A responsabilidade colectiva só faz sentido quando pressupõe autonomia: a maior individualização, pelo aumento de capacidade dos indivíduos, gera maior pluralização nas formas de agregação de interesses e preferências, dificultando a integração social, o que demanda novas solidariedades e ordens sociais, assentes em novas concepções de reconhecimento e de responsabilidade.
Dando continuidade à singela homenagem a Paulo Freire no seu 103.º aniversário, que ontem partilhei, vou tentar refazer, neste texto de hoje, um roteiro de como, quando e porquê Paulo Freire influenciou a minha actividade profissional e a minha acção cívica.
Esse roteiro começa no Huambo, então Nova Lisboa, em 1974, com a formação na Metodologia de Paulo Freire para Alfabetização de Adultos, percebendo-a como uma proposta basicamente consciencializadora em relação à alfabetização de adultos, sendo o seu principal objectivo, promover a leitura do mundo a partir das experiências de vida do educando, ou seja, partindo da realidade de vida dos alfabetizandos para a aprendizagem da técnica de ler e escrever.
Continua no Huambo, no CIR Kwenha 1974/1975: após a formação, e sob a supervisão da formadora, Ana Paula Tavares, fui encaminhada para trabalhar no Centro de Instrução Revolucionária Comandante Kwenha, do MPLA, nos arredores da cidade de Nova Lisboa. Do que consegui aprender naquele período, nas matas os CIRs eram, simultaneamente, espaços de formação militar e de formação cidadã dos guerrilheiros e das comunidades a eles adjacentes. Eram lugares de transformação de mentalidades, de construção de identidades colectivas com base nos ideais de emancipação e de solidariedade. O grupo não era homogéneo, sendo a maioria de origem Kwanyama, das sociedades pastoris do Sul de Angola. Mal se expressavam em português.
Dada a heterogeneidade do grupo, tornava-se difícil identificar palavras geradoras que fossem comuns a todos, a partir das realidades socioculturais. Optei por trabalhar com eles, todos, a partir da vivência comum que tinham ali, naquela fazenda transformada em Centro de Instrução. Por isso, era comum que as palavras geradoras estivessem relacionadas com o treinamento, a expectativa da vida militar, a “ideia de guerrilheiro” que cada um tinha na cabeça, a “guerra civil” que cada vez mais se apresentava como o cenário seguinte, entre outros.
Ainda no Huambo, pensando na educação para uma Angola independente – como estudante de Agronomia, participei de uma equipa que, em 1974, promoveu debates sobre o ensino superior em Angola e elaborou um documento proposta designado “Repensar o Ensino em Angola”(2). Na transição para a independência, o objectivo era o de reflectir sobre o sistema de ensino existente aos vários níveis, tentar antecipar as necessidades do futuro país, começando pela questão fundamental de criar um sistema “nacional” produto, e ao mesmo tempo, reflexo, de uma realidade multicultural, que contribuísse para a construção de uma identidade nacional, e para a cicatrização das feridas provocadas pela intervenção colonial nas sociedades locais e seus modos de vida, numa perspectiva oposta ao tão frequente paradigma da vitimização, devido a “fatalidades” como o colonialismo, a escravatura e o apartheid. A busca era por um sistema de educação e ensino inserido na sua realidade sociocultural multicultural e inspirado e reproduzido pelos valores africanos, promotor da cidadania, até então negada aos angolanos, e de autonomia e agenciamento em relação aos caminhos a trilhar com vista à construção de uma sociedade livre, plural, justa e inclusiva.
Na Escola de Catofe – entre 1978/79 tive a oportunidade de participar numa experiência muito interessante, inspirada na obra de Paulo Freire. A alguns quilómetros de onde então vivia e trabalhava, Waku Kungo, foi instalada em Catofe, em Junho de 1978, uma Escola Provisória destinada a adolescentes não escolarizados, de 12 a 16 anos, filhos de pequenos produtores rurais da região. A organização dos processos de aprendizagem alicerçava-se no binómio Estudo< >Trabalho, com inspiração no quotidiano e nas experiências desses adolescentes e suas famílias e respectivas actividades produtivas e culturais.
Como coordenadora técnica da equipa que criou o FAS (Fundo de Apoio Social) e sua primeira directora executiva – em 1994, o Programa Económico e Social (PES/94) reconheceu, publicamente, a pobreza como categoria económica e social, anunciando uma Agenda Social com os primeiros passos para o combate à pobreza. Entre eles, o FAS, concebido para financiar projectos comunitários, visando a sua intervenção para atender necessidades mais prementes das comunidades. E a sua criação envolveu consultas a governos, instituições e organizações das províncias em que se desenvolveu a sua fase-piloto, designadamente Cuanza Sul, Benguela, Namibe e Cabinda. Os princípios que regeram a concepção da sua intervenção eram a autonomia e a descentralização, que permitiram o desenvolvimento de capacidades reflexivas nos diversos actores envolvidos (incluindo as equipas do FAS), pelo protagonismo atribuído na adequação de regras e procedimentos aos diversos contextos socioculturais e económicos, na busca de soluções criativas e locais para problemas partilhados a nível nacional, e na criação de um sentimento de co-responsabilidade no enfrentamento da pobreza. Também aqui, a influência de Paulo Freire, na ideia de que a responsabilidade colectiva só faz sentido quando pressupõe autonomia: a maior individualização, pelo aumento de capacidade dos indivíduos, gera maior pluralização nas formas de agregação de interesses e preferências, dificultando a integração social, o que demanda novas solidariedades e ordens sociais, assentes em novas concepções de reconhecimento e de responsabilidade.
