não levaria mais ninguém. José Eduardo já estava a transpirar todo.

Era algo muito estranho. Imagine que quando o Loy (Pedro de Castro Van-Dúnem) estava com problema com o irmão que esteve envolvido, um capitão que pertencia à 9ª Brigada, o Xietu (João Luís Neto), chefe do Estado Maior General, telefonou para ele ir a casa dele aos gritos “os homens estão a vir, os homens estão a vir” – referia-se aos homens da DISA. O próprio Loy disse ao irmão para sair, fugir, porque todos tinham medo. Havia uma força “suprema” que tinha poder sobre todos, de matar, de fazer o que quisesse acima de tudo. Havia a DISA, mas havia também o grupo do Jutueira, que era a DISA infernal, porque ao lado deles ninguém piava. Eles prendiam, matavam, faziam o que quisessem. Havia uma força suprema que aterrorizava todo o mundo. Instalou-se um sistema terrível.

KG- Após 12 anos nas matas dos Dembos, foi quando regressou que teve conhecimento da chacina que ocorreu, ou mesmo lá recebia informações sobre tudo isso?

LP- Não! Não tinha conhecimento. Foi um choque terrível. Hoje lhe digo que se eu e o Bagé tivéssemos conhecimento de tudo isso enquanto estávamos na mata, fazíamos guerra de guerrilha e morreríamos por lá se necessário. Se eu soubesse que tinham assassinado tanta gente, eu não teria regressado. 

Sabe que, quando um individuo está na mata, mobilizando mais uns quatro, cinco ou trinta homens, podiam parar este país? E não é preciso atacar civis. Basta pontos militares. Basta montar algumas emboscadas nas principais estradas nacionais. Tudo pára e ninguém consegue localizar, porque um grupo táctico pequeno é suficiente. Não há problemas de comida porque andam por aí a deambular e ninguém consegue localizar onde estão. E depois, na mata, para um individuo guerrilheiro como eu fui, só precisa de uma arma para se defender e de uma catana. Foi assim que eu fiquei. Por isso é que não entendo como é que Nito Alves não preparou um plano estratégico de recuo, para que toda a 9ª Brigada fosse para a mata.

Na mata há muita coisa que se come. Eu comi raízes, como a gingamba, que parece inhame, que é um tubérculo que ainda hoje como todos os dias de manhã. Aquilo é tão amargo que nem o javali come. Então é preciso primeiro ferver bem em rodelas e depois de 24 horas pode ser comido. E nasce muito por aí. E há outros tubérculos, bem como os frutos silvestres e depois ia bebendo maruvo que também sacia a fome. Já cheguei a alimentar-me apenas disso e de dendém durante quarenta e cinco dias. Comia trinta dendéns ao almoço e trinta ao jantar.  Na mata sobrevive-se e para morrer como morreram aqui, era melhor terem ido para a mata. Eu quando fui para a mata, a primeira vez que saí para ir à caça matei uma pacaça. E pensei porque razão não recuamos todos e ficamos por ali em vez de se fazer aquilo que o Bakalof fez, estupidamente, ao vir para Luanda contactar a embaixada soviética, que são uns traidores e não prestam para nada. E posto aqui, a mulher, sobrinha do Mendes de Carvalho, tramou-o. Já tinha sido mobilizada pela DISA. Foi a própria mulher quem o traiu.

KG- O Bakalof foi traído pela mulher?

LP- Pois! O Bakalof estava comigo na mata. Ele e o Vicente Fortuna, que aparece em muitas fotos comigo e foi da Direcção Política. Ele, Vicente Fortuna, já esteva preso desde o dia 20, e quando acontece o 27 de Maio ele escapou da cadeia, cortou a barba e conseguiu furar até ao Piri. Depois de nos separarmos, em Dezembro, decidem regressar a Luanda para fazer trabalho de clandestinidade junto das embaixadas. Deixaram os outros na mata, e uns até acabaram por morrer de fome. Em Luanda foram traídos e mortos.

