Contramão

De erro em erro, vai-se descobrindo toda a verdade

Sigmund Freud

A epígrafe deste texto não pretende parafrasear a cançonetista portuguesa Sara Afonso nem a letra de “Contramão”, música considerada, por quem aprecia o género, de relativo sucesso. Cuidadosamente, falo do desconforto da teoria da relatividade que, no final da semana finda, entrou na discussão dos assuntos sérios que se produzem em Angola, como é o caso da fome que atormenta milhões de compatriotas. Contudo, baseando-me nesse conceito, sempre direi que, no que a mim toca a letra da canção interpretada por Sara, sei bem por onde andei, sei também que já me perdi, porém ainda não me encontrei, como sempre foi minha ambição. Levo sim, tal como ela canta, o acaso às costas e quando muito e por vontade alheia, vou perdendo a minha razão. 

A partir das suposições descobertas na letra da canção, presumi sim, “estamos seguindo numa via em contramão perigosa”. Disse-o em sã consciência, obrigando-me a ter presente a responsabilidade dos meus actos e palavras e, com autoridade igual, o meu direito de expressão e de indignação.

Manter a lucidez na minha idade, é sinónimo de preservar a memória e não deixar-me incomodar por narrativas esquizofrénicas mascaradas de política, soltas em panfletos reincarnados por estúpidos conceitos. Não me perco em grandes exercícios mentais nem a pensar sobre a verdade ou a mentira dos outros. Nem sequer acerca de ideias que sejam capazes de conduzir-me à mutilação da integridade que defendo. Não quero nem me deixarei influenciar por motivações estranhas, e jamais deixarei de admitir a possibilidade do descuido que me aproxime circunstancialmente, por exemplo, da adulteração do sétimo mandamento do Animalismo. O que será isso? perguntarão alguns. É um princípio filosófico magistralmente utilizado pelo escritor britânico George Orwell no romance satírico “O Triunfo dos Porcos”, publicado em 1945. 

Sendo a filosofia a mãe de todas as ciências, e vivendo amarrados a mil e uma teorias; vivendo como vivemos uma época em que, sendo discutível o que afirmamos e a despeito do esforço feito para pormos o combóio da vida angolana direitinho nos seus carris, do meu ponto de vista, andamos com ele em permanente contramão; sendo verdadeiro que esta terrível época, apesar dos sucessos que passaram desse estado a estrondosos desaires, está repleta de incorrecções, de constatada desumanidade e excesso de oportunismo; sendo ainda um tempo em que se torna cada vez mais difícil a incerteza do futuro na frente dos olhos, por estarmos demasiado cansados. Sendo a fadiga adquirida por vontade própria ou imposta pela lei do mais forte, por convicção e por imperativo de consciência patriótica, afirmo em voz alta, sim, encontramo-nos mesmo na contramão dos valores essenciais. Este momento é o que o homem animalista, com facilidade incrível, pode ser violento com outro ser humano. 

Recordo assim George Orwell e a sua obra citada acima, fazendo a seguir breves considerações comparativas sobre as pessoas e os animais. Num tempo fictício imaginado pelo talento do escritor e a realidade do nosso tempo. Assim, enquanto humano e na defesa do tema convocado, concluo repetindo. Este tempo que vivemos conduz-nos a uma velocidade louca e, logicamente, em contramão perigosa. Foi, nos limites que me são permitidos, que consegui rever animais reunidos numa quinta que era propriedade de um certo senhor Jones e, depois, a revolta que os bichos fizeram, resultante das más condições de vida que suportavam. Foi a partir de um sonho do Velho Major, um porco respeitado que estava à beira da morte e, na circunstância, compreendia naquele instante o valor que a vida tinha. Decidiu reunir os animais da quinta a quem contou o seu sonho. E explicou as razões da vida miserável vivida, devida exclusivamente à tirania dos homens preguiçosos e incompetentes, de quem eram vítimas de uma exploração prepotente. Incitou o grupo à revolta e a entoar cânticos que os conduziram à luta que culminou com a tomada da quinta pelos maltratados animais. Decidiram então criar um paraíso de progresso, justiça e igualdade.

Foi deste modo que Orwell, uma figura controversa, criticada na época pelas suas posições políticas, montou o cenário de uma das fábulas mais conhecidas dos nossos tempos, adaptada para o cinema e considerada como um conto de fadas para adultos, sempre vista como uma forte e corajosa mensagem aos tiranos de todo o mundo. 

