A instabilidade político-militar em África: Angola e os serviços de segurança

Os povos estão a apoiar os golpes, os militares estão a receber legitimidade do povo para agir contra as lideranças dos países, e sendo no povo onde reside toda a soberania Nacional quem irá dizer aos militares que eles estão a agir contra a Constituição? Quem irá dizê-los que estão a desobedecer as instituições políticas ou as autoridades estatais? 

POR LEONARDO QUARENTA*

A actual conjuntura político-estratégica do continente africano apresenta margens acentuadas de insegurança, colocando em alerta total os seus governos. Basta notar que os golpes de Estados executados por juntas militares tornou-se um acto recorrente, líderes democraticamente eleitos são derrubados, instalando assim a nível interno um clima ambíguo bastante complexo: de um lado dá-se a presença do apoio popular a favor dos golpes, d’outro lado dá-se a presença da «desconfiança e da insegurança», instalando a incerteza estatal, porque depois disso ninguém sabe como será a Administração do Estado nas mãos dos golpistas, tendo em conta que a história africana sempre demonstrou que os golpes nunca solucionaram os problemas sociais.

Portanto, as causas por detrás dos golpes de Estado em África são várias: processos eleitorais fraudulentos, crises econômico-financeiras, lutas étnico-tribais, ditatura, má distribuição dos rendimentos e das riquezas, injustiça social, falta de oportunidades aos cidadãos nacionais, centralização do poder, corrupção, repressão policial, violações dos direitos humanos, etc. Todos estes cenários e fenómenos atiçam o surgimento de grupos revolucionários, tanto por parte do povo (revoltas e tumultos sociais) quanto por parte dos militares ligados aos órgãos de defesa e segurança nacional e de mercenários (paramilitares) causando instabilidade política no continnte.

Toda esta complexidade que se vive em África é, prevalentemente, fruto da violação da «Carta Africana sobre a Democracia, as Eleições e a Governanção». Esta Carta adoptada em 2007 pela União Africana, estabelece no seu artigo 3.º, nos n.ºs 1 à 11, os seguintes princípios: “O respeito pelos direitos humanos e os princípios democráticos; o acesso ao poder e seu exercício, de acordo com a Constituição do Estado Parte e dos princípios de Estado de Direito; a promoção de um sistema de governo representativo; a realização regular de eleições, transparentes, livres e justas; a separação de poderes; a promoção de equilíbrio entre os homens e as mulheres nas instituições públicas e privadas; a participação efectiva dos cidadãos nos processos democráticos e de desenvolvimento na gestão dos negócios públicos; a transparência e justiça na gestão dos negócios públicos; a condenação e repressão dos actos de corrupção, ligadas às infracções e impunidade destes mesmos crimes; a rejeição e condenação das mudanças anti-constitucionais de governo; o reforço do pluralismo político, nomeadamente através do reforço do papel dos direitos e das obrigações dos partidos políticos legalmente constituídos, incluindo partidos políticos da oposição que devem beneficiar de um estatuto sobre a lei nacional”.

Além das constantes violações dos princípios acima mencionados por parte dos governos, há também um claro distanciamento por parte dos Estados no que tange os princípios estabelecidos pelo Protocolo do Conselho de Paz e Segurança da União Africana, sobretudo violação das recomendações delineadas pelo artigo 3.º, alíneas (a) a (f) que disciplinam os objectivos do Conselho, que são: “A promoção da paz, segurança e estabilidade em África, para garantir a protecção e a preservação da vida e de propriedades, o bem-estar das populações africanas e o seu meio-ambiente, bem como a criação de condições favoráveis ao desenvolvimento sustentável; a antecipação e prevenção de conflitos. Em circunstâncias onde tenham ocorrido conflitos, o Conselho de Segurança, tem a responsabilidade de desempenhar as funções de edificação e manutenção da paz com vista a resolver esses conflitos; a promoção e execução de actividades de edificação da paz e de reconstrução pós-conflitos, de modo a consolidar a paz e impedir o ressurgimento da violência; a coordenação e harmonização dos esforços a nível continental para a preservação e o combate ao terrorismo internacional, em todos os seus aspectos; desenvolvimento de uma política de defesa colectiva da União; promoção e o encorajamento de práticas democráticas, boa governação, e o estado de direito, protecção dos direitos humanos e liberdades fundamentais, respeito pela santidade da vida humana e direito humanitário internacional, como parte dos esforços em prol da prevenção dos conflitos”.