O grupo de cerca de 100 homens, devia ter ido todo para a mata. Por isso não considero o Nito Alves um herói. Nunca disse uma coisa e até tenho asco em dizer isso. Mas a si vou dizer porque jurei dizer toda a verdade: “Nós fomos cerca de 100 homens da 9ª Brigada. Éramos muitos e foi, como dizia Fidel Castro, com 100 homens que começou a guerra em Cuba e ganhou. Com 100 homens na mata armados… caramba. Eles não gozavam como gozaram connosco assim”. 

Eu nunca disse isso a ninguém mas a si vou dizer: “Todos esses homens, para além dos 30 ou 22 que fomos para as matas com Nito Alves, os chefes dos grupos da 9ª Brigada, o António Lourenço, que era sobrinho do Nga Kumona, o John, o Cavongota, o Vicente Fortuna, as moças, Vidinha, Fé Narciso (irmã do Tony Narciso era secretaria do Nito Alves), a Boneca e a Nandi que era das comunicações da 9ª Brigada, estávamos todos armados. E ele pegou naquele grupo, o grosso do grupo, e deixou-os ficar no quartel do Piri. Quando os homens da DISA chegaram com os cubanos – a população assistiu tudo porque era ela que nos dava de comer – aquilo foi saltar os muros e fugir para caminhos que não iam para lado nenhum, para o capim e depois tentaram apanhar a estrada e foram caçados aí e mortos. Foi carne para canhão. Nós estávamos do outro lado da mata e vimos tudo. É triste recordar isso”.

Eram pessoas que podiam estar connosco na mata a sobreviver e até a fazer guerrilha. Foi o que eu e o Bagé fizemos. Sobrevivemos, mas só os dois não dava para fazer mais. Guerrilha?

KG- Luís dos Passos como encara o pedido de perdão feito pelo presidente da República?

LP- Foi um gesto magnânimo, bom, mas como não gosta de dar ponto sem nó, misturou tudo. Quando você pede perdão, num acto de contrição, você não deve dizer… “eu peço perdão porque você ontem também me fez aquilo…” ou “estou a pedir perdão porque o vizinho ontem me fez aquilo e também tem que pedir…”. O que a UNITA ou seus dirigentes fizeram, foi noutro contexto. A maioria dos casos a que estamos a fazer referência, as pessoas foram levadas de casa. Não misturem os casos, e por isso é que a Associação e a Plataforma não aceitam isso. Os nossos homens foram presos, mas levados de suas casas por agentes da Segurança de Estado. E ele começa logo no seu discurso por fazer referência à um grupo de jovens, cidadãos que intentaram um golpe de Estado. Qual tentativa de golpe de Estado se ninguém foi julgado? Como é que o presidente consegue afirmar que houve tentativa de golpe de Estado? Como? Ninguém foi julgado. Eu, por exemplo, podia dizer “peguem no Monstro Imortal e no Nito Alves porque esses é que eram os chefes”. Mas ninguém foi julgado. Então que tentativa de golpe de Estado se você não fez julgamentos, não provou nada?

Foi falar dos mortos na Jamba, que outros também devem pedir perdão. Não devia ter misturado as coisas, até porque não escolheu a data de 27 de Maio por mero acaso. Foi pelo simbolismo que envolve a data. Para falar sobre tudo isso, escolhia o Dia da Paz e não o 27 de Maio.

