MAIO, MÊS DE MARIA

de Boaventura Cardoso

Epopeia sobre a crueldade 

do Estado pós-colonial

JOSÉ LUÍS MENDONÇA

A apresentação desta obra, Maio, Mês de Maria, cuja primeira edição ocorreu em Julho de 1997, reparte-se em duas telas analíticas e uma reflexão concludente. A primeira tela trata da sua geometria morfo-linguística. A segunda considera a organicidade do objecto mítico. Podemos dizer que o primeiro momento é o da cerzidura romanesca. O segundo momento é o da efabulação política da realidade angolana. Esta efabulação nos leva de volta à realidade histórica e humana, e à reflexão sobre os propósitos de o escritor Boaventura Cardoso se predispor a dar ao papel um tema crucial sobre a África pós-colonial: a crueldade institucionalizada.

Esta repartição crítica tem mais a ver com uma questão metodológica. Até porque não se pode separar a forma do conteúdo. A forma é o conteúdo e o conteúdo determina a forma. Trata-se da milenar lei da correspondência elencada por Thoth, o deus egípcio da escrita e da sabedoria, que os gregos reciclaram como Hermes Trismegisto, e que diz o seguinte: “O que está em cima é como o que está em baixo. O que está dentro é como o que está fora”.

GEOMETRIA MORFO-LINGUÍSTICA

Para o primeiro momento da análise, recorro à teoria do novelo. O novelo de linhas (que as nossas mães chamavam de carrinho de linhas) tem uma ponta onde inicia e outra ponta que o termina. Se se cortar o fio do novelo, renascem outros pequenos novelos, porventura desenredados do seu formato prático. Novelo tem ainda a ver com novela, com romance.

Em Maio, Mês de Maria, o novelo se desenrola pela ponta do fim, tal como em O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez, no qual um personagem determinante, embora não o principal, cai de uma escada e acaba por ir desta para melhor, abrindo assim o caminho para a concretização de um amor eterno julgado impossível, da sua viúva com o namorado impedido de a ter por razões de discriminação de classe.

Este novelo de Maio, Mês de Maria tem nós. Cada nó corresponde a um dos 34 capítulos do romance. Facto curioso é que Boaventura Cardoso (BC) coloca um nó a cada seis páginas, excepto o primeiro capítulo que se estende por sete páginas.

Num primeiro momento do desfiar da meada, vemos-lhe a cor e a textura da linha. É um fio líquido, para compor um discurso em que a água serve de tom metafórico geral. A água entra nas entrelinhas do discurso do narrador como denominador comum dos estados de humor (alma) ou estados da situação da vida.

Assim, lemos: “as águas revindas constantes”; “as tranquilas águas”; “as águas idas revindo”; “as águas fundas se movendo”; “águas do dique irrompendo”; “as águas se anelando”; “as fundas oceânicas águas”; “era preciso deixar as águas correr e depois se ver vendo”; “as águas lagoando”; “as águas muito chovidas”;  “pensamentos lhe fluindo rios, águas muito fartas”; “os rios se misturando”; “as doces-leves-águas”; “as boas águas se juntando”; “as águas se estagnando no ontem-verdes-campos”; “as doces-leves-águas”; “João Segunda estava navegando nas derradeiras águas”.

O narrador omnisciente conta as estórias deste livro como um tocador verbal de kisanji. Kisanji líquido, de água. Assim é o tom dolente, muitas vezes triste e sofrido, porém com algumas explosões de festa, com que o griot nos transmite as malambas do personagem principal, João Segunda. Ao ritmo constante e fluido da água.

Somos levados a escutar um tocador de kisanji oral. Enquanto lemos Maio, Mês de Maria, ficamos com a nítida sensação de estarmos perante um contador de fábulas orais, as quais BC traslada para a escrita romanesca. Logo no começo da narrativa, somos surpreendidos com uma linguagem desviante da norma culta, e enovelada de metáforas e novas ficções linguísticas: “Igrejas tinham novamente mundo de gente, sobretudo de mulheres que, joelhando, fatimavam ardentemente Nossa Senhora de Fátima.” 

No terceiro capítulo, página 43, escutamos: “Estranhamente, Segunda não se apressou na ida para o Dondo para dizer adeus à Zefa. Se fosse já, ia sinfiar na cova dela para nela dormir também descansadamente.” E na página 50, “Condutores e ajudantes alarmados, em vez de ajudarem patrão deles se recuperar, recomeçaram chorar ritmado ai-ué Dona Zefééé, ai-ué mãe Zefééé, e o povo do Dondo a vir chegando, homens e mulheres que nunca tinham conhecido a defunta também entraram no choro total uauééé mama uééé.”

