Temos de construir uma ampla plataforma de reflexão e de debate, em todo o país, incluindo o público primordial, buscando entendimentos alternativos aos prevalecentes, sobre as relações entre o Estado e a sociedade, que forneçam as bases para a construção social de um projecto emancipatório em torno da reapropriação da ideia de bem-comum.
Em países como Angola, é fundamental que as políticas de Estado tomem a iniciativa de criação de oportunidades sociais – educação, saúde, reforma agrária, habitação, etc.- , ou seja, assumam a prioridade de valorizar os seus recursos humanos para a expansão das suas capacidades e a melhoria da qualidade de vida, para além do efeito no aumento das habilidades profissionais. Em consequência, haverá aumento da produção na economia e crescimento económico. Isso permitirá, ainda, criar um sistema simultaneamente de segurança e de soberania alimentar para estabilizar a oferta de alimentos.
A prevenção da fome e das crises resultantes de catástrofes naturais ou pandemias, implica a criação ou ampliação das redes sociais, aumentando os níveis de segurança e de protecção aos grupos sociais mais vulneráveis para melhoria do seu bem-estar e criação de oportunidades e mecanismos de inclusão na cidadania através da participação política no processo de tomada de decisão, e da contribuição para a produção e a geração da riqueza e do rendimento nacionais.
Mas isso implica a complementaridade dos papéis de instituições e organizações – Estado, mercado, sistema democrático, meios de comunicação, sistemas de distribuição pública de serviços, entre outros -, na criação de oportunidades e perspectivas fundamentais ao desenvolvimento sustentável. É preciso complementar eficiência e equidade, principalmente em contextos de desigualdades nas liberdades substantivas, como nas desvantagens acopladas prevalecentes em Angola: desigualdade de rendimentos, por um lado, e desigualdade de oportunidades de conversão de rendimentos em capacidades, por outro.
Nenhum país ou região poderá encarar, isoladamente desafios da magnitude dos resultantes de uma pandemia e, menos ainda, da actual crise ambiental. Importa a união de todos para uma compreensão profunda da vida social nos seus diversos modos de organização, e na busca de soluções com uma orientação ética, justa e inclusiva. E essa reorientação permite mobilizar aquelas ideias “fora do lugar”, habitualmente desconsideradas pela lógica capitalista & liberal dominante, como as tendentes a considerar a necessidade de uma abordagem mais global e solidária aos desafios actuais que promova sinergias diversos actores e instituições para tecer novos caminhos em direcção ao futuro.
Para começar, parece-me importante resumir algumas ideias-chave:
- Vamos aprender com o passado em matéria de programas e plataformas políticas, económicas e sociais. Os fundamentos do nosso futuro precisam “beber” das experiências do passado, para não repetirmos os mesmos erros;
- Compete ao Estado regular as políticas macroeconómicas, mas também lhe cabe promover uma cultura nacional de gestão participativa dos recursos nacionais e de prestação de contas, e negociar uma plataforma política comprometida com a elaboração de estratégias que criem crescimento económico e o transformem em bem- estar para todos;
- As instituições internacionais devem ser orientadas pelo sentido da cooperação e da complementaridade dos esforços de países e regiões, no esforço de desenvolvimento do seu capital humano, na promoção do capital social e no aumento da produção e da produtividade, bem como na criação de sistemas de troca baseados na equidade e na justiça social;
- Precisamos de uma Comunicação Social, como bem público, e não como instrumento de dominação e de exclusão social através da manipulação da informação e da opinião. Precisamos de informações quantitativas e qualitativas credíveis, para compreender, relacionar e formular conclusões com vista a projectar desempenhos futuros.
O momento actual pode ser visto como uma oportunidade de informação/reflexão para compreendermos as consequências das nossas escolhas, lá atrás, e de encontro de ideias para construir novas visões de mundo.
Mas em Angola, contudo, parece uma “oportunidade” desconseguida; a mesma ‘conversa’ em dois tempos e dois andamentos, que têm marcado a relação entre o Estado e a sociedade. Poderia ser mais um primeiro passo … mais um, de tantos outros potenciais primeiros passos que já aconteceram e se afirmavam como tentativas de construção de “pontes” de diálogo, de participação … afinal, foram mais ‘muros’!