Por outro lado, é preciso não esquecer uma coisa. Como é que nós tomamos o poder? Como é que o MPLA chegou ao poder? Não foi por via de um golpe? Em 1975 não estava prevista a realização de eleições? Nós não demos um golpe e pusemos os outros na rua, os da FNLA e os da UNITA? Então não foram mortos aqui como galinhas, numa fuga atabalhoada e ao chegaram ao Dondo, precipitaram-se e atiraram-se ao rio. Não foram fuzilados. Estava lá o Bagé…

KG- Tal como os do MPLA, também eles chegaram a Luanda desorganizados…

LP- Ah sim! Chegaram muito desorganizados mesmo. E a FNLA mesmo com um pouco mais de organização, não conseguiu fazer nada. Pensaram que com aquelas cambalhotas que faziam, é que haviam de tomar o poder. Mas o MPLA foi esperto, deu-lhes a volta, armou a população e pronto.

Mas nós demos um golpe.  Por isso eu pergunto: Será que nós tínhamos que ser considerados golpistas e não tivemos legitimidade para fazer o que fizemos? Como é que o poder foi tomado aqui? Não foi depois de termos corrido com os outros e de termos ganho a guerra. Colhe isso de que fomos legitimados pelo reconhecimento do Brasil e de outros após a proclamação da independência? Mas qualquer outro podia estar nas mesmas circunstâncias. Da mesma forma como tomamos o poder naquelas circunstâncias, a FNLA também podia tomar. Na escola politica aprendemos que quando o partido Y já não responde aos seus interesses, luta contra ele. E se eles dizem que estávamos para fazer um golpe de Estado, então que nos julgassem. Mas sabíamos que não o fariam, como fizeram com os mercenários porque perderiam.

Mas então um movimento ou um partido como o MPLA que julgou mercenários, não conseguiu julgar os tais fraccionistas por tentativa evidente  de golpe, como dizem? Porquê? Por aí iriam aparecer o tal Laton e todos os demais que são conhecidos, por exemplo por muita gente do Sambizanga. Há um largo grande onde as casas foram partidas naquela altura e aqueles que perderam as casas sabem como é que tudo começou, como é que mataram. O Kiferro barafustou muito por terem morto os comandantes em casa dele: “O problema que vocês vão me arranjar”. E a família dele tem muito a dizer. A Carla, irmã, uma vez veio dizer-me: “Olha Luís eu sou irmã do Kiferro”. Ela, se tiver coragem, pode testemunhar o que aconteceu com o Kiferro.

Já há 20 anos atrás, ainda estava no PRD, depois de 2002 antes dos Acordos de Paz, nós fizemos uma reunião com o MPLA, onde exigimos que José Eduardo dos Santos fizesse o que o presidente João Lourenço fez agora. Mário António (secretário do Comité Central do MPLA para a Informação) e outros mais-velhos não quiseram. Esse Dino Matross, o Bula e outros não aceitaram isso. E José Eduardo dos Santos também não aceitou. Mas isso é um plano escrito há muito, em 2002, mas eles não quiseram. Perderam essa oportunidade histórica. Mas também fazer como o presidente João Lourenço fez, não é assim… foi como que atirar novamente a culpa sobre nós. Como é que um chefe de Estado vai dizer que houve tentativa de golpe, quando ele sabe que não houve julgamentos? Como é que ele pode provar?

KG- Luís dos Passos, o seu PRD morreu mesmo?

LP- Morreu porque houve interferências. Sabemos que o Dino Matross, o Bornito de Sousa e outros criaram um grupo que falsificou os votos. Nós não estávamos assim tão mal em termos de votos que permitiam a nossa representatividade. Em 2007/8 fizemos um documento (que tenho aí) onde consideramos aquela proposta de MPLA de revisão da Constituição como um golpe institucional. Mas ao nível do parlamento, os demais partidos como a UNITA e outros, não deram relevância a isso. Ninguém quis saber disso. E foi o que fizeram em 2010. E então os indivíduos que ao nível dessa plataforma fizeram tudo para dificultar a nossa existência, depois até pediram desculpas porque “não era para acabar com o PRD, fizemos mal…”. Mas vendo as condições políticas em África, tudo muito complicado, achamos melhor ficar por aí. Eu estava mesmo preparado porque sabia que havia de colocar-me essa questão.

