Top dos Mais Queridos ou descoberta de novos valores?!

A respeito do formato nacional adoptado pela RNA para o seu concurso anual de escolha das melhores músicas pelos seus ouvintes. Em tese, estamos (RNA), de um lado, a ignorar o que de melhor se produz, ano após ano, na música nacional…

POR FREDERICO BATALHA

É certo que, em diversos momentos, faz bem aos estados de alma e aos feitos/realizações dos homens, o recurso ao revivalismo, por permitir uma melhor valorização do que é actual, tendo no retrospecto o que ocorreu no passado.  Porquanto, o revivalismo (recorrendo a um dicionário, glossário ou afim) se constata que mais não é do que o movimento ou fenómeno sociocultural que ocorreu/ocorre muitas vezes ao longo da história universal e que procura resgatar princípios e tradições de tempos passados, seja para enfrentar desafios aparentemente insolúveis de sua própria época, seja quando uma corrente vital se esvai e nada parece surgir para preencher o vazio. Se quisermos, numa definição menos ampla, é a tendência para recordar, com admiração, certas coisas do passado e querer realizá-las de novo no presente.

Terá sido, seguramente, por inspiração ou por um surto revivalista que a Rádio Nacional de Angola (RNA) se abalançou para a adopção do formato nacional, em 2021, e com vigência daí para o futuro, ao seu concurso musical, o Top dos Mais Queridos, que, dada a sua história, a dimensão nacional da rádio e o amplo envolvimento social que suscita, pode mesmo ser considerado o maior concurso da música angolana. 

O que tem, afinal, de revivalista no actual formato do Top? É que, sendo um formato de indicação/eleição por cada província do país do seu concorrente, leva a que a escolha do público, em geral, e dos ouvintes da estação, em particular, seja circunscrita às músicas, as mais delas gravadas de propósito, postas em concurso, por via de uma extensa e intensa campanha de promoção das mesmas nas emissões dos distintos canais da marca RNA, fazendo-nos remontar aos tempos do Top dos Mais Queridos dos anos 1980 até ao evento realizado em 2001.

Fazendo um pouco de história, temos como elemento de referência o ano de 1982, quando os integrantes do programa «Para Jovens» do canal principal da RNA, os radialistas João Miguel Lemos das Chagas, Paulo Araújo e Sérgio Carvalho (mentores da ideia) e Gilberto Júnior (realizador das cinco edições subsequentes) tomam a iniciativa de promover um concurso para aferir quem eram os mais queridos artistas e agrupamentos musicais no panorama artístico angolano. Recordar que nas primeiras quatro (4) edições, se premiava, simultaneamente, o melhor artista individual e o melhor agrupamento musical. Estando, na altura, o país mergulhado na guerra fratricida que dilacerava o país, em todos os sentidos, até à desestruturação nacional do tecido económico e social, aquele grupo de jovens estava ávido por contribuir de forma activa para a valorização, promoção e divulgação da música popular angolana, porquanto o que havia de essencial de música nacional nas emissões radiofónicas se reportava às produções herdadas do período colonial. Logo, eles viram no projecto Top dos Mais Queridos o espaço e o momento apropriados para a devida exaltação do que de melhor fazia na nossa música. E após a edição de lançamento, em 1982, no ano seguinte o concurso assumiu o formato nacional, em que havia, inicialmente, uma fase provincial para as escolhas locais, através das Emissoras Provinciais da RNA, seguidamente, os respectivos vencedores (18) eram arrolados num boletim de voto para que, a nível do país, os ouvintes e o público fizessem a eleição do Mais Querido.

O que tem, então, de errado no exercício de transportar para os tempos actuais aquele formato com que nasceu o concurso? Em nossa visão, o erro nefasto de perspectiva assenta no facto de pretendermos fazer o transplante de uma realidade/situação anterior, sem se atender aos seus contextos históricos de enquadramento. Explicitando: havendo uma escassa produção musical nacional, capaz de animar as emissões de rádio e os diversos locais de convívio, pois o que existia eram músicas estrangeiras e produções angolanas anteriores à independência, e tendo os estúdios de gravação, existentes à época, sido desmantelados, foram aproveitados os meios técnicos instalados na CT1 (Cabine Técnica n.º 1) dos estúdios centrais da RNA e as condições técnicas mínimas das Emissoras Provinciais, para a gravação ou regravação de músicas com que os concorrentes se apresentavam ao Top. Com isso, foi possível redinamizar o bom da nossa música, devolvendo artistas à ribalta e trazendo novas vozes à fina flor da música angolana. Basta olharmos para a galeria de vencedores, onde constam artistas do calibre de Pedrito (vencedor em 1982, 1984 e 1986), Proletário «Man Prole» (1983), e os agrupamentos musicais Jovens do Prenda (1982 e 1983) e os Kiezos (1984 e 1985). Constam também artistas que se consagraram por via do Top, nomeadamente, José Kafala (vencedor de 1985), José Machado «Mamborró» (1987), Jacinto Tchipa (1988 e 1989), Os Pacíficos da Huíla (1990) e Moniz de Almeida (1991). Note-se que o concurso sofreu um interregno significativo, na sequência das escaramuças verificadas no país, pós-eleições de 1992, vindo a retomar em 2001, tendo nesse ano se sagrado vencedor, ainda no formato de «1 candidato por província», o representante do Bengo, João Cacete Leão «Jovem Leão». 