A obra apresenta traços persistentes da oralidade, uma espécie de metempsicose linguística, que consiste na reincarnação da alma de cada coisa em novos corpus lexicais inspirados na fala do povo. Na verdade, uma linguagem onde a interjeição e a onomatopeia reforçam a marca da oralidade:

“(…) crentes que debandavam em busca de reforços para solucionarem os casos. E kimbandas faziam da desgraça das pessoas a bendita graça deles, não tinham mãos a medir, se enchiam de dinheiro. Que um certo dia, no quintal de um grande kimbandeiro, tinha muita gente cada um à espera da vez dele (…) Meia hora mais tarde apareceu então um cão grande estava farejar, (…), e o cão se enraiveceu e começou estava morder nas pessoas que fugiam desordenadamente pelos becos do Bairro, (…) e o kimbanda que estava lá dentro de casa a consultar alguém, veio cá para fora confiante nos espíritos dele, estava fazer piruetas, truquices, passes mágicos a tentar dominar o cão, (…) parece estava conseguir algum resultado, o cão que estava ficar parecia calmo, (…) mas de repente o cão se desentorpeceu, saltou por cima do kimbanda e lhe mordeu na cara e no peito e lhe derrubou no chão. Que sangrou muito sem socorro e ali mesmo morreu com o espírito dele.” (193 a 195)

Em 2009, num colóquio produzido em Luanda, procurei afirmar o conceito de “realismo feiticista”, pela leitura comparada das obras “Uanga”, de Óscar Ribas e “De um Comba”, de Manuel Rui, como corrente literária especificamente africana, em contraposição ao realismo mágico latino-americano. Esta ideia já vinha da leitura de “O Bebedor de Maruvo”, do nigeriano Amos Tutuola. A obra de Boaventura Cardoso aqui em análise é a que, depois de muitas estórias que já li, mais se encaixa neste paradigma do realismo feiticista.

Segundo Jacques Maquet, entre os povos Bantu, “todos os seres (espíritos dos ancestrais, pessoas vivas, animais e plantas) são sempre entendidos como força e não como entidades estáticas. Esta concepção da existência rege todo o domínio da acção humana. Busca-se a intervenção dos adivinhos e dos sacerdotes (que têm o poder de captar e dirigir as forças que escapam às pessoas comuns) porque eles conhecem as palavras que reforçam a vida.”[1]

O trecho a seguir, com recurso à onomatopeia, ilustra essa mundividência: “aquele sacana do mocho que nos pareceu naquela noite na estrada está outra vez vir aqui nos chatear, kru, kru, kru, kru, kru, kru, com as ameaça dele, mano, por isso no meu pensamento estava pensar mano Samuel é arma da nossa querida patroa que está querer falar qualquer coisa, as falas dos mortos, mano, que eu acho mesmo, mano Samuel, tudo está acontecer porque ainda não cumprimos com a nossa tradição, que Lusala perguntou saber qual tradição, e Catorze deu logo a resposta dele, haka, mano!, os nossos costume, mano! é por caso é a falecida Dona Zefa que está chateada porque ainda não lhe fizemos o komba conforme que manda a nossa tradição, mano, estou te falar mano Samuel, é melhor falares no patrão esses problema da terra, temos de fazer o komba para a arma da defunta dormir descansada. (124 a 126)

Esta concepção da existência foi classificada como lei da comunhão vital e vigora no nosso subconsciente de mulheres e homens africanos contemporâneos. O fenómeno da “tala”, ou armadilha de wanga é um exemplo dessa visão do mundo e da vida.

Para terminar essa primeira parte, resta-nos integrar esta obra de BC na categoria de literatura de resistência pós-colonial. Em Angola, a chamada literatura de resistência, que nos foi legada pelas gerações do Movimento da Mensagem e da Guerrilha tem tido continuidade na pós-colonialidade. Aliás, toda a boa literatura é literatura de resistência. 

ORGANICIDADE DO OBJECTO MÍTICO

No seu livro Viagens na Minha Terra, Almeida Garret, escritor romântico português do século XIX, enumera os ingredientes necessários para se fermentar um bom romance. Escreve ele:

“Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião te vou explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa literatura. (…) Todo o drama e todo o romance precisa de: 

Uma ou duas damas, mais ou menos ingénuas.

Um pai – nobre ou ignóbil. 

Dois ou três filhos, de dezanove a trinta anos. 

Um criado velho. 

Um monstro, encarregado de fazer as maldades. 

Vários tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios e centros. 

Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eugène Sue, de Víctor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul – como fazem as raparigas inglesas aos seus álbuns e scrapbooks; forma com elas os grupos e situações que lhe parece; não importa que sejam mais ou menos disparatados. Depois vai-se às crónicas, tiram-se uns poucos de nomes e de palavrões velhos; com os nomes crismam-se os figurões, com os palavrões iluminam-se… (estilo de pintor pinta-monos). 