A actividade que faz hoje a CASA-CE e outros que andam por aí à-vontade em contactos pelas províncias, era bem diferente que em 2008. Nessa altura, em Calussinga e em Nhareia, os nossos representantes responsáveis do partido foram presos, surrados por estarem a usar camisolas do PRD. E o chefe da esquadra obrigou-os a capinar à volta daquela unidade durante dois dias. Quando denunciamos isso, o Dino Matross disse que não era possível quando tínhamos provas. Em todas as províncias do interior, era muito difícil o desenvolvimento de actividades políticas. Éramos maltratados, escorraçados, enfim… e então tínhamos dificuldades de fazer mobilização.

Mas havia uma condicionante ainda maior. Há gente que usava o 27 de Maio para desmobilizar as pessoas e elas fugiam, porque tinham medo que voltasse a repetir-se tudo aquilo. Muita gente desistiu com medo. O irmão do Mário António, o Fernando, que era das Obras Públicas por exemplo, era director e sentiu medo de perder o lugar, que lhe tirassem a casa, porque era deles: “Como é que eu faço”? – questionou-nos. E eu próprio pedi a ele para não se meter nisso. O Henrique Júnior, que foi governador do Cuanza Norte.  Mas deram-nos o seu apoio particular. A mulher dele foi ex-mulher de um “fraccionista” assassinado. Quando viu o papel do PRD chorou toda a noite. Ele veio ter comigo amedrontado porque tinham entregue um documento do PRD em casa. Eu também disse para ele não se meter e disse-lhe que precisávamos dele fora da estrutura. E muitos outros, porque de facto não podíamos ter toda a gente connosco porque vivíamos ainda numa espécie de clandestinidade.

Em 1991 eu fui ao gabinete do Aguinaldo Jaime, e no dia seguinte foi publicada a informação num jornal, dizendo que o Luís dos Passos estava a mobilizá-lo para o PRD. O homem ficou preocupado e ligou-me a perguntar se eu tinha falado alguma coisa sobre isso e eu disse que não. Deixei de procurá-lo para não lhe criar dificuldades. Era tudo isso que vivíamos no nosso dia-a-dia.

KG- Por essa altura, também se disse que fez um acordo com o MPLA em que recebeu 10 milhões de dólares…

LP- Eu apresentei queixa e pus em tribunal o homem que mandou muitas bocas sobre isso: o Fragoso. Infelizmente morreu no dia 23 de Maio (2021). Agora só estou a espera que o Silva Mateus também fale. 

Este caso já foi investigado por alguns órgãos de justiça, porque apresentei queixa e estava tudo encaminhado para o julgamento em tribunal mas, o senhor acabou por morrer. Mas também se eu conseguisse negociar esses 10 milhões de dólares, esse dinheiro não seria deles. É dinheiro do Estado. Mas não conseguimos nada. Tudo isso é mentira, senão não estaria aí a lutar pela vida e a fazer uma fazenda em Malanje. Não sou tão parvo assim. Com 10 milhões de dólares estava “a fazer lavras” – como diz o outro?

Na verdade o que aconteceu e que motivou algumas pessoas a dizer isso foi o seguinte:

Estrategicamente, nós víamos que era mais favorável o MPLA estar no poder do que a UNITA. Isso, no tipo de análises que se faziam naquela altura, porque a perspectiva era que se a UNITA estivesse no poder, também iria estar contra nós e lixar-nos. E nós tomamos conhecimento disso, quando fizemos a primeira visita ao Savimbi, quando estava instalado no Miramar. 

