“Nada foi feito de forma oculta ou as escondidas como se procura agora fazer crer, até porque, o BNA remeteu este processo à Casa Civil que emitiu um parecer através da Secretária para os Assuntos Jurídicos do Presidente da República para a constituição dos fundos”.
José Eduardo dos Santos
Uma das peças fundamentais do processo de julgamento do “caso 500 milhões”, foi o depoimento do ex-Presidente José Eduardo dos Santos, que consta do processo, mas, segundo diferentes declarações e interpretações, face os dois acórdãos produzidos pelo Tribunal Supremo (TS), e a resposta ao recurso do Tribunal Constitucional (TC), não foi tido nem achado, com base em argumentos ‘matreiros’ que puseram em causa inclusive a autenticidade da sua assinatura. Foi esta, em parte, uma das razões que terá levado a defesa a recorrer ao TC, que, por sua vez, constatou a existência de inúmeros atropelos a Constituição da República (CR) e ao contraditório, para que o julgamento fosse considerado justo.
Aliás, como argumentou a defesa dos réus, não estavam esgotados os meios e as formas para ouvir o ex-Presidente da República, que se manifestou sempre disponível, quer durante a sua permanência em Barcelona, quer no seu regresso a Luanda. Por exemplo, por videoconferência. Mas, como se afirma, não houve da parte do Tribunal esse interesse, baseando-se no argumento de que as declarações do ex-Presidente não serviam de matéria atenuante, na determinação do grau de responsabilidade e consequências dos actos eventualmente praticados pelos réus.
Para melhor entendimento, inclusive das razões que terão servido de base para que, no seu acórdão, o TC desse conta da existência de “inconstitucionalidades” que deveriam ser “expurgadas” pela Câmara do TS que efectuou o julgamento (e não pela corte de juízes dessa instância), publicamos o conteúdo das declarações do ex-Presidente que, aliás, estão a ser já bastante disseminadas nas redes sociais.
A carta, dirigida ao venerando juiz conselheiro presidente do TS deu entrada (segundo o carimbo estampado na primeira folha) na Secretaria da Câmara e no Gabinete de Joel Leonardo aos 13/02/2020, e cinco dias depois (18), recebeu despacho para se “juntar aos autos”.
O depoimento de José Eduardo dos Santos responde à notificação da Câmara Criminal do TS, através do ofício n.° 316.GAB.J.CPRES. TS/2019, com data de 12 de Dezembro do ano de 2019, e foi concluído a 6 de Fevereiro, dois meses depois, e enviado para o presidente da sua Fundação (FESA), Ismael Diogo da Silva, para que fizesse chegar o documento a essa instância.
Em ofício com data de 12 de Fevereiro, seis dias depois da produção das respostas, Ismael Diogo da Silva rubricou o ofício que, como apêndice, anexava a documento onde constam as declarações solicitadas na notificação da Câmara Criminal do Supremo Tribunal, que, no dia a seguir, 13 de Fevereiro, deu entrada na sua Secretaria e no Gabinete do seu presidente.
A questão que intriga, é por que razão a Câmara Criminal do Supremo Tribunal, que notificou José Eduardo dos Santos, ignorou depois a sua resposta, e não atendeu os argumentos da defesa sobre a possibilidade de uma audição directa por vídeo? E, porque não mesmo presencial, com deslocação de uma equipa do Tribunal a Barcelona, tendo em conta o respeito que essa figura deveria merecer, pelo seu relevante papel no exercício das funções de Chefe de Estado e a delicadeza do caso, que para lá da lei, passou a ser tido como perseguição de quem o substitui a sua família e colaboradores? O que perderia o Estado, se o Tribunal, para apurar a verdade, não esgotasse as vias para facilitar o juízo da corte, ouvindo aquele que, afinal, sempre foi a figura principal desse processo?
Sobre este caso, muito ainda há por esclarecer, porque tendo José Eduardo dos Santos falecido, com ele foi-se a outra ponta da verdade. As respostas, elaboradas por si com ou sem o suporte à assistência jurídica que também tinha direito, ficarão, no entanto, na história por terem sido ignoradas até por figuras nomeadas por si e que já o veneraram como Chefe, deixando no ar um certo ‘cheiro’ a traição, a maldade, a revanche.