– E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original.”

Em Maio, Mês de Maria, o leitor encontra um núcleo de personagens que mais ou menos reflectem aquela teoria de Almeida Garrett – a qual, afinal, não é de sua exclusiva autoria ou descoberta, mas vem desde os tempos dos mitos babilónicos, embora os caracteres e a linguagem que Garrett aconselha não se encaixem na técnica narrativa de Maio, Mês de Maria, pois este vai buscar esses elementos à própria vida real.

Na narrativa Maio, Mês de Maria, destacam-se estes personagens:

Personagem principal: JOÃO SEGUNDA (JS), mais velho comerciante abastado no tempo colonial, detentor da quarta classe do colono, caído naquilo que ele chamou “grande desgraça está para acontecer, a terra vai tremer aqui em Dala Kaxibo, um vento forte vai arrasar tudo, nada ficará de pé, as casas, os animais e as fazendas todas vão desaparecer”.

Coadjuvantes (familiares e outros): ZEFA (esposa); Hermínio, Horácio e Hortênsia (filhos); Maria Florence Muyambo Sipangule (neta); Tulumba, cabra de estimação o sexto sentido de JS, este entendia que “tem coisas, muitas, que a ciência ainda não foi capaz de explicar, mas que acontecem sim senhor”; Samuel Lusala (criado de casa); Catorze (empregado cuidador dos bens em Viana); a pequena Kassamati, afilhada de Zefa; Nossa Senhora de Fátima (personagem surreal com manifesta participação no desenrolar dos acontecimentos, principalmente no final); Sô David, enfermeiro em Boa Morte; e camarada Comandante, genro de João Segunda e marido de Hortênsia, que “afinal não era angolano puro, era parece zambiano. Tinha parentes dos dois lados, os muitos sangues lhe correndo no sendo, ser”.

Oponentes: Cdte. Pit Bull; Cdte. Staffordshire; militares saídos da mata para incendiarem o camião a caminho da Fazenda JO; chefe da fazenda Juventude Operária; vizinho do segundo D no prédio do Balão.

Personagens zoomórficos: para além da cabra Tulumba; cães ferozes famintos, adestrados para o rapto de pessoas; mocho premonitório;  

Outros personagens: moradores do prédio do Bairro do Balão; Sô Cunha dos caixões; Sô Padre com poderes de clarividência; Dona Joana (4 filhos desaparecidos); velho camponês a caminho do campo JO; Dona Rosa do luto preto (pelos três maridos); Dudu, Juca, Xico Matos, Filó, Titico, Zeca da Banga, Tó, Xico, Tino, Nelo, Manecas, Zito, mano Keta, Filó, Bé, Maninha, alguns dos 300 jovens desparecidos.

Espaços: na geografia de Angola: Dala Kaxibo; Munenga; Bairro do Balão (acção central); Campo da Boa Morte, em Finisterra (Moxico); Campo Juventude Operária (Kwanza-Sul). 

Tempos: pedaços da era colonial em Dala Kaxibo; era da independência no Bairro do Balão.

Narrador(es): este livro tem vários narradores metidos na pele de um só, cujas linguagens formatam um hibridismo peculiar, meio culto, meio popular.

Acção: Mal abrimos o livro, depois do prefácio, que jamais lemos, pois nos recusamos terminantemente a aderir à mitografia do prefácio, visto que este nada acrescenta ao texto original, logo na primeira página, escutamos os narradores dizerem a uma só voz:

“Igrejas tinham novamente mundo de gente, sobretudo de mulheres que, joelhando, fatimavam ardentemente Nossa Senhora de Fátima.” (13)

Crentes estavam acreditar piamente fatimando e cantando com a força dos corações, milagre podia milagrar de um momento para o outro. (…) Que Deus, a só única salvação, podia se evidenciar por intermédio de Fátima, Senhora Nossa.” (13, 14) 

Esta é a ponta do fio do novelo que vai ligar ao seu fim, como veremos. É a partir desta fatimação na igreja que o novelo se desenrola do carro e se anuncia a acção central do romance. 