Quando o Savimbi chegou a Luanda, eu até pensei que nos contactasse. Mas, logo de seguida, ele disse publicamente que “não havia de falar com partidecos”. E eu, como naquela altura tinha boas relações com os representantes dos Estados Unidos da América que estavam em Luanda, chamaram-me e disseram que Savimbi queria falar comigo. Eu manifestei as minhas dúvidas mas, eles asseguraram que sim, porque tinha recebido orientação do Departamento de Estado. Não passou um dia, e o Salupeto Pena ligou para mim a dizer que “o mais-velho queria falar comigo”

Mas, qual era a estratégia dos americanos? É que nós estivéssemos subalternizados à UNITA, de quem receberíamos apoio porque os americanos não nos queriam dar directamente. Queriam que nós trabalhássemos em conjunto, para sermos a força persuasiva na mobilização dentro das cidades. E em função disso, até já havia muito dinheiro para recebermos de Savimbi, bem como viaturas. Um membro novo que era secretário-geral, o Vicente Júnior, já tinha feito altos contactos com o Savimbi. Mas eu não queria contactos com o Savimbi, porque na audiência que tive com ele – nós também éramos espertos – levamos os nossos mais-velhos, figuras como Eduardo Macedo dos Santos, o Arlindo Barbeitos, o Hugo de Meneses, o Joaquim Pinto de Andrade e o Justino. Fomos todos para além de nós ‘miúdos’, levamos esses mais-velhos.

Começamos a conversa com uma saudação de satisfação do Savimbi, que até nos tratou como “maninhos” e o Eduardo Macedo dos Santos perguntou-lhe: “Não se lembra de mim”?  E Savimbi respondeu que não. Eduardo Macedo recordou-lhe que quando “fugiu da FNLA, do Congo Kinshasa para o Congo Brazzaville, e ficou horas e horas à espera de uma audiência com Agostinho Neto, fui eu que o fui chamar e fiz tudo para você ser recebido”. E Savimbi recordou-se sim e manifestou satisfação.

Hugo de Menezes, também o recordou de outro episódio: “Fui eu que estava no Senegal naquela altura assim… assim…” e ele certamente pensou de certeza que estava diante de mais-velhos dele e de outros da idade dele, que conheciam bem o seu percurso. Mas, depois da conversa (e afinal nós devíamos ter cuidado, mas também não falamos nada de segredo, porque nas tomadas daquela casa havia dispositivos de captação de som instaladas pela Segurança de Estado – quem me revelou isso foi o Nandó) o Savimbi disse que tínhamos que trabalhar juntos, muita conversa á mistura, e depois a saída ele juntou-se ao Tony da Costa Fernandes e ao Zau Puna e disse: “Fogo! Esse gajo do Luís dos Passos, 13 anos na mata e em vez de vir para a UNITA não. Esses gajos do Norte querem mandar em nós”.

Foi o Tony da Costa Fernandes quem nos alertou depois: “Eiiiiii se o Savimbi vos apanha um dia à esquerda, vocês não escapam. Ele disse isso… isso… depois da audiência”.

Eu sabia qual era o discurso dele: que os do Norte é que escravizaram os do Sul, aquelas teorias todas dele. E por isso é que nós dissemos que não faríamos essa aliança.

Então, quando estamos nos dias próximos da guerra, o MPLA estava muito interessado em ter também uma aliança connosco e porquê? Porque conseguiu ter um documento do Departamento de Estado americano, em que se dizia que a UNITA se devia juntar a nós para fazer as campanhas dentro das cidades, e que “ofereciam” 15 milhões de dólares. Com base nisso, o MPLA teve um certo medo que fizéssemos mesmo essa aliança. Mas isso também confirmava que nós teríamos outros encontros naquela casa e que o Vicente Júnior é quem estava a impulsionar isso. Mas, entre Março e Abril, antes das eleições, o Vicente Júnior afastou-se e nós não fizemos a tal aliança porque eu, entretanto, converso com alguns amigos, entre os quais o Fernando Dias da Piedade “Nandó” e o Salomão Xirimbimbi (que também esteve preso no 27 de Maio), que me disseram: “Epá! Se vocês se juntam à UNITA e fazem uma aliança, agora vamos acabar todos”.

