Companhia de Dança Contemporânea de Angola: 30 anos de resistência

Foi no dia 27 de Dezembro de 1991 que a CDC Angola fez o seu primeiro espectáculo com a apresentação da peça “A propósito de Lweji” com sala cheia!!! Foi há 30 anos, quando ainda existia o maravilhoso Teatro Avenida, entretanto impiedosamente demolido. Mas a CDC Angola resiste, apesar das dificuldades que se acumulam com o passar do tempo. Há algo muito forte que impele o projecto mais inovador de todos os tempos da história da dança em Angola, a continuar firme! Apesar das políticas inexistentes para as artes, apesar de um sistema de ensino específico falhado e incompetente, apesar do populismo bacoco, apesar da incompreensão dos medíocres, da incapacidade dos ignorantes e do desdém dos frustrados, a (nossa) luta continua! Vitórias são somadas cada vez que uma plateia se levanta para nos aplaudir! 

Ana Clara Guerra Marques* 

A ideia de criar uma companhia de dança profissional em Angola remonta ao início dos anos 80. Enquanto directora da Escola de Dança do Conselho Nacional de Cultura (posteriormente Secretaria de Estado da Cultura, Ministério da Cultura, Ministério da Educação e Cultura, etc., até à sua extinção), achava que um ensino profissional da dança só faria sentido se existisse, em paralelo, uma estrutura que funcionasse quer enquanto polo de divulgação da dança cénica e das profissões a ela ligadas, quer enquanto lugar de absorção dos profissionais formados pela escola, numa relação de reciprocidade. 

Assim é em (quase) todo o mundo, menos no nosso país que sempre olhou com relutância (actualmente com indiferênça) para a formação e consequente mudança do panorama da dança em Angola o qual, politicamente, se queria circunscrito ao folclore, usando-se todo o tipo de argumentos para justificar este imperativo de não se evoluir nos domínios artísticos sob a bandeira, mal interpretada, do regresso e resgate das tradições, sem se pensar que o progresso é inevitável, que todas as realidades podem coexistir sem se excluirem e que este acervo herdado não é estático e conhece, também ele, as suas transformações e adaptações aos distintos contextos sociais e políticos. Disto são um infeliz exemplo as manipulações frequentes através de um folclore inventado de conteúdo “very typical”,fazendo lembrar os ranchos folclóricos à moda do velho e fascista Estado Novo. Estas falsificações são, orgulhosamente, exibidas como entretenimento em recepções protocolares e, ultimamente, nas Expos internacionais onde nos especializámos em alimentar e vender uma imagem distorcida das danças tradicionais angolanas. 

Foi apenas em 1991, pela mão do INFAC (Instituto Nacional de Formação Artística e Cultural) e da sua directora (a única com conhecimento, sensibilidade artística e visão de futuro que ocupou aquele lugar) que, finalmente, este antigo mas inovador projecto passou da gaveta à luz! Existindo durante dois anos sob a modesta designação inicial de Conjunto Experimental de Dança (CED), a Companhia de Dança Contemporânea de Angola faz a sua estreia no Teatro Avenida, em Luanda, no dia 27 de Dezembro desse ano, com a obra A Propósito de Lweji, baseada no mito da fundação do Império Lunda e em elementos da cultura Cokwe

Além de inaugurar o regime de temporadas, a CDC Angola criou uma linha de trabalho que, dispensando as narrativas de estruturação convencional, passou a preferenciar propostas que confrontassem o público com as suas próprias histórias, aspectos do seu quotidiano, das suas realidades sociais, da sua condição de cidadãos de universos que se cruzam numa época em que as barreiras geográficas e culturais são superadas pelos recursos que nos disponibilizam as novas tecnologias. Estas mesmas que, conjuntamente com outras linguagens, passaram a integrar os discursos artístico e estético desta companhia. 