Ainda no primeiro capítulo, constatamos que “certo dia, no decurso de uma das pregações do jovem padre, que uma senhora irrompe no meio da multidão gritando: Meu filho! Meu filho! É ele, o meu filho! É a voz do meu Quinzé! No pensamento dela voz do padre era voz do filho que ela procurava fazia meses”. (16 e 17)

“Hortênsia e Horácio tinham decidido levar o pai na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, na expectativa de que pudessem ouvir também voz dele de Hermínio. João Segunda que estava debilitado e desorientado. (…) De repente João Segunda começou estava estrebuchar. Os filhos e o criado se assustaram. Que ele falou qualquer coisa que ninguém não percebeu. Se estrebuchou novamente, convulsionou, zolhos dele esbugalhados abertos e voltou falar imperceptível. Tinha gente estranha estava lhe olhar só atentamente. Eh! Hermínio! – de repente ele que gritou. – É a voz de Hermínio! Hermínio, meu filho! – Regritou voz possante e prolongada ecoando por toda a Igreja. Os ecos perdurando. Hermínio!!! 

(…)

Dois médicos lhe vigiavam constantemente. João Segunda quase não estava respirar. Estava irreconhecível, espantosamente envelhecido, no rosto a palidez da morte que estava quase nas vascas. No hall de entrada do Hospital do Prenda, Horácio, Hortênsia e Lusala esperavam impacientes um dos médicos aparecesse a dizer algo sobre o estado de saúde dele. (…) Subitamente Lusala que começou estava convulsionar e a falar alto. (…) Samuel Lusala queria ir imediatamente para casa pois algo de estranho se estava passar, que ele falou. A casa está arder! – que disse Lusala. Me levem na casa! – gritou com firmeza. Horácio que pressentira criado estava possuído de espíritos, não duvidou do que ele estava falar. Entretanto, quando se preparava para pedir ajuda a alguém para lhe levar para casa, reconheceu no fundo do corredor um dos médicos que estava cuidar de João Segunda. Com uma expressão que não deixava dúvidas sobre o que ia anunciar, o médico vinha ter com os dois irmãos. Hortênsia desatou chorar abraçada a Horácio. Lá em casa, cabra Tulumba estertorava no exacto momento em que João Segunda se despedia deste mundo ao fim de longos e atribulados sessenta e cinco anos.” (19-25)

Assim começa esta estória e assim também termina, daí termos referido, com o deus egípcio Toth, que o fim é o princípio e o princípio é o fim de tudo. Maio, Mês de Maria é uma viagem, uma epopeia na linha milenar da Epopeia de Gilgamesh, poema épico da Mesopotâmia, escrita 2 mil anos antes da era cristã, da Odisseia grega de Homero, ou de O Bebedor de Maruvo, de Amos Tutuola.

A odisseia de João Segunda e sua família começa com a fuga de Dala Kaxibo, onde viviam desde o tempo colonial, e onde JS era um comerciante negro respeitado e próspero. 

“Que ele estava pressentir a terra ia tremer lá em Dala Kaxibo. Ninguém não lhe tinha dito nada, mas ele que sabia. Soconsigo tinha notado só, Tulumba cabra dele de estimação com mais de dez anos de vida, estava agitada, piruetava cabriolices mágicas, derrubava cercado e ia lá dentro barafundar, criadagem toda em reboliço corria mil pés de um lado para o outro na tentativa de apanhar o caprino nas suas vertiginosas descidas dos saltos que dava.” (26, 27)

A ida para Luanda, com os 15 camiões de que JS era proprietário, foi cheia de contratempos. Tendo dois camiões avariado na Munenga, “Catorze, um dos ajudantes mais antigos” (…) esse Catorze que era muito esperto sabido no conhecimento de todos os bichos da mata. Foi ele quem que, momentos antes naquela mesma noite, tinha ouvido perto um mocho-pequeno-d’orelhas, lhe atirou pedras, mas o mocho que continuou por algum tempo o aziago trilo dele kru…kru…kru (…) Dona Zefa tinha acordado assustada com o choro do mocho, mas João Segunda que lhe sossegou não era nada, era o vento só que estava imitar o mocho. Catorze pressentira que o mocho tinha vindo anunciar uma desgraça, mas se recompôs disfarçado. E assim foram passando a noite, divertidos alegres, até quando que o cansaço lhes deu no corpo.” (40, 41)

O mocho, afinal, tinha vindo anunciar a morte súbita da esposa de JS, dona Zefa – a qual sofria do coração –, a poucos quilómetros do Dondo.

Apesar de falecida, Zefa continua omnipresente no dia-a-dia de JS, pois, como já atrás se referiu, os mortos nunca partem, mas convivem com os seus entes queridos.

