27 de Maio de 1977. “Nito Alves não pretendia fazer nenhum golpe” (1.ª Parte)

Revelações de Luís dos Passos, um dos integrantes do grupo que foi acusado de promover uma tentativa de golpe contra Agostinho Neto e o MPLA, de que resultaram mais de 30 mil assassinatos. Esteve fugido, nas matas dos Dembos, então 1ª Região, por cerca de 13 anos e não fosse essa decisão, provavelmente, teria conhecido a morte.

Por Ramiro Aleixo 

Desamarra (a história) é um projecto editorial do www.kesongo.com que tem como objectivo, contribuir para o conhecimento (ou esclarecimento) da verdade, sobre diferentes ocorrências ao longo desse período de quase meio século de existência de nação, antes e no pós-independência. E neste arranque, trazemos Luís dos Passos, uma figura incontornável na narrativa dos factos que ocorreram no dia 27 de Maio 1977 (apenas dois anos depois de proclamada a independência) e nos dias e anos que se seguiram, com uma repressão e matança que enlutou quase todas as famílias angolanas à pretexto de uma “tentativa de golpe de Estado”. 

A Amnistia Internacional calcula que, pelo menos 30 mil pessoas foram presas, torturadas e assassinadas num período de dois anos, que terminou em 1979, com a entrada de José Eduardo dos Santos. Mas nem mesmo com ele, apesar do domínio de 36 anos, do lado do Governo, nunca houve esforço e interesse em fazer o levantamento para o conhecimento da verdade, provavelmente, porque acarretaria sérios prejuízos para o MPLA, porque afinal, o fraccionismo, a matança que se seguiu, quem participou e quem dirigiu tem no seu cadastro a militância nesse partido. 

De lá para cá, decorreram exactos 43 anos e, por coincidência, este ano, a data foi assinalada também numa sexta-feira. Apesar do pedido de perdão feito em nome do Estado pelo presidente da República João Manuel Lourenço, sente-se que ainda não há, de facto, paz nos corações de todos aqueles que foram vítimas directas dessa sanha assassina trazida das matas, ou indirectas, refiro-me, concretamente, aos familiares das vítimas, que aguardam pela entrega das ossadas dos seus entes. Empreitada difícil… envolta, logo à partida, por uma enorme nuvem de suspeição, porque os principais actores não dão a cara, e nalguns casos, até são homenageados, por quem em nome do Estado, pediu perdão.

Luís dos Passos, numa longa conversa de regresso ao passado que repartimos em duas publicações, ajuda-nos a tentar perceber o que de facto ocorreu já que, a nossa percepção ao analisarmos este caso, é que foi resultado de conflitos internos no MPLA trazidos da mata com muita malvadez à mistura, porque lá já se matavam entre eles com muita crueldade, e o choque com uma nata de jovens extremamente inteligentes e capazes que encontraram nas cidades formados nas escolas coloniais, de quem tiveram medo e ciúme. E no meio de toda essa embrulhada, Agostinho Neto não soube ser o líder com capacidade de fazer a ponte geracional entre as duas alas, conjugada com a defesa dos interesses que motivaram a luta pela independência, cujo comprometimento nunca foi, a tomada do poder e todos os benefícios para um só grupo: eles, que, supostamente, fizeram a luta de libertação.

Como disse o histórico comandante Monstro Mortal (João Jacob Caetano), guerrilheiro da 1ª Região, uma das vítimas dos assassinatos, mostrando à Agostinho Neto as cicatrizes nas costas de ferimentos recebidos em sua defesa e de uma suposta causa em que acreditou, “não foi isso que combinamos”. E, de facto, a matança não fazia parte de qualquer projecto dos “fraccionistas” nem qualquer “golpe de Estado”, como nos refere Luís dos Passos, nesta primeira parte do seu depoimento deste projecto que tem como finalidade, “Desamarrar” a verdade ainda amordaçada da nossa história como nação independente. Ela tem sido contada apenas por uma das partes e como lhe convém, continuando a ter apenas os seus, como as principais figuras de referência ou de resistência. E não é assim que se constrói um Estado Democrático de (ou e de) Direito harmonizado, reconciliado, onde, como cantou Teta Lando à Sombra da Mulemba, “os seus mortos vão saber porque morreram afinal”…

Estamos ainda demasiado longe, mas toda caminhada começa por um passo. E esse, com Luís dos Passos, é apenas e só, mais um contributo. É a verdade dele, como prestou juramento. Uma verdade, a sua, onde Cuba, dirigida por Fidel Castro, também não ficou bem na fotografia.

