FLAGRANTES DO QUOTIDIANO (4)

Está na altura de potenciar a ideia da criação de uma estrutura, qualquer que seja mas que venha da sociedade civil, que poderá simultaneamente proporcionar aos nossos governantes uma experiência interessante, capaz de possibilitar a criação de pequenos projectos destinados a melhorar a área da Protecção Civil.

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Chove chuva,
chove sem parar…
por favor chuva ruim,
não molhe mais o meu amor assim

(Canção de Jorge Ben)

Não era suposto que a semana iniciada com a celebração do dia dos Direitos Humanos e do aniversário do MPLA, a 15 dias da Festa da Família Angolana, fosse marcada, como foi, pela agressividade do tempo. Oportunidade para nos mostrar como ele é por vezes impiedoso e como, volta e meia, nos alerta para as ameaças da Natureza, tantas vezes ignoradas na sua retórica cautelosa. O sol da manhã de domingo, forte e brilhante, não fazia prever, longe disso, a anormalidade que se veio a registar na atmosfera. Nada a ver com a fúria dos deuses contra os homens desenhada nas nuvens escuras, como já ouvi dizer por aí, muito menos com o alinhar na tese de yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay, o velho dito castelhano cuja origem medrosa se perde nos séculos.

O imprevisto acontecimento não deixou de me perturbar, e explico. Estava a passar um resto de fim-de-semana tranquilo, magnífico, posso mesmo dizer. No torpor de merecido relaxe, a usufruir as incidências de um magnífico jogo de futebol proporcionado pelo derby catalão, Barcelona- Girona, assustei-me quando a maka teve lugar. Coisa chata, essa de nos vermos de repente, privados do melhor da nossa tranquilidade e ficarmos sem luz, sem televisão e internet. Pensa-se em tudo e mais alguma coisa e eu não fui excepção. Pensei de imediato no velho ditado que alerta para o seguinte: Cuidados e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém!

Analisei a situação e fui pensando, imaginando coisas. Devíamos estar mais atentos e preparados, pois devíamos, mas para estas situações ninguém está preparado e, por outro lado, não se devem apontar, pelo menos agora, culpas a ninguém. Nem sequer à mãe Natureza, afinal de

contas, a menos culpada deste estado de coisas que aconteceram. Os alertas para estes fenómenos vêm de há muito, persistentes desde os tempos em que me habituei a ouvir falar do “El niño”, sem que tivesse ainda noção da sua força nem sequer de que fenómeno se tratava. As surpreendentes variações climáticas deste ano, presentes como nunca estiveram nos nossos ares, têm mexido connosco, e de que maneira! Com foros de ineditismo em todo o país, as populações foram nos dias reportados seriamente ameaçadas e molestadas e os governantes, a vários níveis, obrigados a tomar medidas “deveras”, daquelas que não estavam certamente nos seus planos de acção mais imediatos. Uma situação que nos remete necessariamente a ponderação séria acerca do que nos está a acontecer e de tudo o que nos pode ainda acontecer. Não me lembro de ver na Nova Angola e em contextos da nossa vida em sociedade, situações semelhantes às que vivemos agora. Porque há muito tempo que não se registavam estes episódios de chuva constante. A chuva deixou neste domingo parte da cidade do Sumbe submersa, Caxito, idem aspas. Pormenorizando, a enxurrada atingiu com violência inusitada e numa constância teimosa, Luanda, Bengo, Moxico, Kwanza Norte, Kwanza Sul, Benguela, Huíla e Huambo, pelo menos estas províncias de onde chegaram notícias credíveis, nalgumas delas a ser exigida, passe o eventual exagero, a proclamação do estado de calamidade pública. Na chamada Via Expressa, no Bairro da Sapu 2, em Viana, o panorama é desolador. Há casos de falta de controlo, dizem os populares insatisfeitos, mas a chuva, esta chuva assim, é difícil de ser controlada. E se não bastassem os prejuízos materiais, há o registo de mortos, feridos e desalojados, habitações partidas, desconjuntadas, prejuízos enormes, um assunto muito sério. Mostram-se ravinas e buracos que colocam em causa a segurança de edifícios em distintos locais, na cidade capital as imagens são assustadoras. Fazem-se comentários às obras mal executadas, à falta de fiscalização. É o momento ideal para se bater no ceguinho. Para se pedirem inquéritos, se for caso disso e se houver alguma noção das responsabilidades. Não tendo recomendações de polidez e boas maneiras a fazer, limito-me a uma apreciação estética da situação, e mesmo contra a minha opinião mais crítica, acho que não podem ser desvalorizados os comportamentos inadequados, que sempre existem nestas situações. Mas isso poderá acontecer lá mais para a frente, depois de sanada este período da tormenta. Para agora, a sensatez recomenda uma posição firme e adequada perante a tragédia.

É oportuno lembrar que na primeira metade dos anos sessenta do século passado, também foi de certo modo assim. A chuva causadora de estragos representava então a dor, as lágrimas vertidas pelas vítimas de 1961, lamentava o povo. Presenciamos as enxurradas na baixa de Luanda, e eu assisti ao vivo, no Dondo, às maiores cheias que o Rio Kwanza registou no século passado, alagando completamente a histórica vila. Estes episódios trazem à mente ideias que sustentei durante anos, quando estava envolvido nas lides associativas. Ainda fiz contactos com alguns conhecedores da matéria, convencido que estava e como, aliás, continuo a estar, que é da desgraça que resultam as melhores soluções. Está na altura de potenciar a ideia da criação de uma estrutura, qualquer que seja mas que venha da sociedade civil, que poderá simultaneamente proporcionar aos nossos governantes uma experiência interessante, capaz de possibilitar a criação de pequenos projectos destinados a melhorar a área da Protecção Civil.

Não me incomodo do que venham a pensar da minha ideia. Estapafúrdia? Sem sentido? Não importa! E é não pensando negativamente que sugiro a criação de núcleos dirigidos para o associativismo organizado, capazes de mobilizar pessoas que sejam sensíveis ao socorrismo e à solidariedade, uma área onde se pudessem enquadrar pequenos corpos de bombeiros voluntários, a exemplo do que se faz em todo o mundo. A Protecção Civil em Angola está necessitada de muitos apoios e esse não deixaria de ser um bom apoio. Há muita associação formada, com muita gente enquadrada mas sem trabalhar efectivamente. Esse enquadramento, poderia ser uma saída para empregar muitos jovens e satisfazer áreas necessitadas desses serviços. Será necessário dinheiro, claro que será. Mas ao ver-se por aí tanto dinheiro mal gasto sem serventia nenhuma, não valerá a pena arriscar? É, pois, com o pensamento voltado para a satisfação dos muitos anseios da população, nomeadamente para a apresentação a breve prazo de outro tipo de administração pública, um pouco mais atraente, mais eficaz na gestão dos recursos a favor das comunidades, que me atrevo a fazer esta sugestão.

Despeço-me de todos amigos e leitores, com a promessa de estarmos juntos daqui a dois dias, quando vos chegar às mãos a minha habitual crónica de domingo.

Luanda, 15 de Dezembro de 2023

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