Por volta das duas da manhã do dia 25, ruiu em Luanda, um edifício de seis pisos situado na avenida Comandante Valódia onde residiam mais de 40 moradores, entretanto evacuados, propriedade da FUNDIVEST. Até este momento, não se conheciam o número exacto de vitimas, mas a causa apontada foi “uma ruptura da tubagem das redes de distribuição de água do edifício vizinho, que contribuiu para a perda de capacidade de suporte do solo das fundações”, de acordo com relatório de levantamento feito pelo Laboratório de Engenharia de Angola com data de 21 de Março. Sobre o assunto, a arquitecta Maria João Teles Grilo escreveu o artigo que se segue:
Treme-lhe o esqueleto. Bamboleiam-lhe os pilares. Luanda está exausta! Gostaria de estar a exagerar, mas infelizmente não estou.
Num apanhado que só cabe aqui ser muito resumido, a ruptura da estrutura física da cidade começou com os confrontos entre movimentos de libertação após os Acordos de Alvor, com o êxodo dos técnicos na debandada e atabalhoada “ponte aérea”, com o inicio da guerra civil após a independência, com as sabotagens às redes de distribuição eléctrica e de água e o êxodo das populações rurais para as cidades.
Desde então, as sistemáticas crises, de que nunca mais saímos, têm continuadamente minado a estrutura urbana das cidades. Luanda é naturalmente o caso mais grave. A cidade que em 75 tinha 600.000 habitantes, tem hoje, estimadamente 9 milhões. A cidade do cimento, a “cidade branca”, tem sido sobreocupada, ao mesmo tempo que cresce desmedidamente a auto-construção, sem quase planeamento, sem regras, sem fiscalização séria.
Sem um abastecimento regular e normal de água e de electricidade, mesmo depois da Paz, em 2002, e até agora, vão-se somando os tanques de água nas varandas dos edifícios, os geradores, a ocupação de terraços tornados habitações e as remodelações aleatórias dentro dos apartamentos e das lojas nos pisos térreos, cuja maioria das obras se faz sem fiscalização, sem orientação técnica e com a leviandade que a ignorância permite, sem olhar às consequências. Um simples M3 de água pesa uma tonelada e desta simples informação se deduz riscos. E, pela calada da noite, as rupturas de canos de redes de águas, acredita também que os deuses são angolanos, enquanto, tudo junto e em uníssono, vão fissurando paredes, abrindo rachas, descalçando pilares.
Manutenção é palavra que não se usa fazer. De venda nos olhos, Luanda caminha inconscientemente para o precipício. Como inconscientemente subimos escadas sem corrimãos, pisos semi partidos, galerias com pavimentos já abatidos e olhamos o céu entre grades e ferros à vista das lajes dos tectos.
Durante o tempo da guerra e depois dela, arquitectos, engenheiros de estruturas e hidráulicos, tentaram advertir, fizeram propostas, pareceres técnicos… mostrando o agravamento das condições da cidade. A resposta por parte do Governo e do Governo Provincial foi sempre a mesma: – “Vocês gostam de complicar!” Alguns estarão, face este texto, a repeti-la, mesmo tendo como cenário o desmoronamento do edifício, esta madrugada, na Avenida Comandante Valódia (antes, dos Combatentes). Valentes resistentes à lógica e ao conhecimento! Como respondeu uma candidata, num exame de acesso à Universidade Lusíada, quando aí dei aulas: – “Quais os limites de Angola?”– “Angola não tem limites, cada um faz o que quer, como quer e quando quer”. Resposta textual!
Gerir uma cidade com a complexidade de Luanda, exige competência, experiencia técnica, curriculuns verdadeiros e consistentes. Que governador de Luanda teve a envergadura técnica para a gerir? Que formação académica, obra feita, experiência comprovada, tem o curriculum de qualquer um deles? As escolhas continuam a ser políticas. Muito poucos fogem a esta regra.
Entre o populismo e a repressão, a cidade vive ao deus dará. O primeiro desmoronamento aconteceu em 2008 com o desabamento do edifício da DNIC (Direcção Nacional de Investigação criminal). Causou 24 mortos. E o que foi desde então feito? Que fiscalizações reais e sérias, que manutenção, que reparações de estruturas, que substituição de redes de águas dos edifícios? Passaram 15 anos. Deus é angolano. Será… e para os que entregam o presente e o futuro a Deus, também o Altíssimo está farto de tanto descalabro, de tanta falta de bom senso, de tanta ignorância arrogante, de tanta politiquice e de tanta falta de competência técnica e acção, na gestão da cidade. Todos sofrem diariamente a constatação evidente disso, na cidade do cimento e na cidade auto-construída dos inúmeros bairros.
Um outro edifício cai. Declara-se a constituição de uma comissão para levantamento do estado dos edifícios. Sem desmerecer esta atitude, a solução não se resolve por aí. A solução, que era para antes de antes de ontem, só pode ser encontrada numa reestruturação radical de toda a pirâmide das estruturas governativas. Só pode dar frutos se nos ministérios, governos provinciais e administrações municipais, se colocarem técnicos competentes, curriculuns credíveis, que realmente saibam o que é, e como, gerir uma cidade.
E o alerta não se resume aos edifícios construídos antes de 75. Em muitas cidades há edifícios em óptimo estado, que foram construídos há séculos. O engenheiro Resende de Oliveira, que foi ministro das Obras Públicas, e que com grande pesar de todos, morreu recentemente, numa entrevista dada em 2018, (https://aapc.co.ao/entrevista-ao-engo-resende-de-oliveira/) alerta para o perigo de desabamento, também, dos edifícios construídos desde 2002, por não obedecerem às regras fundamentais nas suas fundações e estruturas, tendo ele afirmado que o que se estava a fazer a Luanda era um desastre arquitectónico.
É urgente rever, profundamente, a cidade abandonada a si própria, que Luanda é.
Porque não são só os edifícios que estão exaustos. Somos quase todos nós, cidadãos.
*Arquitecta