Quando não deixamos os mortos descansar…

Resta saber como Seth ficará na história mais lá pra frente. Olhando para os cadáveres que levou a descansar e pelos que levou a cansar… oxalá não seja como o lutador dos cadáveres!

Por Nelo Ndjava

Ontem, no real noticiário central, ouviu-se o general que é a segunda alta autoridade militar do reino dizer que, quando os mortos morrem precisam de descansar. Dizem que todos os dias aprendemos algo novo, talvez essa tenha sido a real lição de ontem.

Mas, na verdade, a tendência dos vivos não deixar os mortos descansar não é nova. Aliás, é extremamente antiga. Conta-se, por exemplo, que no “Egipto divinal” havia um deus chamado Osíris, que foi desfeito em 14 pedaços pelo seu irmão Seth, que depois dispersou os referidos pedaços, com vista a garantir o trono para si.

Para o desalento de Seth, Ísis, esposa de Osíris, achou o falo de seu amado marido e com ele conseguiu gerar um filho, que no final de estória veio a destronar Seth.

O morto, de que falou o general na Tv fora também uma espécie de deus do reino. E, talvez movidos pelo medo de que dele viesse alguma descendência que reclame o trono, o deus reinante entrou na disputa pelo corpo.

A disputa pelo corpo do falecido deus envolve tudo o que se possa imaginar e também o que não se imagina: um país, uma ex-esposa, uma esposa acusada de abandono do lar, filhos vários oriundos de relações pré, pós, para e co-conjugais e até mesmo uma suposta filha mais velha resgatada do submundo após a morte do dito deus.

Na luta pelos restos mortais do deus agora morto, vale tudo. Autópsias por suspeita de envenenamento, acusações de omissão de auxílio, acusações de rebeldia infantil, ameaças, fracções, reuniões amigáveis e até mesmo, claro, um processo judicial.

Vale dizer que esta luta pelo cadáver do deus morto decorre em solo estrangeiro, sob o olhar atento da mídia estrangeira. A mesma mídia crónica na incapacidade de noticiar as recorrentes aberrações que ocorrem no reino do deus morto.

O deus que passou a assumir o trono a resignação do deus ora morto, está em silêncio. Entretanto, enviou uma missão importantemente carnavalesca às terras onde morreu o seu Osíris. E o general que encabeça a missão, aquele que já referi, disse que só regressará ao país com a missão (lembre-se que só Seth o pode comissionar) de levar ao reino o corpo do deus morto.

Passo a explicar a trama: o reino quer sepultar o deus com honras divinais, mas alguns dos filhos estão degredados e alegam perseguição por parte de Seth. Porém, diferente do caso do Egipto, aqui Seth tem Ísis e alguns filhos do seu lado. Aliás, Seth foi à busca de uma filha cuja paternidade Osíris rejeitara, para garantir mais “votos” a favor do sepultamento do deus morto no reino que ele abandonou por seu próprio pé.

Vale lembrar que o morto foi ignorado, literalmente humilhado e tido como desimportância jornalística enquanto vivo, mas, claro, só depois de abandonar o trono que o fazia rei do Olimpo.

Viu seus divinais filhos presos e fugidos do reino e nada pôde fazer, senão assistir impotente e certamente admirado com o absurdo de poderes que Seth possuía. Exactamente os mesmos que também ele possuira enquanto deus reinante.

E morreu impotente perante tamanha majestade de Seth.

Voltemos ao corpo. O reino observou um luto vazio e seco, quase imperceptível. Além disso, foram assinados livros de condolências em velórios sem carpideiras, porque já se sabia que o corpo não se faria presente.Uma das filhas degredadas do deus morto até mesmo acusou os velantes de feiticismo, por conta de fazerem velório de parente alheio.

O noticiário central do país veiculou, com imagens para maior crédito, que a filha do deus morto em vez de velar, frequentava eventos célebres em outros reinos, parece que ao reino importava que ela velasse também.

Tanta notícia fútil. Tanta desnotícia oca. Tanto gambetismo a volta de um assunto tão incapaz de melhorar o reino como de piorá-lo, virou um espetáculo nojento e vergonhoso. Um permanente baile de nada que alegrou vários súbditos e não enojou a ninguém. Até os mais respeitosos intelectuais tomaram parte na disputa pelo morto. Se assim foi com os intelectuais, imaginem a escória.

Aos míseros mortais, que ao menos têm sossego garantido para depois da morte, só algo ocorre: diante de um cadáver tão conflituado quanto Osíris, porque não desfazê-lo em pedaços também? Assim cada um fará o seu velório e funeral com um pedaço de razão e a história julgará qual dos funerais teve mais importância. Aliás, fala-se que um dos nobres reis antigos está sepultado simultaneamente no reino e noutro reino mais ao sul. Não seria portanto uma novidade. Ademais, conta-se mesmo que o reino foi fundado em três lugares diferentes.

Qual o mal de repartir os restos do morto de modo a que não falte a ninguém e por via disso se poder tomar atenção a assuntos mais importantes e menos póstumos? Porque é o povo obrigado a assistir lutas cadavéricas por cadáveres putrefeitos? Alguém deseja servir-se do falo?

Porque não aprender que o peso que se exerce sobre os outros, sobrepesará amanhã sobre quem o exerce e, por via disso, encetar o necessário para garantir que não se morrerá sobre a opulência do próximo Seth? Já é nova a aliança, porque não deixar os mortos enterrar os mortos e tentar-se empreender esforços carnavalescos a favor dos vivos em vez dos mortos?

A pequenez humana pede bom senso. Mas senso pede história e ponderação. Mas Seth, ao que se vê, já que se diz historiador, parece não ter ponderação. E, se tem ponderação, como às vezes faz parecer, é certo que não tem história. 

Resta saber como Seth ficará na história mais lá pra frente. Olhando para os cadáveres que levou a descansar e pelos que levou a cansar… oxalá não seja como o lutador dos cadáveres!

21.07.2022

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PROCURAR