Segue-se o conteúdo integral da carta do ex-Presidente da República com as questões colocadas pela Câmara Criminal do Tribunal Supremo:
VENERANDO JUIZ
CONSELHEIRO DA CAUSA DA CÂMARA
DOS CRIMES COMUNS DO TRIBUNAL SUPREMO
LUANDA
PROCESSO N.° 002/19
Engenheiro José Eduardo dos Santos, na qualidade de antigo Presidente da República de Angola, em resposta ao questionário capeado pelo vosso ofício com a referência n.° 316.GAB.J.CPRES.TS/2019 de 12 de Dezembro do ano de 2019, apresentado pela Defesa do Senhor Válter Filipe Duarte da Silva, com oito perguntas, após atenta leitura, vem mui respeitosamente esclarecer o seguinte:
1- Se o Senhor Eng. José Eduardo dos Santos orientou aos senhores, Ministro das Finanças, Augusto Archer Mangueira de Sousa e o Governador do Banco Nacional de Angola, Válter Filipe Duarte da Silva, respectivamente, a realizarem diversas acções para a mobilização de 30 mil milhões de dólares americanos?
R: Sim, confirmo que, na qualidade de então Presidente da República e Titular do Poder Executivo, orientei e autorizei o então Ministro das Finanças, Augusto Archer Mangueira de Sousa e ao então Governador do Banco Nacional de Angola, Valter Filipe Duarte da Silva, respectivamente, a realizarem, em nome e no interesse do Estado angolano, acções para a mobilização de 30 mil milhões de dólares norte-americanos em meados do ano de 2017.
2. – Se sim, para que fim orientou a realização dessas acções?
R: O fim dessas acções consistia na obtenção, por via de um financiamento, de recursos financeiros que contribuíssem para o asseguramento financeiro da continuidade, em melhores condições, do funcionamento do Estado, saída da crise económico-financeira vivida na altura e, consequentemente, para a promoção do desenvolvimento económico e social, dirigido à melhoria da qualidade de vida das nossas populações e ao progresso do País.
3. – Em que termos e condições as acções foram orientadas e realizadas?
R: As acções foram orientadas no sentido de tudo fazerem para o cumprimento dos desígnios atrás citados, face a difícil situação económico-social que o país vivia e realizadas em condições normais e de legalidade, tendo em atenção a prossecução do interesse público e nunca do interesse particular das pessoas envolvidas nessa operação que, dada a delicadeza da natureza da sua fase inicial, recomendei que fosse considerada ultra-secreta, para que, no momento da sua concretização ser antes apresentada a sociedade através de um acto público e os Decretos Presidenciais a formalizarem a criação dos fundos estratégicos e de outros actos afins seriam, como era e penso ser ainda hoje prática, publicados no Diário da República.
4. – O Senhor Válter Filipe excedeu no cumprimento do mandato que lhe conferiu para concretização deste desiderato (mobilização dos 30 mil milhões de dólares americanos)?
R: O Senhor Válter Filipe Duarte da Silva, participou nessa operação na qualidade de Governador do Banco Nacional de Angola, que era o ente público, à quem incumbi na fase inicial, a responsabilidade de negociar e assinar os primeiros contratos de prestação de serviço de intermediação financeira e um outro de alocação e gestão de activos com os promotores do financiamento em causa, emitir as garantias, cabendo depois ao Executivo constituir os fundos para operacionalizarem o financiamento, já que a dada altura do percurso das negociações, por decisão minha, o processo passou a ser coordenado por este, apoiado por uma equipa negocial, constituída por técnicos do BNA que participou nas negociações porque, o então Ministro das Finanças, que coordenou até aí, foi por mim afastado por razões de agenda e porque era mais confortável para os bancos começarem a relação com o nosso Banco Central, tendo este agido dentro dos limites do mandato que lhe conferi enquanto Titular do Poder Executivo.
5. – O Senhor autorizou o senhor Válter Filipe a assinar os contractos resultantes das negociações com os potenciais promotores do financiamento?