Então, a saída era criar expectativa de uma aliança com o MPLA, até porque o MPLA vai ganhar a guerra e se não fizermos essa expectativa de aliança com o MPLA, vão matar toda a nossa gente nas províncias. O Silva Mateus e o Fragoso disseram que “não, porque se houver guerra vamos todos fugir para as matas de Catete”.

Eu perguntei-lhes se eles sabiam o que era a mata. Mata era bom na boca, porque quem havia de ficar na mata com fome durante um mês? Desertavam logo.

Então decidimos criar essa expectativa. Tacitamente, concordamos em fazer uma aliança com o MPLA de “não agressão” entre as partes, e, de facto, conseguimos convencê-los de que teríamos que beneficiar de 5 milhões de dólares. Mas, o Rui Augusto foi orientado para dar curvas e curvas e nunca assinamos nada. O Rui Augusto foi orientado para que ainda que nos dessem 20 milhões. Mas eles, do MPLA, também foram espertos. Não largavam nada, mas também nós não assinávamos nada. E andamos nisso. Ninguém recebeu nada, porque ninguém deu nada. Mas eles depois é que criaram essa armadilha, e espalharam por aí que recebemos 10 milhões de dólares. Mas é tudo mentira. Não se concretizou nada. Mas se dessem, o dinheiro não era deles. O pai do José Eduardo dos Santos era estivador do Porto, todos vieram com uma mão a frente e outra atrás.

KG- O falecido pai de José Eduardo dos Santos não foi pedreiro?

LP- Dizem que sim, mas que também foi estivador no Porto. Os nossos avôs dizem que era estivador.        

Mas foram eles próprios que criaram esse cenário de que recebemos milhões. Isso é próprio deles. Mas não recebemos nada, não fizemos nada disso.

Quem falou primeiro sobre isso foi o jornal Folha 8 e depois foi o Fragoso que escreveu isso num livro. Ele também dizia que matei o Saydi Mingas. E eu disse que lhe metia em tribunal para provar isso. A pandemia é que atrasou tudo. Era sempre hoje, amanhã, eu tinha que vir de Malanje para aqui, pediam mais uma declaração disso e daquilo, e depois tinham que procurar o tal Fragoso que andava doente e já não aparecia muito, até que em Maio o homem morreu.

Mas, o Silva Mateus como fala a toa, vai aparecer porque eu vou dizer que ele não esteve preso em cadeia nenhuma, onde estiveram presos do 27 de Maio. Ele não era militar. Era sim, um agente de diligências, no fundo, um estafeta da Policia Judiciária. Não há ninguém que consegue dizer que esteve preso com o Silva Mateus, nem ele consegue dizer com quem esteve preso. Foi engraxar-se no MPLA para nos queimar, falar mal de mim e conseguiu a patente de brigadeiro sem ser militar. Não é possível que tenha sido, porque eu ainda há dias estive com uns amigos e recordamos que antes das eleições de 2012, promoveu-se um grande jantar na Casa 70 de antigos combatentes de várias unidades das FAPLA que andaram por aí, e eu estive lá, participei e muita gente, o Patonho, o Menha Muxingo, irmão do Tino Cabuata, esse assassino, e apareceu um tal general Tavares que já foi presidente da Comissão Administrativa de Luanda, que disse que era comissário político de Luanda. Eu perguntei de onde? De Luanda? E o Patonho e outros admirados, olhando para mim, disseram-lhe que eu era o comissário chefe e se ele não te conhece é porque você não era. E eu disse-lhe: “Então eu estava na Direcção Política, conhecia todas as unidades, fazia visitas de trabalho todas as semanas e não o conheço”?

O Menha Muxingo, que era da Segurança, o Patonho, o Disciplina, todos disseram-lhe que eu era o comissário-chefe, e questionaram-lhe porquê que eu não o conhecia se ele era comissário político? É claro que não o conheci, porque não era comissário. Os comissários políticos tinham um papel preponderante nas Forças Armadas. Depois do comandante, a segunda figura era o comissário e eu todas as semanas andava por todas as unidades.