Todos os acordos, memorandos e protocolos elaborados, assinados e ratificados pelos governos africanos, têm sido desrespeitados e deliberamente violados. Portanto, esta falta de cultura jurídica (observação das leis), de seriedade e de compromisso governamental entre os membros da União Africana, tem causado caos, tensões e instabilidade, não apenas do ponto de vista político-social mas também instabilidade político-militar, porque agora são os próprios exércitos nacionais, guardas presidenciais e unidades especiais, que provocam e criam golpes de Estado.

Quando se chega à esse ponto, significa dizer que ninguém mais pode sentir-se seguro. Ou seja, é o fim da segurança, ninguém mais está à salvo, nem os dirigentes nem mesmo o povo. 

O Exército tem a função de manter a ordem Nacional, a estabilidade Nacional, a protecção das instituições e dos órgãos de soberania Nacional. Antes eram os mercenários ou rebeldes quem fazia golpes de Estado. Hoje são os próprios órgãos de segurança do Estado que estão na base destes golpes. Isto está a tornar-se uma prática comum em África. Basta lembrar que nos últimos seis anos, o continente presenciou mais de 10 golpes de Estado movidos por órgãos de segurança Nacional: em Novembro de 2017, ocorreu o golpe de Estado no Zimbabwe; em Abril de 2019 e Outubro de 2021, foram os golpes de Estado no Sudão (actualmente o país está mergulhado numa guerra civil); em Agosto de 2020 e Maio de 2021, foram os golpes de Estado no Malí; em Março de 2021 e Julho de 2023, foram os golpes de Estado no Níger; em Abril de 2021, foi o golpe de Estado no Tchad; em Setembro de 2021, foi o golpe de Estado na Guiné-Conacri; em Janeiro de 2022, ocorreu o golpe Estado no Burkina Fasso; em Fevereiro de 2021, houve uma tentativa de golpe de Estado na Guiné Bissau; em 30 de Agosto, foi o golpe de Estado na República do Gabão. 

A continuarem todas estas adversidades político-militares, os países africanos ficarão tal igual como o Haiti, onde é comum o exército derrubar dirigentes a seu belo prazer, sem se importar com os princípios constitucionais; a continuar assim, nenhum Presidente africano sobreviverá por muito tempo no poder, e em certos casos nem mesmo conseguirão terminar o mandato. Sobretudo, se não trabalharem bem, a qualquer momento poderão ser depostos, detidos e humilhados… e isto é preocupante. O Estado democrático e de direito foi praticamente jogado por terra, e nenhum Chefe de Estado está à salvo destes actos inconstitucionais. Logo, é momento de se criar novas estratégias. 

Quanto o caso de Angola, é fundamental realçar que Angola é um dos países mais estáveis e seguros do continente africano. Há muito investimento em prol dos serviços de segurança, além das verbas adicionais que o Executivo tem direccionado à este sector em base às necessidades e circunstâncias. Contudo, em política nada é 100% seguro, daí que, é de preferência desconfiar do que confiar. Neste quesito, para se evitar golpes de Estado em Angola, sugiro que o Executivo prossiga com as seguintes reformas:

1. Mexidas nas chefias militares: uma remodelação significativa nos órgãos de defesa e segurança, não apenas reforçaria a segurança Nacional como também alteraria e cancelaria qualquer intenção, programa ou plano em andamento de possíveis golpes de Estado. Essas mundanças devem ser pragmáticas, pontuais, eficientes e estratégicas.

2. Melhoria nas condições sociais: aqui, inicialmente, o Executivo deveria começar por baixar prevalentemente os preços da cesta básica, permitindo que as famílias carenciadas e com salários mínimos tenham acesso aos bens de primeira necessidade. Para este fim, o Executivo teria de analisar estrategicamente a reserva alimentar Nacional, aplicar algumas medidas eficazes, de modo a fazer funcionar o projecto. A comida regular na mesa dos cidadãos ajuda a acalmar os ânimos, desmotiva o tumulto e a revolta popular. 

Ainda no âmbito social o Executivo deveria emitir um novo decreto impondo à diminuição significativa das taxas universitárias no valor dos 30 a 40%, ou seja, um decreto que determinasse um teto do preço das taxas universitárias, preços equilibrados e acessíveis aos chefes de famílias com dois ou mais filhos em fase universitária. 

O social inclui também a empregabilidade, a saúde pública, à diversificação da economia e o equilíbrio do câmbio da moeda Nacional que está desvalorizada de forma sem precedentes. Aqui, seria necessário que o Executivo se reunisse de forma séria e tecnocrática com a «Comissão Econômica do Estado», traçando novas medidas econômicas através de políticas econômicas estratégicas.