Em Luanda, a família Segunda fica a morar no sexto andar de um prédio no Bairro do Balão, depois de um tempo em casa de compadre Lourenço, na Terra Nova. (56)

“Eleito Presidente do Futebol Clube do Balão e do Conselho de Moradores do Prédio do Balão, João Segunda se sentindo sólido naqueles cargos, começou então estava lutar para o maior de todos grande sonho dele: ser Presidente da Comissão do Bairro do Balão.” (122)

“(…) passaram dias e dias Bairro todo já sabia e estavam se interrogar sobre a razão do estranho desaparecimento e então uns miúdos do Prédio é que contaram. Que tinham visto três cães grandes farejarem avidamente em todos os cantos pareciam saber bem o que procuravam nunca tínhamos visto aqueles cães no nosso Bairro eram bem grandes sim senhor desse tamanho mais ou menos metiam medo e então nós vimos os cães estavam se aproximar do camarada Segunda e ele ainda que tentou se defender mas os cães eram muito agressivos sanguinários ele gritou gritou e depois não ouvimos nem vimos mais nada nem o camarada Segunda nem os cães nem nada tudo desapareceu misteriosamente (…) Eh! Eh! Eh! Deitado na cama João Segunda que não falava. Estava ferido mordido da cabeça aos pés e tinha zolhos dele inchados vermelhos, não via quase nada. Lusala e Horácio estavam à volta dele mais um vizinho enfermeiro que lhe estava cuidar das feridas.(…)

Estando só com o pai na varanda, um dia Horácio lhe perguntou então para onde lhe tinham levado, o que lhe tinham dito feito, que não se lembrava de tudo, mas sabia tinha sido interrogado numa grande sala, fortemente muito iluminada e aparentemente sem ninguém, sim não vira ninguém, quem lhe interrogava não dava a cara nunca, que podia esclarecer, claro, era que se lembrava ter ouvido dizer ele como Presidente do Bairro era primeiro quem que tinha culpa pela confusão, qual confusão?, falaram que tinha muita agitação nocturna no Bairro, que constava mesmo é que o Bairro do Balão queria voar liberdades, mas o que é que isso quer dizer, pai?, quer dizer no entender deles, o Bairro queria se tornar independente!, não acredito!, parece uma anedota, não é?” (130 a 133)

“Com apontamentos que foi tomando durante as reuniões, iniciou então, uma noite, uma longa exposição que ele próprio levaria a várias entidades. Denunciaria aquilo que considerava ser violação dos direitos humanos. (…) Que indicava na exposição a lista dos rapazes desaparecidos, mais de trezentos.” (143)

“Camaradas fulanos, camaradas uma ova! meus é que não são! Excelentíssimos Senhores, venho mui respeitosamente expor a Vossas Excelências o que estranhamente vem acontecendo neste tradicional e pacato Bairro do Balão, os senhores sabem a que me refiro. Foi uma verdadeira chacina, não, risca, é palavra forte, não, fica assim mesmo, que se abateu sobre a população indefesa deste glorioso Bairro, que eu tenho a pesada responsabilidade de dirigir… Não acredito que Vossas Excelências tenham autorizado tamanha mortandade, Vossas Excelências que sei serem acérrimos defensores de uma sociedade socialista, igualitária e justa, de democracia plena, princípios que em nada se coadunam com a prática dessa corja de bandidos que andam p’rá aí a espalhar o terror e a morte e que, em consequência, só contribuem para manchar a boa reputação desta terra que pretende ser um exemplo para o continente africano… não, fica melhor assim, desta pátria que é sem dúvida trincheira firma da revolução em África, pois , assim está melhor, são palavras que lhes vão direitinhas ao coração… Concluindo e resumindo, peço a Vossas Excelências que me digam antes de mais para onde foram levados os jovens deste Bairro; que tomem medidas urgentes para impedir que os cães voltem novamente a atacar o Bairro do Balão; que enviem para o Bairro instrutores especializados em técnicas de auto-defesa; que nos dêem armas para nos defendermos e que sejam levados a tribunal e condenados à pena capital os autores de tão grande razia. (…) Não acreditem Vossas Excelências que o Bairro do Balão tenha pretendido alguma vez voar liberdades, como se propagou por aí. Isso é uma pura mentira, meus senhores. (…) Posso afirmar a Vossas Excelências que o Bairro que dirijo só existe fazendo parte do todo territorial nacional. Aliás, se Vossas Excelências tiverem quaisquer dúvidas, façam um referendo e hão-de conhecer as nossas mais profundas aspirações nacionalistas, ponto final.” (146 a 149)

Da discussão que tivera com comandante Pit-Bull ficara com a evidente clara certeza ele tinha muito a ver com o assalto dos cães ao Bairro do Balão. Disso que ninguém lhe podia demover. (…) 

Apesar dos muitos esforços que tinha despendido, requerimentos de baixo para cima, encontros, audiências, Segunda ainda não tinha conseguido saber do paradeiro dos jovens do Bairro. Se sentia frustrado, e não sabia já o que dizer às muitas mães que continuavam lhe bater à porta.” (194, 195)