R: Depois de receber a informação escrita em forma de memorando sobre o desenvolvimento das negociações, através da qual o então Governador do Banco Nacional de Angola solicitava a devida anuência para assinar os contratos, devido a distância espacial que nos separava, uma vez que o mesmo e seus acompanhantes se encontravam em Londres e eu em Luanda, dada a urgência que se impunha na concretização do processo de mobilização dos fundos em referência, ao abrigo das disposições combinadas dos artigos 120.°, alínea d), da Constituição da República de Angola e 16.°, alíneas d), f), g) e 49.° da Lei n.°16/10 de 15 de Junho (Lei do Banco Nacional de Angola), autorizei o mesmo a assinar os contratos em nome do BNA, em representação do Estado angolano nesta primeira fase.
6. – O Senhor autorizou o então governador do BNA, Válter Filipe, a transferir os 500 milhões de dólares objecto deste processo?
R: Ainda no âmbito da informação escrita em forma de memorando referida na resposta à questão anterior, também autorizei a transferir os valores em causa, à luz dos preceitos legais mencionados na resposta à questão anterior, pois tratava-se de uma mera garantia que, dada a natureza da conta que era de custódia ou fiduciária, os valores pecuniários se mantinham na esfera jurídico-patrimonial do BNA e que visavam apenas garantir a realização da operação de financiamento para o Estado angolano e nunca para proveito razão pela qual, não existia qualquer possibilidade dos mesmos valores, sob pena de, quem assim agisse, ser responsabilizado, aliás, o contrato é claro neste capítulo.
7. – O Senhor revogou tacitamente o despacho que aprovava o memorando apresentado pelo então Ministro das Finanças, quando tomou conhecimento de que este (memorando) não era aquele, resultante do trabalho conjunto entre o Ministério das Finanças e o Banco Nacional de Angola, com o despacho recaído sobre a proposta apresentada, mais tarde, pelo então Governador do Banco Nacional de Angola?
R: Depois de constatar que o então Ministro das Finanças elaborou e apresentou um memorando unilateralmente, o que contrariava a minha orientação, para além de ter verbalmente comunicado na audiência conjunta que concedi ao então Auxiliar do Titular do Poder Executivo responsável pelo pelouro das Finanças e ao então Governador do BNA, que ficava sem efeito o respectivo memorando, orientei à ambos para elaborarem um parecer conjunto. Ainda assim com a aprovação e autorização que fiz recair na informação-memorando apresentada pelo senhor Válter Filipe no dia 10 de Agosto de 2017, cuja fotocópia aqui se anexa para tornar o quadro mais inteligível, ficou o memorando apresentado pelo Senhor Augusto Archer Mangueira de Sousa tacitamente revogado.
8. – O senhor deu a conhecer sobre a operação em curso para a mobilização dos 30 mil milhões de dólares norte-americanos ao actual titular do Poder Executivo e a algum dos seus auxiliares? Em que circunstâncias?
R: Não só dei a conhecer, como orientei o então Governador do BNA a entregar o dossiê completo desta operação ao Actual Ministro de Estado para a Coordenação Económica, assim como convidei o mesmo a estar presente no encontro de cortesia que se realizou no Palácio Presidencial da Cidade Alta com os promotores, onde todas as pessoas presentes foram apresentadas e se esclareceu a razão de ser do encontro e o objectivo da operação que estava a ser realizada, por isso, nada foi feito de forma oculta ou as escondidas como se procura agora fazer crer, até porque, o BNA remeteu este processo à Casa Civil que emitiu um parecer através da Secretária para os Assuntos Jurídicos do Presidente da República para a constituição dos fundos e estavam em preparação os projectos dos Decretos Presidenciais para a formalização da criação dos fundos, bem como de todos os actos que, dada a sua natureza urgente, foram praticados sem a observância da forma legal e que careciam do devido formalismo, não sendo concretizado porque terminou o meu mandato.
O sindicato bancário tinha prometido garantir o empréstimo de trinta bilhões USD, mas na assinatura do contracto não compareceram, por isso o contrato não foi assinado por mim.
Outrossim, dei instruções claras ao então Governador do BNA no sentido de, tão-logo o novo Presidente da República tomasse posse e iniciasse funções, dar nota do estado da operação e das reservas internacionais liquidas ao mesmo (novo Titular do Poder Executivo), para que este mandasse reavaliar a situação do processo em curso e tomasse, em última instância, a decisão de continuar ou não com o mesmo (processo).
Barcelona, aos 06 de Fevereiro de 2020.-
O Declarante
Eng. José Eduardo dos Santos
Segue a assinatura