Sobre (Re)conciliação Nacional: para valer, ou para constar(1)?

O regime não soube promover acções de inclusão social, combater a desigualdade e eliminar a pobreza, o que resultou num país dividido, empobrecido e dependente.

Por Cesaltina Abreu*

Desde o fim da guerra civil em 2002, os esforços com a recuperação da economia e a reconstrução de cidades e das infraestruturas não têm sido acompanhados de um investimento na construção da paz social, na aquietação dos espíritos, na promoção de uma cidadania inclusiva de todos os angolanos. É como se o crescimento económico – que já não temos – pudesse, em si, eliminar a pobreza e as desigualdades sociais, prescindindo uma intervenção intencional para pacificar os espíritos e o país após a prolongada guerra civil. Tal intervenção, contudo, parece fundamental se tivermos em atenção as lições da história dos pós-guerras em diversos quadrantes do planeta (2).

A agenda de uma sociedade saída de um tão longo período de guerra exige mais do que o desarmamento dos militares, o enquadramento de deslocados e refugiados de guerra e o relançamento da economia. Principalmente em se tratando de uma guerra civil, ela precisa incluir o ‘desarmamento’ e apaziguamento dos espíritos, sob a forma de uma agenda alargada de reconciliação nacional que permita construir a estabilidade social.

A diversificação e o crescimento da economia, anteriores à independência, deram lugar à dependência do petróleo e reduzida contribuição dos outros sectores, exceptuando a produção familiar dos pequenos produtores rurais e dos pescadores. Esta situação gera desemprego ou aumento do subemprego, que estão na base das deslocações massivas de jovens e adultos activos, das camadas mais desprotegidas, em busca de melhores condições de vida. Em consequência, o esvaziamento do campo em força de trabalho, a degradação das infraestruturas económicas, o colapso dos equipamentos sociais das cidades receptoras, e o aumento da tensão social e da violência. O regime não soube promover acções de inclusão social, combater a desigualdade e eliminar a pobreza, o que resultou num país dividido, empobrecido e dependente.

Após a independência, não se concretizou a promessa da unificação e reorganização do espaço herdado do colonialismo português, através da integração das distintas sociedades, com base no reconhecimento das diferenças: unir todas as nações que existiam no espaço geográfico designado “Angola”, através do traço comum das suas histórias, a vivência da experiência colonial e a luta contra essa dominação. Nesse legado histórico comum, parecia residir a possibilidade de construção de uma identidade cultural pluralista, capaz de fornecer os quadros de referência de um projecto-nação assente no reconhecimento e respeito pela diversidade e pela diferença, tolerante e solidário.

A integração social e cultural dos diversos grupos passa pela redefinição da nação em termos multiculturais: uma sociedade na qual a lealdade a uma subcultura pode entrar em conflito em relação ao Estado, deve adoptar uma política de tolerância que promova e sustente o conteúdo da cidadania e a reconciliação cultural e social. Se  a via escolhida para Angola for a do debate e da negociação, dois caminhos parecem possíveis: o de um estado-nação que reconhece e aceita o pluralismo cultural e se organiza constitucional e institucionalmente em função disso, ou um arranjo constitucional que melhor acomode a especificidade da situação em Angola, como a consociação ou a federação. 

A solução democraticamente escolhida encontraria sustentação económica na rearticulação das redes existentes, ajustando-as aos novos objectivos de equidade e de justiça social. O Estado (ainda o principal distribuidor de oportunidades, de reconhecimentos e de salários e subsídios), o mercado informal (omnipresente embora precário), a agricultura familiar (salvadora da pátria), as empresas pequenas, médias e grandes (em busca de espaço), os centros de estudos e pesquisas (que resistem, apesar do desencorajamento), as redes de organizações da sociedade civil (dinâmicas, mas empobrecidas, como os seus membros). Mas nós continuamos com os mesmos “velhos problemas”(3). 

Uma estratégia de (re)conciliação nacional, para Angola, deveria ter como principal objectivo a “construção” social de um passado em que a sociedade se reconheça, que instaure, e assegure, relações de confiança, interna e externamente, e que ensine a perdoar e a pedir perdão; criar uma memória social comum, começando pela reconstrução crítica das memórias colectivas dos diversos grupos sociais, para projectar um futuro comum, e pela negociação de um Contrato Social definindo a Nação em bases democráticas. 

Para isso, concorrem:

a) Diálogos entre os vários grupos sociais (participação aberta a todos, não apenas políticos e militares, mas intelectuais, grupos de cidadãos, protagonistas de acontecimentos que marcaram a história pós-independência, etc.); 

b) Respeito pela diferença e a dignidade individual e colectiva na integração social de deslocados, ex-militares, desempregados e minorias;

c) Abertura e diálogo na inserção de refugiados e diáspora;

d) Criação de condições de segurança e de estabilidade numa base universal;

e) Melhor comunicação entre as regiões e grupos sociais.  

Pensar “Futuro” pressupõe cidadania activa, esclarecida e consciente do seu papel de agente, garantindo a sustentabilidade do processo. Porque introduz pluralidade na ideia de bem-público, promove respeito por valores e costumes dos grupos sociais, e estabelece mecanismos de vigilância e transparência na gestão pública e na condução dos negócios do Estado. O estabelecimento de bases de diálogo aos diversos níveis e instâncias da tomada de decisão facilita a negociação de pactos sociais, pactos capital/trabalho, e outras plataformas de obtenção dos consensos necessários para criar solidariedade e sustentabilidade, e promover o bem-estar numa base equitativa.

