FLAGRANTES DO QUOTIDIANO (3)

Nem todos os dias são bons, mas há algo bom em cada dia

(Autor desconhecido)

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

1-Aos 100 anos de idade, morreu na passada quarta-feira, 29 de Novembro, Henry Kissinger, o americano nascido na Alemanha que, em tirada célebre, considerou o exercício do poder como “o maior afrodisíaco”. A notícia do seu falecimento repercutiu-se pelo Universo e correu célere nas redes sociais, retirando visibilidade a importantes actos do dia registados em todo o mundo. De criminoso de guerra a mago da “realpolitik”, de monstro a “estadista mundial” e uma das pessoas mais importantes do século XX, o controverso político coleccionou extensa lista de epítetos na sua longa carreira diplomática, feita anos a fio no mais elevado dos níveis. Prémio Nobel da Paz em 1973, negociador do processo de paz do Vietname e do amenizar do conflito israelo-árabe da época, foi e é várias vezes citado nos bastidores da política internacional, principalmente em momentos semelhantes aos vividos agora. Recorda-se o homem, via de regra, pelos piores motivos! Nessa triste perspectiva e na expectativa de vida para além da morte admitida nos círculos católicos, há que se esperar o impensável da figura mística de Kissinger. Dele sempre se esperou tudo. Por isso, não me surpreenderia se tivéssemos o velho Kissinger ou a sua alma, a passar por fase de aperfeiçoamento de uma nova existência!

Entretanto, nós cá em baixo, nem sempre com os pés bem firmes sobre a terra, vamos fazendo juízos de valor e julgamentos de acordo com os nossos intocáveis interesses. Com os nossos medos e receios, vamos apelando a que surja (m) a qualquer momento na cena política dominante, figura (s) mediática (s) que, com a habilidade de Kissinger, possa (m) mexer positivamente com a sociedade e quiçá com o mundo.

2-Identificados os políticos africanos dos tempos modernos e não obstante as suas intervenções no panorama internacional, é de se concluir que apesar da importância de alguns desses actores, nenhum deles foi fustigado pelos analistas e profissionais da comunicação do mundo inteiro como o foi Kissinger. Corruptos, incapazes, incompetentes, ladrões, gestores dos piores indicadores socioeconómicos, são alguns dos títulos que, sendo recorrentemente utilizados e dos mais contundentes insultos políticos dirigidos aos africanos, não têm, todavia, o alcance, o peso e o impacto daqueles com que mimosearam Kissinger. Contraditório, controverso, incompreensível, pense-se o que se quiser da comparação. Só sei dizer que o facto apenas força o reconhecimento de que os africanos teriam de comer muito pão ou partir muita pedra para alcançarem grau idêntico na arte da astúcia e da intriga política, no peso e na dimensão internacional da maldade protagonizados pelo diplomata americano.

O medíocre jornalismo trabalhado no continente (com a excepção devida aos bons jornalistas), mormente o patrocinado pelos vários Estados, é também um dos principais responsáveis por essa postura redutora da classe política africana. Angola está bem representada nesse fórum, com estatuto vanguardista na difusão de mentiras, raramente saindo do vulgar lugar- comum da defesa da voz do dono. Entre nós quase nunca se lê ou ouve uma opinião política e consequente de políticos, qualquer artigo de interesse para o país, que valha a pena ao cidadão eleitor ler ou ouvir. Em África, não existem exemplos de políticos desaparecidos na condição de centenários. Se os houvesse duvidaria da capacidade, força mental e arcaboiço de aguentarem os desvairados afrontamentos que se produzem actualmente. Veio-me à mente, por puro acaso, Watergate. Se em África estoirasse um caso desses, como seria gerido? Desde logo, penso eu, não haveria sequer caso. Porque apesar dos escândalos que emergem frequentemente, entre nós seria apenas mais um caso para abafar, seria atendido como sempre são, evidentemente.

Nestas circunstâncias, honra seja feita aos bravos políticos da praça africana que, na defesa dos seus objectivos, se mantêm impávidos e serenos nos seus postos, e se mostram incólumes às vergastadas de críticas das redes sociais, agora mais activas e incómodas do que nunca. Perante tal firmeza de atitude, é melhor mesmo que se fique assim tal como estamos, ou seja, verticais na aceitação do baixar de ordens superiores sobre o que deve ou não ser noticiado, o que deve ou não constituir manchete. Agindo deste modo subserviente, chega-se aos 100 anos sem muitas dificuldades. Com os jornalistas tranquilos e serenos, apesar das enxurradas, dos relâmpagos e tempestades que nestes dias ventosos e molhados, estragam e magoam a terra um pouco por todo o lado, por tudo quanto é canto.

Com os meus respeitosos cumprimentos aos meus amigos e leitores, despeço-me com aquele habitual abraço de esperança. Até domingo à hora do matabicho.

Luanda, 10 de Dezembro de 2023

(Dia do MPLA)

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