Entre os vários personagens do romance estava um porco honesto, minimamente íntegro que tinha a seu desfavor, o facto de ter um assistente chamado Napoleão. Um porco que foi justo e competente naqueles primeiros meses em que passou a gerenciar a quinta, o palco dos acontecimentos da porcaria. Mas o senhor Jones conseguiu aliciá-lo para o esquecimento do que era essencial para o todo da população, ou seja, para a vida e os habitantes da pocilga. Passou a não cumprir com o programa e a linha do combinado, desrespeitando os Sete Mandamentos que firmavam as ideias animalistas que se comprometeram a defender. A partir daí, o assistente Napoleão passou a ser um vadio, pândego, porco vaidoso e autoritário. Começou a beber e a andar sob duas patas, imitando os homens, desvirtuando completamente o que tinham combinado no início da revolução. Foi graças a ajuda de Garganta, porco de boa oratória e fiel amigo de Napoleão, considerado um bom animal e mais inteligente que os demais. Fez entender os restantes que o que Napoleão fazia não era por mal, era sim fruto de alguma ignorância, porém trabalhava para o bem de todos. E os porcos menos esclarecidos acreditaram.

Claro que não vou contar aqui, com a minúcia precisa, a história de “O Triunfo dos Porcos”, até porque me falham pormenores e personagens da trama que o livro contempla. Limito-me a recomendá-lo a quem ainda não o tenha lido. Adquira-o, comprado ou emprestado, e delicie-se com a sua leitura. Valerá a pena. Por um lado, para fugir ao mau hábito de não ler, e por outro, estar por dentro de um documento importante que ultrapassou a barreira dos tempos. De forma genial, o autor revelou-nos um mundo situado entre a verdade e a ficção. Para tal, naquele tempo muito distante do nosso, montou um cenário que explica o funcionamento da sociedade. Retratou habilmente a ambição do ser humano e o seu sonho de poder, que foram sabiamente desmascarados. Sonho e ambição que levavam os poderosos de ontem como levam os de hoje a aventurarem-se a fazer percursos difíceis, sem estarem habilitados para certas façanhas, obrigando-os, por isso, a uma condução perigosa, guiada teimosamente em contramão. 

Coincidentemente, um permanente empurrar para a frente de projectos audaciosos mas sem consistência, pelo menos a desejada, caracteriza o nosso presente. Vazios da objectividade necessária que valorize as necessidades imediatas da população, gente que já não vive o tempo da fábula, em que os bichos falavam com as pessoas. Nunca, em nenhuma circunstância, o poder político venceu quando olvidou a necessidade popular, a sua desgraça, as suas carências. Mais cedo ou mais tarde claudica. Infelizmente, não será a simples apreciação da obra do escritor inglês que fará, seguramente, os condutores da nossa máquina mudar de rota. Já há muito nos afastamos do mundo fabuloso criado por Orwell. Temos de admitir os precários hábitos de leitura dos nossos dirigentes, comprovadamente distantes da literatura que tem como protagonistas o povo e as suas necessidades essenciais, por darem atenção mais cuidada a outras escritas; mesmo que as buzinadelas do povo sofredor se tornem mais estridentes, pelo modo como correm as coisas, serão insuficientes para fazer reflectir e aconselhar quem de direito a uma condução mais atenta, dentro das leis do trânsito da boa governação adoptadas em países semelhantes ao nosso. 

Sei eu que é de cinzas destas que incandescem a terra, que por vezes se renasce com outras oportunidades e mudanças de paradigma. Sem fazer juízos precipitados, espero serenamente os resultados da drástica mudança verificada na estratégia do partido maioritário e na acção dos presumíveis deputados e responsáveis que sairão da eleição em 2022. E enquanto fico na expectativa do que farão ou não os partidários da oposição, faço sinceros votos para que os jovens que decidiram enfrentar o futuro, contrariem os mais velhos que desconseguiram mudanças em tempo tão longo. Espero que leiam muito, que saibam comunicar com e para a população, frente-a-frente, em entrevistas e artigos nos jornais escritos por si próprios, para que, sem demagogia e falsas promessas, saibamos todos avaliar a qualidade dos representantes do povo em quem iremos votar. Terão, para além de tudo de dar provas substantivas de que defendem de facto, a inclusão e a democracia que tanto apregoam. Acho que não será pedir nada de transcendente.

Sem mais, e com os meus habituais e respeitosos cumprimentos aos leitores desta coluna, despeço-me de todos. Então, até domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2021

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