De 2002 a 2021, numa assinalável guinada histórica, foi adoptado como formato do concurso, mais consentâneo com a realidade vigente, o de escolha do Top, a partir de 10 melhores músicas de artistas que, em cada ano, deleitavam os ouvintes dos canais da Nacional, tendo como fonte as produções em estúdios de dentro e de fora do país, que, de modo crescente, passaram a existir, o que significa que já tinha ficado para história as corridas que se verificavam na portaria da RNA para uma oportunidade de gravação na CT1. A realidade tinha mudado e a RNA sabiamente se ajustou perfeitamente a essa mudança, a tal ponto que os indicados para os 10+ e o vencedor final, acabavam, na generalidade, por corresponder às expectativas do grande público. Conforme se pode ver na presente sequência, retirada da galeria de vencedores do Top: Euclides Dalomba (2002), Patrícia Faria (2003), Sabino Henda (2004), Bangão (2005), Mig (2006), Matias Damásio (2007), Maya Cool (2008), Yuri da Cunha (2009), Yola Semedo (2010), Paulo Flores (2011), Matias Damásio (2013), Ary (2014), Yuri da Cunha (2015), Ary (2016), Kiaku Kiadaff (2018) e Yannick Afroman (2019). Ou seja, nas edições ora indicadas, os candidatos ao trofeu de Mais Querido emanaram da escolha/votação popular, conduzida por profissionais da estação, com domínio na matéria, como resultado do trabalho dos artistas ao longo de um ano de produção discográfica ou de músicas isoladas, que tenham conquistado o gosto e a preferência dos ouvintes.

Por conseguinte, o retorno ao modelo em que os músicos, concorrentes ao Top, gravam músicas para o efeito ou tenham músicas ouvidas por um público localmente delimitado, que, posteriormente, integram uma lista de 18 representantes provinciais, desvirtua a real natureza do que é ser Top. Pois, o que acontece é que cada concorrente procura capitalizar os votos da sua zona de origem e, por outro lado, cada província procura, independente da qualidade das músicas, elevar o mais possível o seu representante, remetendo-nos para um cenário de regionalização do voto. O que é de todo indigesto! Definitivamente, o resultado disso não pode ser Top de nada, mas, sim, o resultado da votação maciça étnico-regionalmente motivada. Desse modo, estaremos a melindrar o gesto engendrado pelos jovens entusiastas da música angolana do programa Para Jovens, que foram contagiados pelos exercícios de escolhas, no sector cultural, consolidados no mundo, como os prémios Óscar (para os melhores das produções cinematográficas) e Grammy (para as melhores produções musicais). Pelo que, nesses dois eventos mundiais nunca vemos a escolha a recair sobre filmes/produções em vídeo não vistos anteriormente ou músicas não conhecidas por ninguém! 

Em tese, a insistirmos nesse formato de escolha de concorrentes ao Top dos Mais Queridos representando as 18 províncias, estamos (RNA), de um lado, a ignorar o que de melhor se produz, ano após ano, na música nacional e que vai animando as emissões radiofónicas dos canais da estação e, doutro, a fazer do Top Rádio Luanda o verdadeiro Top dos Mais Queridos, já que para o trofeu da Kianda, regressado neste ano de 2023, competem as melhores músicas do momento. Entretanto, sendo positiva a ideia de se movimentar musicalmente todo o país, o que favorece grandemente a cultura nacional, por quê não se levar esse formato, próprio para a descoberta de novos valores musicais, para um tipo diferente de concurso musical, angariando-se previamente os patrocinadores e definindo-se um período distinto ao da realização do Top, do tipo Pé no Palco, Trovante, Prémio Welwitchia ou outros eventos do género, que foram lançados pela própria RNA, em tempos idos?! Porquanto, o que tivemos como vencedor em 2021 (nada contra os Picantes do Huambo) e teremos, agora, em 2023, perdoem-nos a franqueza, possuem tudo, mas de Top representarão pouco ou quase nada. Lembrar que, em 2021, cabia no conceito de Top a música Njila Ya Dikanga de Yuri da Cunha e Paulo Flores, e não venceu, em 2023, cabe no conceito de Top a música Magui de Matias Damásio. No entanto, quer a música do Matias arrebate ou não o prémio, reforçamos: ainda vamos a tempo de devolver ao Top dos Mais Queridos o que é de Top dos Mais Queridos e ao Descoberta de Novos Valores o que é de Descoberta de Novos Valores. 

Temos dito!

04.10.2023

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PROCURAR