KG- Aliás o Songa, em recente entrevista a rádio MFM, foi bem expressivo sobre isso…

LP- Sim! Foi bem expressivo.

KG- Foi por isso que também se safou, porque conhecia todos os efectivos e era conhecido por todos…

LP- É verdade. Porque naquela altura ele estava muito alheio à tudo, porque ele saiu do aeroporto para casa. Porque se ele tive ido para casa da mãe, receberia a informação de que os irmãos já estavam presos. O Gentil e o outro mais novo, cujo nome não me recordo…

KG- Era o Gigi, meu amigo de infância…

LP- Ahhhh… tão novo, cerca de 19/20 anos. Enfim!

KG- Luís dos Passos quer dizer mais alguma coisas?

LP- Não acredito nessa reconciliação que se está a fazer. A nossa reconciliação deveria ser como a que ocorreu na África do Sul, com uma Comissão da Verdade, onde houvesse uma espécie de catarse, em que os carrascos expressariam às vítimas o que faziam, como se vangloriavam com esses feitos; virem publicamente dizer o que fizeram, e não esconderem-se no pedido de perdão feito pelo presidente da República.

Há um individuo que não se identificou que disse, numa mensagem que está a correr pelas redes sociais, que sabe onde estão enterrados os comissários da DISA. Eles devem vir publicamente, de coração aberto, pedir perdão por isso. É como se estivessem a tirar um peso, como aconteceu na África do Sul. Eles próprios precisam de tirar esse peso de dentro deles. Eles agora estão todos escondidos no pedido de perdão do presidente da República João Lourenço. Eu, pelo menos, não sinto nada.

Por outro lado, nós continuamos a ser estigmatizados, ostracizados. Eu, pelo menos já me libertei disso há muito tempo. Não devo nada, não tenho nada, mas isso magoa de certa forma, porque até os filhos questionam se matamos muita gente nessa figura de “fraccionista” e lá temos que explicar tudo o que se passou. E os que de facto mataram andam por aí. Mas esse estigma continua aí.

Por exemplo, eu não sou general porque João Lourenço continua, pessoalmente, a impedir. Ele é que diz, pessoalmente, ao Pedro Sebastião (ministro de Estado e Chefe da Casa Militar exonerado na sequência do escândalo do processo Caranguejo que envolveu altos oficiais da Casa Militar no desvio de elevadas somas e meios) que “ele não, ele não”pensando que ainda vou ganhar seja o que for com isso. Eu estou no nível da classe dos generais. Senão, não estaria no nível de Nito Alves e de outros que encabeçaram o 27 de Maio. Todos os anos, nessa data, eu recebo fotografias de edições do Jornal de Angola, onde estou como a quinta pessoa que era procurada. Mandam-me sempre isso. Depois, desce mais um bocado, está o Vicente Fortuna, a Cita Vales e eu. Depois noutra, eu e Nito Alves, estilizados com cabeças de cobras. Então, qual é a dúvida? O protagonismo foi criado involuntariamente, e não porque eu queria ser isso ou aquilo. Foram eles que me promoveram porque eu era um capitão zinho.

KG- Trata-se, no fundo, de um pedido de perdão com mais vocação politica do que um perdão efectivo, que envolve um sentimento sincero de reconhecimento que se cometeram excessos?