“Rumores intensos estavam falar muitos jovens do Bairro tinham sido vistos nos longes onde a vista não chega, por trás das montanhas onde o sol se esconde. (…) que ninguém  que sabia para onde se caminhava, que se dizia estavam a caminho de Finisterra, que ficava no deserto da vista, (…) que lá onde os jovens do Bairro estavam se trabalhava de sol a sol, tinha muita fome demasiada que até se comiam ratos e raízes, que por isso diariamente morria gente (…) (206 a 209)

Mo capítulo 21, se diz que JS “fizera longa viagem de comboio de muitos apeadeiros, vaporizando caminhos de subidas e descidas, Kamitongo, Léwa, Lumeje, curvas e contra-curvas, emnuvando fumaradas em Xifumaje, jiboiando em demoradas paragens até no Lwau. (…) João Segunda tinha, entretanto, reparado que os passageiros que entravam e saiam eram quase todos velhos, mulheres e crianças, rapazes raros nenhuns, parece as populações tinham envelhecido de repentemente. (…) Que não tinha lógica explicação era envelhecimento tão brusco da natureza daquelas terras ainda há pouco verdes-boas, arbustos se transformavam em árvores antigas de dia para noite, riachos ou secavam ou se apresentavam rios de velhas magras correntezas, carreiros-veredas-caminhos tinham desaparecido, o gado pastava em vão à procura do viço do verde do dia anterior, os pássaros tinham deixado de amanhecer alegrias. Entretanto, ele que se foi dando conta pelas conversas que foi ouvindo, companheiros de viagem daquelas caminhadas também estavam procurar familiares desaparecidos.” (234, 235)

“E chegara. Boa-Morte, o nome estranho da localidade que tinha visto visionado, duas ou quatro casas comerciais separadas por uma estrada asfaltada, diziam ia até na fronteira com a Zâmbia.” (236, 237) (…) um tal comandante “Está-fora”, Staffordshire, sô David que lhe corrigiu, que, falavam, não era parecia angolano, tinha vindo do outro lado da fronteira. Ele que era o senhor dono todo.” (241)

“(…) os jovens que estavam ali tinham vindo de várias distâncias, que uma boa parte tinha estado concentrada no Lwena, no Bairro Sangondo, e de lá foram de comboio para Lwau, donde depois seguiram para a comuna da Boa-Morte em camiões militares. Como a alimentação era demasiado pouca, os jovens comiam que encontravam, raízes de plantas silvestres, ratos e gafanhotos, peixe seco estragado e mandioca quando que aparecia. (…) Que os que eram escolhidos para enterrar quem que diariamente morria de fome ou dos ferimentos das mordidelas dos cães, recebiam como recompensa um pouco de leite em pó. (260, 261)

João Segunda permaneceu oito meses no campo da Boa morte, foi torturado mordido pelos cães, até que o comandante Staffordshire o autorizou a sair. Do filho não teve notícia.

No Bairro do Balão, Horácio passou a andar com frequência com Dudu, um dos amigos de Hermínio. (…)  Era uma tarde de quinta-feira. – À primeira vista as pessoas são levadas a pensar que, de facto, a confusão começou porque o Bairro do Balão queria voar liberdades, como se diz por aí. Isto é uma forma subtil de esconder as causas verdadeiras. Alguém se aproveitou da situação para vingar ódios antigos. – Não te estou a entender. – Há desconfianças e ódios que já têm raízes, vêem desde tempos antigos.” (280, 281)

“Que alguém tinha dito, e muito bem, que era preciso partir os dentes à pequena-burguesia.” (283)

“Mas a esperança de encontrar Hermínio não morreu na alma de JS. “Regressou a Dala Kaxibo, no camião de um amigo que era quem que estava ao volante. João Segunda quando que chegou nas terras que ele tão queridamente conhecia, Katoka, Tumbo, Phutu-Alunga, Bwexi, Hanza, Musawlo, Binga, Kizoa, que chorou muito sofrido ao ver ninguém nas sanzalas, ninguém nos campos, tudo abandonado, o total vazio. (…) Fora na antiga casa dele e lhe encontrou devastada, portas escancaradas, o tecto reduzido a algumas vigas de madeira, paredes demolidas. (…) Segunda confirmou: vendaval tinha afinal chegado nas terras dele de lá em Dala Kaxibo, e tudo ventara muito varrido.” (290, 291)

Caminho da fazenda Juventude Operária foi o próximo itinerário. “Lhe tinham falado essa fazenda não era como a da Boa-Morte, a vida era possível quase harmoniosa, e não tinha fome porque tinha mais verde na plantação produzida por jovens que para lá tinham sido encaminhados para reaprenderem nos novos hábitos.” (292)

“No dia seguinte João Segunda e o amigo se apresentaram no gabinete do chefe da fazenda e lhe disseram ao que vinham. (…) Chefe da fazenda se quedou silencioso, enquanto olhava com tristeza os dois homens em frente dele. Depois, sem exaltação, num tom denotando franca comoção jurou pela alma da mãe dele que nem Hermínio, nem os outros rapazes do Bairro estavam ali. Que Segunda ainda reparou que o chefe da fazenda tinha afinal as suas bondades como qualquer homem. (312 a 315) 

No capítulo 32, o novelo atinge o clímax, quando JS regressa da fazenda Juventude Operária e se depara com o desaparecimento do segundo filho, Horácio.