Aguardamos reacções!

Imagens publicadas pelo Jornal de Angola, nos dias que se seguiram

KG- Luís dos Passos como quer que o trate? Por general ou apenas pelo seu nome?

LP- Apenas pelo meu nome: Luís dos Passos. Não sou general. Sou considerado “fraccionista” pelos meus próprios companheiros nas Forças Armadas. É assim que eles ainda nos consideram. Sou general, apenas em Malanje. É assim que sou tratado pelo meu povo. Todos eles, incluindo o Pedro Sebastião (na altura em que foi concedida esta entrevista exercia funções de Ministro de Estado e Chefe da Casa Militar do Presidente da República), que nos conhece bem, não aceitam que temos o nosso próprio estatuto nas Forças Armadas.

KG- Jura, que tudo o que relatar nesta nossa conversa é verdade e só a verdade?

LP- Juro! Tudo verdade. Não acrescento mais nada. Espero que vocês analisem o que eu digo. Não tenho nada a ocultar. Direi apenas o que sei. A verdade!

KG- Quem é Luís dos Passos?

LP- Nasci em Malanje, terra do meu pai, em 1955, filho de um enfermeiro, funcionário público, que percorreu um pouco o país e foi para Malanje. Sou o terceiro filho. O mais-velho de todos é o Boaventura Cardoso. O meu pai foi um dos primeiros dentistas angolanos negro, formado em 1933. Eram  dois: o Cardoso, meu pai, e o Correia. Foram os dois primeiros dentistas, negros, em Luanda, e trabalhavam no Hospital Maria Pia. Foi também professor de enfermagem. Já tinha o 5º ano como habilitações académicas, e quando foi expulso do seminário recorreu à enfermagem. Entre os seus alunos, durante a sua formação, teve como colegas Agostinho Mendes de Carvalho e outros mais-velhos. Em Malanje, para além de exercer a sua profissão, também deu aulas a muitos jovens que depois se tornaram auxiliares de enfermagem.

Mas o meu pai morreu muito cedo, em 1967. Eu tinha 12 anos, e acabamos por vir para Luanda porque o meu irmão mais-velho, o Boaventura Cardoso, que assumiu o suporte da família, conseguiu um emprego nas Finanças e acabamos por vir. A minha mãe e toda a sua família são de Luanda, e ela queria viver cá. E assim acabamos por vir todos.

Foi uma mudança brusca, porque os do interior quando chegavam a Luanda eram tratados como homens do mato. Tivemos que fazer a adaptação. Embora conhecêssemos Luanda quando vínhamos em gozo de férias, estava habituado a um ambiente diferente. 

Mas acabamos por ficar. Fiz os meus estudos no Liceu Paulo Dias de Novais e no Instituto Industrial. Foi assim até aos 18 anos, porque seis anos depois, aos 24, acabei por fugir para o Congo, para as fileiras do MPLA, porque estava a ser perseguido por indivíduos da PIDE/DGS (Policia Internacional de Defesa do Estado/Direcção Geral de Segurança) que já tinham ido à Igreja do S. Domingos procurar por mim, por causa de uns panfletos que fazíamos. Eu e o Filomeno Vieira Lopes, fazíamos lá umas cartilhas e panfletos do MPLA, e eles sabiam da existência daquelas máquinas policopiadoras (impressoras que funcionavam à manivela com películas de stencil), porque naquela altura, elas eram registadas e esses dados estavam sob controle da PIDE. Eles controlavam tudo e só alguns sítios é que tinham. Eles sabiam que só os funcionários públicos é que manuseavam esses equipamentos, e por isso deram conta que os panfletos estavam a ser feitos na Igreja do São Domingos.

Foi o padre Dom Luís Carta quem me avisou que tinham aparecido lá uns homens brancos e então, com o Filomeno Vieira Lopes, organizamos a nossa fuga.

KG- Tão jovem e já era militante do MPLA?