LP- Ele continua rancoroso. Acho que quem o ajudou a fazer esse pedido de perdão foi a mulher, que também esteve presa, apesar de não assumir que foi torturada. Mas muita gente já disse isso publicamente, e tenho amigos e indivíduos com quem militei no partido que estiveram também presos na cadeia de S. Paulo, que dizem que ela sofreu muito. Em quatro meses de prisão, foi de entre as mulheres, aquela que sofreu muito. Mandavam ela limpar o chão completamente nua, coisas assim…

Não sinto que esse pedido de perdão seja sincero. Não sinto! Vamos andando por aqui. Há pessoas com quem tinha boa relação, que depois desse pedido de perdão de João Lourenço já não atendem o telefone, porque essas mensagens estão a correr nos grupos de WhatsApp e eles também estão todos lá. É o caso do Whadijimbi. É meu compadre, e há dias tentei ligar para ele, três vezes, e já não atendeu. Isso porque eu mandei-lhe uma mensagem em que o Macuta Nkondo fala dele. E a filha dele, que é minha sobrinha, ouviu e pronto, deve estar a questionar-se sobre o papel do pai em tudo isso. Faltou é falar é do outro, marido da minha prima, o Lito Pinto de Andrade. Ele também foi muito mau.

Vamos esperar que tudo isso melhore um dia. Vamos ter fé! Mas não há dúvida que se eu fosse mais novo e estivesse de novo na mata… não sei…

Mas, continuo a pensar meu caro, que o país só está assim por culpa do Savimbi. A UNITA funcionava como contrapoder, como alternativa. Sempre foi a segunda força no país, mesmo quando andava na mata. O MPLA não podia ir para Benguela sem saber se a UNITA estava lá. Para Malanje idem… por todo o país. Ninguém andava…

KG- Quer dizer que não soube tirar o devido proveito desse seu posicionamento de força?

LP- Sim! não tirou proveito. Foi estúpido… estúpido… estúpido. Ao fazer a guerra que fez, pela teoria que dominava, sabia que não era possível vencer um exército regular. Não deveria forçar tanto a barra. Para quê? Para morrer como morreu? O país que já não estava bom, ficou pior depois de 1992. Os gatunos que já estavam instalados fizeram pior. Até 1991, publicamos num artigo, uma cópia de uma ordem de transferência de 100 mil dólares para uma conta de José Eduardo dos Santos. Publicamos no nosso jornal “O Renovador” mas, como no da UNITA tinha maior abrangência, demos também a ela. Naquela altura, pagamos 100 dólares por esse documento, onde havia um despacho de José Eduardo dos Santos para um tal Victor (não me lembro se Alves) a orientar a transferência desse dinheiro proveniente da venda de petróleo. Era já desvio de dinheiro, mas depois de 1992 é que eles fizeram e desfizeram. Com a guerra, Kopelipa e mais uns tantos a comprar armas, e aí é que se fizeram. Eu ainda fui à festas do Higino Carneiro e do Nandó, da “Chapa dos 50”, de comemoração quando atingiram a posse de 50 mil dólares. Depois passou para 100, e quando chegou aos 500 mil pararam, para não darem conta publicamente que estavam a ter muito dinheiro. Mas até 1992 não havia milionários assim.

Por isso é que digo que Savimbi foi culpado, porque não deveria ter levado essa guerra até ao extremo. Ele deveria ter esperado que ganhasse por via de eleições controladas, porque ninguém controla nada. Imagina que em tempo de eleições, nas zonas que eles controlavam, os homens tinham fome e estavam dependentes da comida que o MPLA enviava ou levava para os seus homens. Assim, não é possível. Com tanto dinheiro que eles tinham.

Para mim, o nosso grande azar começou aí.

CORREÇÕES:

Até chegarmos aqui, passaram 43 anos e, como é naturalmente compreensível, há nomes que foram esquecidos ou trocados. Fruto de algumas contribuições recebidas dos nossos leitores, efectuamos já, na primeira parte da entrevista, algumas rectificações, para tornar essa contribuição mais autêntica. todos os que contribuíram, os nossos agradecimentos. Assim, também se contribui para o conhecimento da verdade.

 

One Comment
  1. o grupo ideia força com o tri revisionismo no comando deve ser responsabilzado pela recolonizaçao de angola nos ulimos 49 anos

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