“No dia seguinte, logo pela manhã, saiu de casa e foi contactar com gente que sabia podia se não resolver o caso, ao menos lhe dar informações sobre o paradeiro de Horácio. (…) Segunda estava irritadiço-nervoso-encrespado. Depois, no terceiro contacto daquele dia, as coisas se agravaram. – Eu só quero que o senhor me diga se o meu filho Horácio está ou não está aqui! – Segunda berrou nervoso. – Primeiro, eu não sou senhor, mas sim camarada! – Camarada? Camarada uma ova! Camarada é lá entre vocês! – Vocês quem? – Vocês todos! Vocês todos os responsáveis por esta situação de instabilidade e de violação dos direitos humanos! – Afinal de que lado é que o camarada ou senhor está ?! – Eu estou do lado da razão! – E quem é que não está do lado da razão?! – Quem está contra ela. Ouviu ? – Que falou Segunda num tom ameaçador e abrindo bem os olhos. Irritado, interlocutor de Segunda fez menção de pegar na pistola que tinha dependurada na cintura, truque dele só. Precauteloso, Segunda recuou dois passos, mas depois, corrigindo aquele gesto involuntário, avançou e afrontou: – Dispara, meu sacana! Dispara se és homem! – Segunda tinha raivoso-vermelho. Quem que lhe podia desafiar? As raivas prontas a estoirar. O homem se acalmou e Segunda também. Se serenaram as tumultuosas águas. E conversaram então. E se entenderam. Segunda reviu Horácio” (342, 343

O capítulo 33 é revelador do clímax desta estória. “João Segunda se desinteressara de tudo. Já não lhe interessava lutar por nenhum cargo, não queria ser presidente de nada. Que lhe interessava demais era que alguém resolvesse o problema do filho dele Hermínio.” (344)

Chegados ao derradeiro capítulo, espalma-se-nos o desfecho. “… ideia foi crescendo corpo, número de aderentes aumentando. Os rios confluindo águas. Que nesse dia ninguém ficaria em casa, nem os doentes.” (…) Que o rumor que estava correr: Luanda toda também queria se associar à manifestação.” (354)

“(…) A manifestação (com a Nossa Senhora de Fátima levada num andor por quatro homens e acompanhada pelo padre) partiria do Bairro do Balão, depois seguiria ao longo dos Combatentes, Mutamba, Marginal, Ilha, meia volta, passaria novamente na Mutamba, depois Maianga, António Barroso, Comandante Gika e finalmente no Largo Primeiro de Maio. Aqui, onde que ia acontecer a grande festa, estava tudo muito festivo ambiente, para além do som que se ouvia já amplificado.

Vinha assim a manifestação já de volta da Ilha quando, perto da Mutamba, pessoas que estavam na cauda do cortejo ouviram fortes latidos de cães. (…) Daí a pouco puderam então ver, apesar de já estar a escurecer, uma grande matilha de cães a vir atrás da manifestação. (…) Em poucos minutos estavam todos manifestantes, cerca de um milhão, a fugir em debandada.

De repente, quando que os cães estavam próximos dos quatro homens, a Santa falou assim: VINDE EM PAZ! Que ela falou altissonante! Eh! Eh! Eh! Todo mundo ouviu a Santa falar aquelas santas palavras! Que aconteceu depois foi o extraordinário. Cães começaram estavam se transformar em homens, bons-cristãos; corpos jazidos no asfalto estavam se movimentar sozinhos; aleijados reaprendiam novos passos; feridos se restabeleciam; grávidas parindo gargalhavam alegrias renovadas. Eh! Eh! Eh! (…) E toda gente a regressar massiva, se recompondo do susto.” (360 a 363)

