Futebol. Uma vergonha chamada CAN 2021

Opinião do antigo árbitro internacional Duarte Gomes

O Campeonato Africano das Nações (também conhecido por CAN ou Taça das Nações Africanas) é a maior competição de selecções no continente. Está equiparada ao nosso Europeu e há muito que é o ponto de partida e chegada de muitos dos maiores futebolistas da actualidade.

A competição foi organizada pela primeira vez em 1957, sendo então vencida pelo Egipto, ainda hoje o mais titulado dos países africanos. 

Depois do adiamento de um ano provocado pela pandemia, a CAN 2021 decorre agora em seis estádios de cinco cidades dos Camarões. 

O jogo decisivo está previsto para o próximo dia 6 de Fevereiro, em Yaoundé (Estádio Olembe), mas até lá tudo pode acontecer.  

É que a prova deste ano está marcada por uma tragédia de contornos dramáticos, além de muitos outros incidentes capazes de fazer corar de vergonha qualquer organizador que se preze. 

Ao erro monumental de Janny Sikazwe, árbitro internacional zambiano, que terminou o “Tunísia/Mali” antes da hora (e por duas vezes) – veio a saber-se que sofreu uma insolação grave durante o jogo, o que terá justificado o desnorte -, sucederam-se outros episódios inaceitáveis a este nível.

No jogo seguinte, o hino da Mauritânia foi passado três vezes… erradamente. A versão antiga apareceu, mas a actual não. À quarta e com receio de novo embaraço, o speaker acabou por pedir aos atletas mauritanos que cantassem o seu hino a capella. Eles acederam.

Entretanto e porque um mal nunca vem só, alguns selecionadores queixaram-se publicamente das condições miseráveis em que estão hospedados: Tom Saintfiet, da Gâmbia, referiu que tem seis jogadores a dormirem em cada quarto, com uma casa de banho para todos. Alguns dormem até na mesma cama. Só três elementos de todo o staff tiveram direito a quarto individual.  

Situação parecida foi reportada por Mário Marinica, selecionador nacional do Malaui, que garantiu que os seus jogadores têm de lavar, à mão, toda a sua roupa íntima e equipamentos, uma vez que o hotel onde estão hospedados não têm esse serviço (nem uma única máquina de lavar). O treinador romeno acrescentou que estas situações ocorrem com muita frequência, mas apenas às selecções ditas “mais pequenas”. 

No passado domingo, a delegação cabo-verdiana anunciou que teve um surto de gastroenterite por intoxicação alimentar, que afectou 18 elementos da comitiva, entre os quais 14 jogadores.  A Gâmbia, a estagiar no mesmo hotel, teve problema semelhante.  

Na segunda-feira, o guarda-redes do Comores, Ali Ahamada, soube a poucas horas do início do jogo com os Camarões que estava impedido de actuar por questões sanitárias, apesar de entretanto ter testado negativo à Covid-19.  

A equipa, deficitária na posição, apresentou-se a jogo com um guarda-redes improvisado: o defesa lateral foi chamado à função, tendo que usar – na falta de alternativa – uma camisola… remendada. 

Pior e mais lamentável foi o que aconteceu antes do início do encontro: pelo menos oito pessoas terão perdido a vida (e quarenta ficaram feridas, algumas com gravidade), à entrada para o estádio.

O mais inacreditável, a roçar o surreal, foi o facto da organização não ter cancelado/adiado o jogo e só hoje (terça-feira), passadas 24 horas, ter decidido abrir um “inquérito urgente” ao sucedido.  

É mesmo de terceiro mundo e não há outra qualificação possível. O nível de amadorismo só não é perverso se não tiver consequências desta natureza.

A CAN 2021 – que até golos e momentos insólitos tem oferecido dentro de campo – está manchada de sangue. Sangue patrocinado por uma organização patética e irresponsável.

Pena que isso tenha ofuscado o talento imensurável que desfila em campo.  

Jogadores, treinadores e adeptos mereciam mais, muito mais.

In SIC-Notícias

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