Num terreno conservador e quase exclusivamente marcado pelas danças patrimoniais e recreativas urbanas, a CDC Angola apontou, desde o início, novos olhares sobre a dança, ao propôr outras linguagens, diferentes vocabulários e fazendo, portanto, da crítica e da intervenção social a sua marca. As peças Mea Culpa (1992); Imagem & Movimento (1993), Palmas, por Favor! (1994); Neste País… (1995), Agora não dá! ‘Tou a Bumbar… (1998), Os Quadros do Verso Vetusto (1999), O Homem que chorava sumo de tomates (2011), Solos para um Dó Maior (2014), Ceci n’est pas une porte (2016), O monstro está em cena (2018) e Mysterium Cuniunctionis (2019) exploram à exaustão os mais variados aspectos da sociedade angolana e seus principais actores. 

A recuperação de memórias e heranças foi, igualmente, uma escolha da Companhia de Dança Contemporânea de Angola que, no âmbito da pesquisa efectuada em várias regiões do país, apresentou outras possibilidades estéticas para a revitalização da cultura de raiz tradicional. A partir desses estudos de investigação são criadas as peças A Propósito de Lweji (1991), Uma frase qualquer… e outras (frases) (1997), Peças para uma sombra iniciada e outros rituais mais ou menos (2009), Paisagens Propícias (2012), Mpemba Nyi Mukundu (2014) e (Des)construção (2017).

Sendo a falta de teatros uma realidade em Luanda (e em todo o país) a CDC Angola deslocou a dança para outros espaços (menos convencionais), introduzindo o público a diferentes formas e conceitos de espectáculo. São disso exemplo as performances Corpusnágua (1992); Solidão (1992); 1 Morto & os Vivos (1992), 5 Estátuas para Masongi (1993) Introversão versus Extroversão (1995) e Ogros… da Oratura… e do Fantástico (2008). Para estas criações a companhia fez parcerias com alguns dos maiores nomes da literatura e das artes plásticas angolanas, entre os quais Manuel Rui Monteiro, Pepetela, Frederico Ningi, Carlos Ferreira, Jorge Gumbe, Mário Tendinha, Francisco Van-Dúnem, Masongi Afonso, Zan de Andrade e António Ole. 

Provocando uma ruptura estética na cena da dança angolana, a CDC Angola nunca desistiu de apontar novos olhares sobre a dança em Angola tornando-se, em 2009, uma companhia de Dança Inclusiva pela integração de bailarinos com e sem deficiência física. 

Fundada há 30 anos, a Companhia de Dança Contemporânea de Angola, edificou, através de um percurso de inovação e singularidade, uma história exclusiva que faz dela um colectivo único num contexto artístico inicialmente caracterizado pela ausência da criação de autor, ao nível da dança. 

Apesar da sua qualidade, legitimada pelo rigor do seu profissionalismo e pela consistência intelectual e artística das suas criações, a CDC Angola é mantida na condição de sobrevivente, perante a indiferença e a ausência de um reconhecimento institucional. 

Desatendida em Angola, aquela que é a mais antiga companhia de dança profissional angolana (e uma das primeiras a surgir em África) procura, cada vez mais, a sua validação no exterior, onde o seu trabalho é reconhecido. Em conjunto com as digressões, o convite a coreógrafos estrangeiros em residência de criação artística integra a sua estratégia de internacionalização sendo, igualmente, um vector fundamental para o desenvolvimento artístico dos seus bailarinos, que têm assim a possibilidade de contacto com novas linguagens coreográficas e com outros métodos de criação. 

Divulgar, surpreender, ensinar, provocar, levar as artes à comunidade e contribuir para a elevação e educação estética do público, trazendo-o à apreciação das artes são os grandes objectivos desta companhia angolana, para o que complementa a sua acção artística com a realização de workshops, seminários, palestras, encontros, aulas abertas e outros programas de educação e divulgação da dança cénica. 

Além das apresentações no país, esta companhia de dança apresentou-se já em 16 países e 36 cidades, em todos os continentes. 

O labor a que, há três décadas, a Companhia de Dança Contemporânea de Angola se dedica para lavrar esta terra e semear o novo não deixa de ser, apesar de todas as adversidades, um privilégio e um desafio que a História lhe propõe, transformando-se numa responsabilidade à qual não poderá renunciar. Assim, a história da dança angolana passa e passará, obrigatoriamente, pela acção corajosa, pioneira e inovadora da CDC Angola! 

*Fundadora e Directora Artística da CDC Angola

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