Que a agitação começou estava tomar vários pontos do Largo e gritos a ecoarem nítidos, é o Juca!, está aqui o meu Nelito! é o Titico!, olha o Tó e a Bé!, meu noivo!, oh, Santo Deus!, será possível, tu aqui?!, Nossa Senhora  de Fátima ouviu as nossas preces!, os jovens do Bairro reapareceram!, os nossos filhos estão aqui!, obrigado Virgem Maria! Jovens do Bairro do Balão tinham efectivamente misteriosamente reaparecido naquela manifestação, se misturando na multidão. Eh! Eh! Eh! Tinham visivelmente envelhecido, uns com rugas na cara, outros, os fios de cabelos brancos a lhes marcarem o tempo passado naquelas longínquas terras, mas todos aparentemente bem de saúde.  (364, 365)

“Naquele grande mar de gente, Hermínio naufragava. Tinha mergulhado fundo, confrontado todas semelhanças parecidas, observado minucioso todo plâncton, os perfis enganadores, mas não encontrara nada que lhe pudesse identificar com o pai, a irmã, ou com o bom servil Samuel Lusala. Nada. Desesperado, perguntou se lhes tinham visto ali no Largo. Vagas respostas todas, apesar disso, alguém que lhe esclareceu um pouco: que ele tinha de sair dali rápido, tinha de correr em direcção ao Bairro ou ao Hospital do Prenda, João Segunda estava navegando nas derradeiras águas. E Hermínio saiu então nas últimas-velozes-corridas. Tarde demais. As águas-vascas já transbordavam do leito.” (367)

Cá está o fim do fio da meada deste novelo kafkiano de volta ao seu lugar inicial. As vozes dos jovens desaparecidos na igreja.

Esta é a acção principal. Acções colaterais, com os respectivos temas são: a violência doméstica contra a mulher (do Comandante contra Hortênsia); o novo-riquismo dos antigos combatentes da luta de libertação; a gula do poder e o açambarcamento dos cargos por uma só pessoa; e, por último, todo o colorido etno-linguístico que a tradição e a cultura emprestam ao curso do novelo narrativo.

REFLEXÃO CONCLUDENTE SOBRE A MEMÓRIA DA CRUELDADE INSTITUCIONALIZADA

Qual foi o propósito de o escritor Boaventura Cardoso escrever esta obra? 

O desaparecimento dos jovens do Bairro do Balão foi compensado com o milagre fatimítico do seu regresso. Fora da mitologia, fora daquilo que é o fundamento da literatura, da efabulação, qualquer leitor de Maio, Mês de Maria vê que este romance é uma partícula reveladora do assombro histórico da impotência do ser humano pós-colonizado, sendo este o herói, o homem anónimo, e o monstro o próprio Estado predador. Na memória construída da nossa história de país independente, perdura até hoje o espectro obsidiante da crueldade institucionalizada, com foros de coisa normal, admissível, fora de qualquer discussão ao mais alto nível.

Nesta conformidade, a pergunta que se impõe, não só para Angola, mas para toda a África, é esta: será que os povos da África que, no período colonial selaram no corpo e na alma as mais terríveis humilhações e torturas físicas, ao ponto de terem sido marcados com o ferrete da escravatura nas omoplatas, será que estes povos apenas podem continuar a ser governados, nesta era da independência, sob o jugo da crueldade institucional?

De acordo com o Estatuto de Roma, de 1998, entre os crimes contra a humanidade estão homicídio; tortura; extermínio; escravidão; encarceramento ou outra privação grave da liberdade física, em violação às normas fundamentais do direito internacional; perseguição de um grupo ou colectividade com identidade própria, fundada em motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos, de género ou outros motivos universalmente reconhecidos como inaceitáveis conforme o direito internacional; desaparecimento forçado de pessoas; outros actos desumanos de carácter similar que causem intencionalmente grande sofrimento ou atentem gravemente contra a integridade física ou a saúde mental ou física.

Qualquer um dos crimes acima elencados, cometido por agentes do Estado ou por indivíduos agindo de maneira independente, configura crime contra a humanidade. 

O economista angolano Jonuel Gonçalves, em entrevista publicada no semanário Expansão, edição de 06.01.2023, defendeu que “a maioria das camadas dirigentes até aqui tentam impor a noção de que os africanos são tão diferentes que não têm os mesmos direitos do conjunto da humanidade e que as normas de desenvolvimento têm de ser diferentes.”

Ora, é precisamente esta desconsideração do homem africano num espaço e num tempo designados de pós-coloniais, que pede com urgência um debate nacional, por parte de todas as forças vivas do nosso país e até mesmo ao nível da União Africana.Sem este debate sobre a crueldade do Estado pós-colonial, é de todo impossível honrarmos o passado e a nossa história, como destaca o Hino da República de Angola. É urgente e necessário abordarmos esta questão, que reputamos fundamental, se quisermos honrar a luta de libertação e a própria História de África. 

[1] Les civilisations noires, 1966, Jacques Maquet (in Tata Kavinajé, texto online).

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