A relação entre o Estado e a sociedade em Angola caracteriza-se pela descontinuidade, pelos silêncios, pelos contactos mediados por agências externas. É preciso criar mecanismos e procedimentos para a institucionalização de espaços de diálogo e de participação gradualmente mais amplos, inclusivos e democráticos.
Nós somos o que fomos capazes de produzir ao longo de décadas de ‘convivência’ nem sempre pacífica e, menos ainda, construtiva; não adianta negarmo-nos uns aos outros. Nós somos a sociedade possível e este é o Estado que consentimos, o locusdo universal a quem cabe criar o quadro jurídico-legal que legitima o funcionamento e intervenção da sociedade. É preciso construir uma convivência baseada nos consensos possíveis de alcançar e na acomodação dos dissensos dignos de respeito, com base em valores como tolerância e respeito pela diferença e pela diversidade, em ambiente de promoção da confiança enquanto bem público.
Esta construção colectiva é uma questão de vontade política e de reconhecimento do papel do “outro” no processo de decidir sobre o país que queremos para nós e que sirva de ‘partida’ para as próximas gerações criarem o seu próprio futuro. Mas temo-nos “encontrado” pouco e “conversado” menos ainda ao longo do tempo. Daí, o acúmulo de makas, de desencontros, de mal-entendidos, do disse-me-disse. Será que estamos falando a mesma coisa, quando mobilizamos conceitos para dar conta da situação, hoje, e para projectar o que queremos, amanhã? Os ‘campeões’ dos desentendimentos são, em meu entender, visão de país, construção de nação, democracia, participação, concertação social, direitos humanos, sociedade civil …
Esta des-sintonia alerta para a necessidade de novos códigos e novos vocabulários, para compreender as novas realidades sociais e, também, novas maneiras de avaliar, de valorizar, de quantificar. Isso implica a participação de actores individuais e colectivos na discussão, debate e construção de entendimentos locais e formas de significação, de verbalização e de operacionalização de conceitos como “desenvolvimento”, “progresso social”, “participação”, “cidadania”, “sociedade civil”, “liberdade”, “democracia”, entre outros.
Há um vício nos códigos dominantes por áreas de conhecimento / sectores de actividade / regiões, que nos dividirão até sermos capazes de criar novos códigos para realidades sociais múltiplas, porém perpassadas por características comuns, como a que estamos vivendo. Ou seja, a interdisciplinaridade e a multiculturalidade são necessárias para novas formas de entendimento entre cientistas, políticos e cidadãos comuns.
São necessários novos “indicadores / marcadores”, construídos colectivamente, para ‘avaliar’:
→os novos estilos de vida, novas cadeias de produção-transformação-distribuição- consumo p. ex., deixar de usar o PIB e adoptar o IDH, Índice de Desenvolvimento Humano, mais ajustado, mais realista;
→o desempenho ecológico dos países numa nova relação com o Planeta: emissões de CO2, desenvolvimento de energias renováveis, tratamento de dejectos, preservação da biodiversidade, redução dos níveis de poluição, ocupação dos espaços, entre outros.
Em tempo de crise, é central o papel do Estado no enfrentamento do desamparo, da destituição, do desespero. E, também, na mobilização da sociedade para, em conjunto, promover a integração social em novos termos. Mas além de ter de humanizar-se, sensibilizar-se para a causa da justiça socioeconómica e do desenvolvimento humano, tem de fazer-se presente!
Precisamos formular novas visões sobre a sociedade que queremos ser, e promover a constituição de uma força social capaz de induzir a mudança com esse objectivo, transformando o domínio privado em domínio público, e definindo uma Nova Agenda Pública.
Temos de construir uma ampla plataforma de reflexão e de debate, em todo o país, incluindo o público primordial, buscando entendimentos alternativos aos prevalecentes, sobre as relações entre o Estado e a sociedade, que forneçam as bases para a construção social de um projecto emancipatório em torno da reapropriação da ideia de bem-comum.
Obs: Este texto resulta de um conjunto de reflexões, em torno de uma comunicação (1) que escrevi muitos anos atrás.
11 de Março 2023
(1) “Soberania versus segurança alimentar”. Comunicação, I Fórum da Sociedade Civil da CPLP: Promovendo a participação social na CPLP. Brasília, 28 a 30 de Setembro de 2011
Sobre a autora:
*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.