Na Ibis, coordenando o Programa de Apoio às Organizações da Sociedade Civil em Angola (PSC)(3) – O PSC resultou de uma história de apoio à sociedade civil em Angola pela Ibis (ONG dinamarquesa) pela criação, através de abordagens participativas, do Programa Nzoyetu (A Nossa Casa), em finais de 1994. O PSC tinha como objectivo o reforço das capacidades de intervenção cidadã das organizações da sociedade civil e seus membros, através do apoio aos seus processos de desenvolvimento. O programa tinha como linhas orientadoras a formação e acompanhamento organizacional, debates públicos sobre temas escolhidos pelos parceiros, e a criação de Centros de Recursos (espaços de encontro onde também existiam acervos físicos e digitais, disponibilidade de equipamentos para acesso à internet por membros das organizações parceiras e públicos em geral). Fundamental na abordagem da Ibis, foi o trabalho em parceria, de forma a garantir que lições importantes fossem aprendidas, e que o conhecimento fosse partilhado com os parceiros que fariam uso dos métodos e abordagens, para se tornarem organizações da sociedade civil fortes e independentes.
A Docente e Chefe do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, até Novembro de 2021, onde lecionei várias disciplinas do curso de Sociologia, em particular na área de Sociologia Política(4).
Como método, iniciava cada ano lectivo com um encontro com os novos estudantes para introdução ao Curso e à vida académica, durante o qual procurava conhecer as motivações e objectivos de carreira, aprender sobre problemas e sugestões para resolvê-los, e tentar orientá-los nos repertórios de estratégias de aprendizagem(5).
Entre as minhas funções como Chefe de Departamento, liderei dois processos de reforma do Curso de Sociologia: o primeiro em 2011 e o 2º, entre 2015 e 2016. Estas reformas inspiraram-se numa filosofia que assume que a educação molda a sociedade e o futuro por meio dos estudantes de hoje, ou seja, o poder transformador referido por Paulo Freire. Enfatiza uma cultura académica que prepara os estudantes para contextos multiculturais e abordagens interdisciplinares, que promove o pensamento crítico e criativo, e que desenvolve atitudes, comportamentos e capacidades para que possam contribuir para a sociedade como cidadãos activos(6).
Como Pesquisadora do Laboratório de Ciências Sociais e Humanidades (LAB) – No domínio da pesquisa e extensão universitária cidadã, em parceria com Catarina Antunes Gomes, promovi a criação do LAB como unidade de pesquisa na Universidade Católica de Angola. Um centro de investigação multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar que se propôs, como objectivo, desenvolver, promover e divulgar a investigação científica fundamental e aplicada, e contribuir para a formação académica e científica de pessoas e entidades. As suas actividades desenrolam-se estritamente nos âmbitos científico e cultural, e são independentes de filiações partidárias e vínculos confessionais.
Dada a sua filosofia de abertura à sociedade e de reconhecimento do valor de sistemas de saber e conhecimento não académicos, e dado o seu compromisso para com modos de desenvolvimento societal solidário, justo e participativo, o LAB dá especial importância ao trabalho com organizações e comunidades da sociedade civil, bem como com redes e organizações de âmbito continental e internacional que partilhem a mesma filosofia.
No TRANSFORM, como Master Trainer
Um outro exemplo de aplicação dos ensinamentos de Paulo Freire, é a formação e a práxis como Master Trainer do TRANSFORM(7), em que um dos elementos distintivos é a participação dos “formandos” na formação. Os “formandos” são solicitados, com antecedência, a indicar as matérias em que se sentem mais confortáveis para introduzir temas, moderar os debates e facilitar actividades práticas.
A equipa de formadores procura distribuir as “apresentações de conteúdos teóricos” e as “actividades práticas” de forma que todos os formandos sejam retirados das respectivas “zonas de conforto” e sejam estimulados a vencer os seus medos e inibições na preparação das suas intervenções em áreas que não escolheram.
Paulo Freire, Presente!
Obrigada, Mestre!
Referências bibliográficas:
(1) Ideias extraídas do texto original, homónimo, publicado em Com a Palavra, o Professor: Vitória da Conquista (BA), v.8, n.22, setembro-dezembro/ 2023. NOTA: Segunda parte do texto ontem partilhado;
(2) Pires, E.; Abreu, C.; Fernandes, J.; Piairo, M.; Amaral, V., 1974;
(3) NIELSEN, F; THAW, D; VESTERGAARD, M. 2007;
(4) Já não desempenho as funções de Chefe de Departamento nem de docente. Mantendo apenas as actividades de pesquisa no LAB, Laboratório de Ciências Sociais e Humanidades da Universidade Católica de Angola;
(5) HARPE, B. & RADLOFF, A. 1999;
(6) HEPWORTH, M. & DUVIGNEAU, S. 2012;
(7) O TRANSFORM é programa de aprendizagem para orientar a concepção e a administração de sistemas nacionais de protecção social na África, “desenhado” a pedido da União Africana pelas agências da ONU – PNUD, UNICEF, ITC-OIT e OIT -, com o apoio da Irish Aid e do Programa de Sistemas de Proteção Social da UE / Finlândia (EU-SPS). Pretende contribuir para ajudar os governos africanos a transitar do paradigma da caridade da assistência social para o paradigma da cidadania da Protecção Social.
20 Setembro 2024