CONVERSA NA MULEMBA
Na madrugada de 25 de Março desabou um prédio de seis andares em Luanda. Muitas foram as críticas ao Governo da Província ligando o acontecimento ao desgoverno do dito. As explicações oficiais foram pouco convincentes, mas veio em seu socorro o desabamento de outro prédio, na cidade francesa de Marselha. São coisas que acontecem, pois então. Mas as causas de um são bem diferentes das do outro. Em Marselha, a gestão urbana não tem os inúmeros vícios que enfermam a de Luanda. Desde a falta de uma clara e coerente política de habitação e de regulamentação da gestão e fiscalização das centralidades, dos prédios e dos condomínios; até ao modo como as populações pobres são destratadas e acusadas da sua própria morte ou do despojamento dos seus bens, por “insistirem em construir em zonas de risco”, perante a incúria e desresponsabilização de fiscais e administrações, muitas vezes acusados de serem os mentores de toda a sorte de negociatas de terrenos na periferia de Luanda. A indiferença perante o sofrimento dos pobres foi mais uma vez evidente com as recentes mortes causadas pelas chuvas.
No dia 21 de Março ocorreu um Fórum sobre Promoção das Exportações Agrícolas Angolanas, onde um agrónomo criticou severamente o uso de certas práticas agrícolas por muitos empresários, principalmente no tocante à aplicação excessiva de adubos nos solos e ao abuso de produtos químicos para a protecção de plantas que estão proibidos em quase todo o mundo. Por deficiência dos laboratórios e dos seus processos de acreditação, disse. De tal sorte que ele, o agrónomo, não come produtos frescos em Angola por temer pela sua saúde, excepto quando tem confiança absoluta na origem. E deu o exemplo de um campo em Benguela onde havia sido cultivado tomate em que morreram 26 bois que pastaram os restos depois da colheita. Uma denúncia gravíssima que ficou limitada às paredes daquele hotel de Talatona, embora ela tivesse acontecido dias após a denúncia nas redes sociais de problemas idênticos com pessoas que comeram hortícolas no Sumbe e em Porto Amboim.
Desde há muito que a sociedade sabe do aumento da criminalidade na sociedade, não obstante os patéticos juramentos das forças policiais de que a criminalidade tem vindo a diminuir. Num país onde a taxa de crescimento da população é superior à do Produto Interno Bruto, o desemprego e a pobreza só podem aumentar, e isso explica a marginalidade e a criminalidade. Então, é confrangedor ouvir que os desmandos contra os equipamentos socias e as propriedades privadas são praticados por bandidos vulgares e não pela população, como se esses angolanos em conflito com a lei não fizessem parte da população; é confrangedor perceber como pessoas que têm responsabilidades de emitir opiniões para o público não entendam que a miséria e a degradação de valores forçam mulheres e homens honestos a enveredar por práticas anti-sociais; e que, para além das necessidades não satisfeitas das pessoas, essas têm como referências a corrupção e a sua impunidade ao longo de décadas de má governação.
É neste quadro pouco lisonjeiro que deve ser encarada a crise vivida em certos sectores do sistema judiciário que, apesar de todas as evidências e como acontece com outras realidades nacionais, vem sendo escamoteada. Trata-se de uma crise que explica o insucesso da luta contra a corrupção. Como venho defendendo há muitos anos, essa luta só vingaria se tivesse sido desencadeada a partir do MPLA, algo que está fora de hipótese, como parece estar demonstrado.
São apenas alguns exemplos de uma crise anunciada. É contra este estado de coisas que se têm manifestado, de diferentes modos, largos sectores da população e não apenas “um grupo que está a ser instrumentalizado por forças políticas”. Foi contra este estado de coisas que votaram quase metade dos votantes das últimas eleições. O comunicado do Comité Central no dia 18 mais uma vez demonstrou que o partido no poder, a agir como tem agido e por si só, não tem condições para fazer reverter a situação.
O MPLA não quer entender que a única ameaça à paz é a angústia e a desesperança das populações sofridas, especialmente os mais jovens. Mais do que a continuada aposta no betão, aposta frequentemente associada à corrupção, são necessárias reformas institucionais e nos métodos de governar e tomar decisões, com o foco nos reais problemas e numa verdadeira reconciliação.
Em conversas nesta coluna, em 2014 e 2021, escrevi que a paz social precisa de um país reconciliado e apelei aos actores políticos que dessem passos para a concretização da reconciliação nacional adiada, pensando na juventude e nas crianças. Se o MPLA insinua que há forças políticas não interessadas na paz e na reconciliação, deveria fazer propostas no sentido de dialogar com essas forças. Em democracia é através do debate e da negociação que se procuram soluções para os problemas e não com acções musculadas ou com marchas supostamente em defesa da paz onde são passadas mensagens belicosas e de ódio. Estou lembrado que, em 2014, a pedido da UNITA, a Assembleia Nacional acedeu realizar um debate sobre a reconciliação que o MPLA desvirtuou transformando-o num repositório de discursos sem qualquer serventia. Os propósitos de reconciliação em relação ao processo do 27 de Maio ficaram manchados com o recente escândalo dos resultados das análises forenses realizadas a pedido de algumas famílias a quem tinham sido entregues corpos e garantida a sua autenticidade, o que representou mais um golpe nos propósitos de reconciliação do MPLA e na credibilidade das instituições públicas angolanas, que silenciaram o assunto.
Também estou lembrado que, em 2013, motivado pela contestação de um grupo de jovens, foi realizado um diálogo do então Presidente com a juventude, que acabou sendo um exercício de propaganda da JMPLA e resultou no anúncio de um Plano Nacional da Juventude nunca conhecido e ao qual nunca mais ninguém ligou, nem mesmo quando, em Outubro de 2020, o Presidente João Lourenço teve um Encontro com a juventude. Em todos esses eventos nunca foram vistos os jovens que se mostravam mais críticos em relação às políticas governamentais, afinal os verdadeiros responsáveis por eles, salvo algumas poucas excepções olhadas como produtos de práticas de co-optação.
Como fica aqui exemplificado, as instituições públicas angolanas mostram- se incapazes de fazer frente aos inúmeros e complexos problemas do País. Tal incapacidade é fruto da política de recursos humanos tantas vezes denunciada e insensatamente mantida. Com essa política, reafirmada agora pelo Comité Central, as instituições continuarão centralizadas, afastadas dos problemas dos cidadãos e servindo mais de atracção a quem pretenda fazer “chegar a sua vez” do que para projectarem o desenvolvimento do País.
Na encíclica Populorum Progressio (1967), o Papa Paulo VI escreveu que desenvolvimento era o novo nome da paz. Nada mais actual. Mais recentemente, o Papa Francisco afirmou que não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça com desigualdade. No nosso País há fome, pobreza e muita desigualdade – e não consta que os Papas sejam inimigos da paz.
PS – Em democracia é normal os partidos na oposição não votarem a favor dos Orçamentos de Estado, a não ser quando estes resultem de negociações. Por que isso há-de constituir uma afronta política?