São necessárias plataformas de diálogo entre o Estado e a sociedade, no âmbito de uma ampla coalizão que conduza à negociação de um novo contrato social, como um primeiro passo para um processo de reconciliação nacional, que lance os alicerces da construção de uma história comum na qual todos se reconheçam.
A Paz que não temos e tanto precisamos!
Neste dia em que, internacionalmente, se chama a atenção para a importância da Paz, é no mínimo desolador passar em revista o estado do mundo actual. Em todo o mundo ocorrem guerras, invasões, mortes, destruição… os efeitos das alterações climáticas geram igualmente crises, de outra natureza, quiçá com consequências mais graves na medida em que colocam em causa a sobrevivência da Humanidade. E, apesar disso, nos salões de reuniões, gente bem vestida, bem nutrida e designada de ‘representantes’ dos povos, fala de Paz, a Paz que não temos.
Eu tenho muita dificuldade em imaginar o que será conseguido, em termos reais, verdadeiros, na Cúpula do Futuro – 22 a 23 de setembro – que se espera estabeleça as bases para um compromisso global diante de desafios que estamos a enfrentar (1).
Esse compromisso seria alicerçado em temas como:
1. O 1.º é sobre o Financiamento para o Desenvolvimento. O secretário-geral da ONU chama a atenção para a necessidade de se adoptarem “acções ousadas” para implementar a agenda, com ênfase particular em acabar com a fome e a pobreza, reduzir as desigualdades e aumentar a ambição para lidar com as mudanças climáticas. Embora concorde que essas seriam as prioridades que elegeria, permito-me perguntar: a que desenvolvimento remete esta agenda? Quem e como o define?
2. O 2.º tema é Paz e Segurança Internacional, tem a situação actual caracterizada como ‘excepcionalmente perigosa’, com o risco de grandes potências envolverem-se em conflitos no nível mais alto desde a Guerra Fria. A ameaça de uma guerra nuclear é a maior em décadas, enquanto a crise climática está a intensificar a migração e agravando tensões internacionais”. As recomendações para a Nova Agenda para a Paz fazem parte do Pacto para o Futuro, que deverá ser adoptado na Cúpula do Futuro. Não sendo de todo pessimista, coloco-me muitas interrogações sobre as condições de possibilidade de se alcançarem os acordos previstos, e, caso o sejam formalmente, não percebo, através do acompanhamento que procuro fazer dos discursos políticos e das medidas tomadas pelos vários países, vontade política para os concretizar.
3. O 3.º tema é Ciência, Tecnologia, Inovação e Cooperação Digital, com foco na AI, Inteligência Artificial. Aqui, as minhas reservas aumentam extraordinariamente, considerando a mercantilização dos sistemas de educação e ensino, a privatização e subordinação de programas aos interesses do mercado, a redução de centros de pesquisa e extensão universitárias a ‘start-ups’, entre outras, um pouco por todo o mundo. Os efeitos destas medidas, associado ao crescente uso de dispositivos digitais, na atrofia da inteligência natural, particularmente de crianças e jovens, provoca-me muito mais apreensão do que o advento da AI, embora considere que corremos o risco de ter uma AI desenvolvida por gente com um QI mais baixo do que os seus pais e avós (2). Defendo a inclusão digital como forma de ampliação da cidadania, mas não do jeito que tem sido praticada.
4. O 4.º tema é relacionado com ‘Jovens e Gerações Futuras’, estando prevista a adopção pela Cúpula, da Declaração sobre Gerações Futuras. As propostas incluem compromissos para acabar com a desigualdade, promover educação de qualidade para todos e garantir planeamento de longo prazo. Mantenho as minhas reservas, com base nos argumentos já antes apresentados.
5. O 5.º tema é ‘Governança Global’, particularmente a reforma das instituições internacionais criadas após o fim da II Grande Guerra Mundial, com o propósito de evitar que o mundo voltasse a viver situação idêntica. Espera-se que os chefes de estado presentes na Cúpula do Futuro discutam e cheguem a consensos sobre as mudanças a efectuar, por exemplo, no Conselho de Segurança.
Há anos que defendo a necessidade de um Pacto Social para Angola (2003) e de um Pacto de Compromisso com o Futuro (2018) (3). Então, eu gostaria muito que os resultados previstos sejam alcançados pela Cúpula, mas não estou nada confiante devido à crise de representatividade da generalidade dos governantes que falará na Cúpula em nome ‘dos seus povos’: quantos compromissos já foram assumidos no nosso nome? Não acredito em processos de cima para baixo. E não me parece que se possa corrigir um erro com outro erro, reproduzindo processos de decisão ‘fechados’.
Em diversas ocasiões argumentei que Angola precisa de um projecto nacional visando a concretização do ideal revolucionário de mudança social da agenda do movimento anticolonial, orientado para a democratização social, política e económica – e, consequentemente a ampliação da cidadania a todos os angolanos -, ancorado no reconhecimento da nossa diversidade e promovendo a construção de uma identidade nacional com criatividade e coragem inovadora de procurar o seu próprio caminho. Para isso, sugiro a criação de plataformas de diálogo entre o Estado e a sociedade, no âmbito de uma ampla coalizão que conduza à negociação de um novo contrato social, como um primeiro passo para um processo de reconciliação nacional que, a partir da discussão crítica das causas da prolongada guerra civil que tivemos, lance os alicerces da construção de uma história comum na qual todos se reconheçam, condição necessária para projectar o futuro comum.
É preciso pensar a Paz como um bem público, colectivo, de todos, e criar as condições para que todos não só contribuam para a sua construção, em processo, como beneficiem dos seus dividendos! Mas, assim sendo, o que esperar da Cúpula do Futuro?
Referências de consulta:
(1) Fontes: ONU News. Conheça os grandes temas da Cúpula do Futuro. 16 Setembro 2024. ONU News. Cúpula do Futuro_Guterres pede compromisso global diante de desafios rápidos e urgentes. 18 Setembro 2024;
(2) Michel Desmurget (2020). A Fábrica de Cretinos Digitais. Desmurget é neurocientista e director de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França;
(3) Abreu, Cesaltina. 2003, Coordenação de uma pesquisa para o A-Ip (Instituto de Pesquisa Económica e Social) para sevir de suporte ao relatório de Desenvolvimento Humano de Angola de 2004. Abreu, Cesaltina. 2018. “‘Que’ Ciências Sociais para ‘que’ Desenvolvimento”? VIII Colóquio da Faculdade de Ciências Sociais da UAN