3. Remodelações profundas nos ministérios, nos governos provinciais, nas direcções nacionais, nas secretarias de Estado e nas empresas públicas. Sendo que a “Voz do Povo é a Voz de Deus (Vox Populi, Vox Dei) é importante que o Executivo escute também a opinião pública sobre a questão dos cargos públicos, pelo facto que, por décadas tem-se verificado que os que têm ocupado cargos públicos são sempre as mesmas figuras que saltam de um cargo ao outro, mesmo sem apresentarem resultados relevantes. Fica evidente que para uma boa Administração do Estado, este tipo de procedimento não tem ajudado em nada na concretização dos projectos nacionais. Portanto, é necessário que se dê lugar à mudanças profundas no governo, uma mudança de 1000º e não de 360º, colocando no Executivo figuras novas, incluindo jovens competentes e comprometidos, cidadãos sérios e qualificados, dispostos a trabalharem seriamente em prol do País, tendo um único foco: os resultados.

Toda esta onda de golpes de Estado que a África está a viver tem mesmo como uma das causas a falta de abertura governamental. Esses golpes tendem a continuar se os governos africanos não derem lugar à reformas. O descontentamento do povo africano chegou a exaustão. Portanto, nota-se claramente que ninguém mais quer respeitar a Constituição. A injustiça social causa este tipo de sentimento anárquico por parte dos cidadãos, e agora são as próprias forças armadas e os demais órgãos de segurança do dos governos africanos quem toma as rédeas do Estado, impondo regras, depondo presidentes e altos dirigentes, fazendo cair parlamentos, etc…. 

Os golpes de Estado são actos inconstitucionais, são acções severamente condenadas pelo direito internacional, não se deve defender esse tipo de prática. Construir uma África melhor, não significa que devemos ir nesta direcção porque o desenvolvimento econômico-social faz-se com projectos de cidadania, faz-se com estratégias de boa governação, faz-se com reformas. Mas tudo indica que os golpes irão continuar nas sociedades africanas, e esta nova onda é demasiado perigosa. Sendo assim, é chegado o momento de se dar lugar à reformas.

Os governantes africanos precisam de levar isso muito à sério. Os golpes são reais e letais. Os militares, doravante, estarão prontos a intervir coercivamente em casos de anamolias sociais, corrupção e abusos de poder, com o intuito de impor a ordem e a estabilidade Nacional.

Independentemente da posição ou nível de influência que um político ou dirigente possa ter no próprio País, tudo isso pode ser destruído em poucas horas em casos de golpes de Estado. O continente está a passar por um momento conturbado a nível de organização estatal, já ninguém quer saber de leis nem dos princípios constitucionais. Democraticamente falando, os golpes retardam o progresso público-social, mas a realidade africana (a vida prática) está a encarar esses acontecimentos de forma diferente. Os povos estão a apoiar os golpes, os militares estão a receber legitimidade do povo para agir contra as lideranças dos países, e sendo no povo onde reside toda a soberania Nacional quem irá dizer aos militares que eles estão a agir contra a Constituição? Quem irá dizê-los que estão a desobedecer as instituições políticas ou as autoridades estatais? Quem irá convencê-los de que a via recomendável de acção dentro do Estado é a via da legalidade e da negociação e não a via da força? Quem irá persuadi-los a não agir, perante às complexidades de uma Administração do Estado marcada por desigualdades extremas? Portanto, já ninguém está à salvo dos golpes. A continuar assim, a insegurança será o novo normal dos dirigentes. Contudo, os governos africanos precisam de tirar lições nisso, fazendo reformas no aparelho do Estado. Caso contrário, os órgãos de defesa e segurança Nacional é que irão substituí-los e destituí-los por via de golpes ou da força militar.

*Leonardo Quarenta: Ph.D em Direito Constitucional e Internacional; Mestrado em Relações Internacionais: Diplomacia, Mediação e Gestão de Crises; Mestrado em Criminologia, Direito Penal e Políticas de Segurança; Formação em Conselheiro Civil e Militar; Formação em Geopolítica de África: O Papel da CPLP na Segurança Regional.

– Defesa e Segurança; Departamento Nacional de Políticas de Estado; Inteligência Estratégica de Defesa; Inteligência Militar; Diplomacia Militar; Planejamento Operacional Militar; Departamento Estratégico de Projectos Nacionais; Diplomacia Governamental; Diplomacia Presidencial; Conselheiro de Segurança Nacional; Competências Internacionais

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