A participação da sociedade civil é incontornável na eleição das opções, no estabelecimento das prioridades, na monitorização da tomada de decisões de interesse público, entre outras. Permite explicitar a substituição do modelo de “imposição”, vigente, por uma abordagem inclusiva, participativa, promovendo a criação de redes, de parcerias e de espaços para o exercício da “pressão e da influência” por grupos de cidadãos e plataformas aos diversos níveis da organização política, social e económica de Angola. E estes processos de participação nas decisões políticas e nas escolhas sociais, não são apenas “meios”, mas partes constitutivas dos “fins” a alcançar.

A questão que se coloca é saber como, nesta sociedade, institucionalizar espaços de discussão e ambientes de deliberação, francos e abertos, sobre o que cada um quer ser, e sente-se responsável por fazer. É precisa uma maior abertura das mentes e dos espíritos ao particularismo e ao universalismo, para criar responsabilidades assentes em colectividades organizadas solidariamente, e para entender o processo de permanente actualização e negociação dos termos de um contrato social – que nunca tivemos –, entre todas as partes envolvidas. 

Outra questão fundamental para viabilizar o processo de (re)conciliação social em Angola, prende-se com a carência, entre outras, de instituições intermediadoras de confiança, capazes de motivar e, também, de constranger o comportamento de todos, governantes e governados. Será necessário, então, estimular a sua criação. Numa nova ordem social, confiança pode “criar-se” através de políticas públicas que promovam cidadania e participação (como ‘método’ e como ‘bem público’)(4), através de sistemas de ‘amortecimento’ dos efeitos gerais da imprevisibilidade na economia e na sociedade. Criar seguros colectivos contra riscos colectivos, p.ex. sistemas de segurança alimentar, de educação, de saúde, de habitação, pensar direitos de propriedade em que a ‘ideia de propriedade’ passa de uma perspectiva individual para uma obrigação social implicando a sociedade no seu todo, são apenas alguns exemplos. 

As elites angolanas perderam momentos cruciais para a reapropriação da história nacional, em 1975, 1991 e 2002, manifestando descaso em relação à(s) sociedade(s) que nos constituem, desrespeito em relação à diversidade social e cultural de Angola, e esquecimento do seu compromisso de conduzir a sociedade na construção da angolanidade, permitindo estabelecer um equilíbrio entre as exigências de universalismo da globalização e o relativismo requerido pelo respeito às necessidades e realidades locais.

As formas de poder prevalecentes no continente africano, e Angola não é excepção, fragmentam a maioria da sua população numa série de minorias definidas culturalmente, acentuam as diferenças que lhes foram imputadas pela classificação colonial em grupos étnicos, e aumentam o fosso entre o mundo urbano e o não-urbano, por um lado, e entre os diversos grupos étnicos que coexistem dentro das fronteiras estabelecidas pela Conferência de Berlim, por outro(5). E estas formas de poder têm-se mostrado incapazes de estimular ou promover uma solidariedade democrática, através de maneiras criativas de articular estratégias de governação participativa com base na autonomia, e de política representativa com base em alianças, operando simultaneamente nos níveis central e local de organização do Estado e da sociedade.

Na identificação de forças sociais capazes de operar a ligação entre os vários ‘mundos’ que nos constituem, urbanos e não-urbanos, parece residir a condição de possibilidade para responder às demandas e às expectativas de uma sociedade mais justa e equitativa, melhores condições de vida, desenvolvimento do potencial humano, consolidação da Paz social, respeito e reconhecimento das identidades culturais, exercício do direito de participar na tomada de decisões em relação ao futuro, enfim… a emancipação prometida pela ‘Dipanda’(6). O que nos falta? Falta a ‘Dipanda’!

Bibliografia de suporte

1 Neste texto foram retomadas algumas reflexões de “Angola, Memória Social para um Futuro Comum”, comunicação ao IV Encontro Internacional sobre História de Angola, Centro Convenções Talatona, Luanda, Setembro de 2010. 

2 Wacussanga, Jacinto et al. (2008) Expectativas e receios nas próximas eleições – o impacto de 1992. CMI/CEIC, R 2008:7

3Nesta elaboração, retomei algumas linhas de reflexão e discussão de trabalhos anteriores, em particular a tese de doutoramento e a pesquisa qualitativa que lhe deu suporte empírico

Abreu, Cesaltina (2006), Sociedade Civil em Angola: da realidade à utopia. Tese de Doutoramento apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro; disponível no site www.iuperj.br.

4 Ideia colhida em HUTTON, W. (1998), “Como será o futuro estado?”.

5 Conferência de Berlim para a Partilha de África, de Maio 1884 a Setembro de 1886, a qual produziu o “Mapa Cor-de-Rosa”. NEWITT,  Malyn. (1997), História de Moçambique. Lisboa, Publicações Europa América.

6‘Dipanda’, do kimbundu [/quimbundo] em português significa independência. “Dipanda”, na verdade, vem da palavra portuguesa independência, que foi emprestada ao kimbundu [quimbundo] e, mais tarde, adaptada’. In Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/o-dia-da-dipanda1/3095  [consultado em 11-03-2023]

Sobre a autora:

*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.

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