Algumas notas sobre Línguas Maternas, participação e futuro (1)

Por Cesaltina Abreu*

A língua que se aprende antes mesmo de chegar à escola é uma ferramenta-chave para pensar, comunicar e compartilhar conhecimentos, ideias e experiências, para a construção da memórias social a partir das memórias colectivas e da história dos povos. 

No passado 21 Fevereiro celebrou-se o Dia Internacional das Línguas Maternas. Língua Materna é a designação para aquela que é a primeira língua que uma criança aprende e que geralmente corresponde ao grupo étnico-linguístico ao qual pertence e com o qual se identifica culturalmente, tornando-se, assim, a primeira língua de comunicação. A expressão língua materna provém do costume de serem as mães as únicas a educar os seus filhos na primeira infância, fazendo com que a língua da mãe acabe por ser a primeira a ser assimilada pela criança. 

A Constituição da República de Angola refere “línguas de Angola”, incluindo o Português como língua oficial (Art. 19o), e as Línguas Angolanas de Origem Africana (Art. 25o). Oficialmente existem em Angola seis línguas angolanas de origem africana, nomeadamente Kikongo, Kimbundu, Umbundu, Cokwe, Mbunda e Oxikwanyama (Resolução no 3/87, 23 de Maio). Destas, as quatro línguas angolanas de origem africana mais faladas são o Umbundu, Kimbundu, Kikongo e Cokwe (Censo da População 2014). As demais línguas angolanas de origem africana, como Olunyaneka, Nganguela e Fiyote, continuam a aguardar o seu enquadramento. 

A UNESCO, Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, afirma que o direito à língua materna é um direito humano que precisa ser garantido. Entretanto, no mundo inteiro, 40% da população não tem acesso à educação num idioma que fala ou entende (1) . 

A África é a única região do mundo onde todos os modelos a que as crianças são / estão expostas (anjos e santos, empresários e realizadores, estrelas de cinema, etc.) não são dos seus contextos (2). As crianças africanas são as únicas no mundo cuja socialização começa com a aculturação, aprendendo sobre outros mundos e outras culturas numa língua estrangeira (3). 

A UNESCO incentiva e promove a educação multilíngue baseada na língua materna ou primeira língua. A ideia é que a educação comece no idioma que o aluno mais domina e depois gradualmente, sejam introduzidas outras línguas. Esta abordagem permite que os alunos cuja língua materna é diferente da língua de instrução (ou língua oficial) façam a ponte entre a casa e a escola, descubram o ambiente escolar numa língua familiar e, assim, aprendam melhor. 

Em Angola, decorre o processo de inserção das línguas angolanas de origem africana no ensino primário, da 1ª à 3ª classe, a título experimental. Para além de alguns programas em alguns meios de comunicação (particularmente noticiários) em “línguas nacionais (a designação popular) não se verifica a adopção do Bilinguismo ou Polilinguismo na vida quotidiana, entendido como a coexistência de duas ou mais línguas com base na articulação de dois princípios, da ‘unidade’ e da identidade. 

A língua que se aprende antes mesmo de chegar à escola é uma ferramenta-chave para pensar, comunicar e compartilhar conhecimentos, ideias e experiências, para a construção da memórias social a partir das memórias colectivas e da história dos povos. Por isso, o direito à língua é uma questão de direitos humanos para minorias, para povos indígenas, e para os grupos étnicos, no caso dos países com uma composição multicultural, como a maioria dos países africanos. 

Nestes contextos multiculturais, as línguas desempenham um papel fundamental na operacionalização das relações interculturais para promover o reconhecimento e a valorização da diversidade como uma oportunidade e fonte de aprendizagem para todos, desenvolvendo as capacidades de comunicar e incentivar as interacções sociais, criadoras de intersubjectividades colectivas e do sentido de pertença comum à humanidade.

Considerando que são as línguas que poderão garantir a participação equitativa e íntegra na sociedade, parece pacífico afirmar que quanto maior for o uso das línguas maternas na acção colectiva, mais inclusiva e mais activa será a cidadania. E participação é uma palavra-chave numa altura em que a Humanidade enfrenta, entre outras crises, uma crise ambiental que pode inviabilizar a vida humana no planeta Terra se não forem tomadas medidas urgentes, globais e concertadas (no sentido de serem complementares, sectorial e geograficamente). 

A necessidade de uma cidadania para o século XXI que, mais do que activa, contribua para concretizar processos inclusivos de mudança da sociedade e do mundo através da transformação dos processos de formação – como os meios através dos quais -, e da escola – como o local onde -, nos preparamos para viver num mundo diferente, orientado e vivido de maneira aberta para um futuro, ainda que incerto, mas que certamente não é mais a projecção do passado dada a inviabilidade cada vez mais evidente da continuidade do projecto de modernidade republicano, racional, liberal. 

Por essa razão, também, importa considerar nesse processo a convivência difícil, mas necessária, entre a geração ‘antiga’ e geração do futuro, das crianças e dos jovens que cada vez mais insistentemente questionam “que futuro” e se colocam como interlocutores incontornáveis das ‘velhas gerações’ visando influenciar o processo de tomada de decisões. Também aqui parece inquestionável a vantagem da participação das línguas maternas, para a construção colectiva de um Futuro, resultado de Novas Visões de Mundo, plurais, não excludentes, fruto da mobilização de todos os conhecimentos e experiências possíveis, e desenhado por inúmeras mãos, para que as Gerações futuras tenham o direito, amanhã, de escolher os seus próprios caminhos. 

27 Fevereiro 2023 (Continua)

Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e o Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.

1 Segundo o Instituto Internacional de Língua Portuguesa, Iilp, somente no universo dos países de língua portuguesa, existem mais de 330 línguas. 

2 Obanya, Pai, (2011) FOREWORD. Nsamenang, A. B. & Tchombe, T. M.S. (orgs) (2011). Handbook of African Educational Theories and Practices: a generative teacher education curriculum. Human Development Resource Centre (HDRC), Cameroon. ISBN: 978-9956-444-64-2 

Idem

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