LP– Em 1974 eu já era militante clandestino do MPLA. Comecei a tomar contacto com questões relacionadas com a resistência contra o colonialismo e a existência das forças nacionalistas, entre os 14 e 15 anos. Fiz parte de um grupo bastante activo muitos dos quais foram presos, como o Nelito Songa, da família Cadete, que esteve toda ela envolvida: pai e mãe, os avôs do Loló e do Pai Querido, PCA da Sonangol. Eu já fazia clandestinidade no grupo onde estava também o Gentil, irmão deles, que era da minha idade. Foi depois preso e morto na sequência dos acontecimentos do 27 de Maio, apesar de também ser efectivo da DISA (Direcção de Informação e Segurança de Angola). Já o Nelito Songa estava preso. Mas nós continuamos. 

Naquela altura, idealizei um assalto à Escola industrial Oliveira Salazar, em Luanda. O caso chegou ao conhecimento da PIDE que procurou, felizmente para mim, pessoas erradas: o Pacavira, por exemplo, o Saturnino, que foi médico, e o Jesuíno José Carlos, irmão do Carlitos Vieira Dias, o Malheiros (engenheiro) da zona do Marçal. Eu era o único que estudava na Escola Industrial. Mas também exercia outra actividade na Igreja do São Domingos, que servia de cobertura para as minhas acções de trabalho da clandestinidade. Fazia, todos os domingos, a leitura de extractos bíblicos e ia e vinha da escola sempre bem acompanhado com meninas. Logo, o que eles pensaram é que eu era um bom mulherengo. Eu fazia bem essa camuflagem, e então eles não tinham domínio de que também estava envolvido na politica.

A última acção que tínhamos programado foi contra um tal Bula, agente da PIDE. Esse tipo era muito mau, dava muita surra aos presos na cadeia de S. Paulo. Por isso, um dia, nos nossos encontros de concertação de acções, decidimos eliminá-lo. Pretendíamos, primeiro, roubar uma arma à polícia e esperá-lo quando passasse pelos eucaliptos, ali prós lados do bairro  Caputo, onde eu morava. Pretendíamos atacá-lo aí, e dar-lhe um tiro. Mas, pronto! Depois chegou o 25 de Abril, e tudo ficou mais ou menos. Então fugi de avião para o Congo, em 1974, e integrei o MPLA. 

KG- Foge para o MPLA e depois entra para a guerrilha?

LP- No Congo, foi constituído um grupo denominado “Dos 100” que foi para a Zâmbia de avião. Chegados lá, fomos presos e depois de resolvida a questão, fomos levados para a sede do MPLA denominada VIC (Vitória é Certa). Posteriormente, seguimos um pouco mais para o interior, onde fizemos treinos militares. Depois da assinatura dos Acordos de Paz, em Lumeje (Moxico), no mês de Outubro, com as autoridades militares portuguesas, como já estávamos preparados, fomos divididos por vários grupos e enviaram-nos para o interior de Angola, com o objectivo de fazer a preparação de tropas.

Do meu grupo saíram alguns instrutores como o Cassagi,  o falecido João de Matos, o Pogliese que já está na reforma, o Mário António, que foi  secretário do MPLA e CO da GEFI- Sociedade de Gestão e Participações Financeiras desse partido. Eu fui enviado para Malanje e outros para o Sul. Desse grupo que foi para o Sul, a maior parte acabou por morrer num confronto com os sul-africanos. Foi uma razia. Coitados! Morreram todos. O grupo foi reduzido e dos que seguiram para Malanje, recordo-me do Menha kwa Ngungu e outro que ainda está aí, o Pakas (Manuel Mendes de Carvalho Pacavira), que manda muitas bocas. Foi meu colega. 

Faz tempo, concedeu uma entrevista bombástica sobre os que mataram no 27 de Maio. Acho que ele nem devia abrir a boca para falar sobre isso, porque ele também matou. Mas isso são outros quinhentos. Tenho primas-irmãs que foram presas por serem minhas familiares, estão aí em vida, e que dizem que o Pakas fez trinta-por-uma-linha. Uma vez ele estendeu a mão para saudar uma prima minha, a São Canguia, e ela não aceitou e disse-lhe que as mãos dele estavam sujas de sangue. Ele sabe disso. Ele prendeu um irmão da Lima Tota. Ele nem devia abrir a boca para falar de matanças e mortes, porque ele esteve ligado a tudo isso.

KG- Mas, continuando com o seu percurso nas FAPLA…

LP- Depois fiquei instrutor militar de muitos dos actuais generais, e por isso é que muitos consideram-me também um general. O Patônio (António dos Santos Neto, já na reforma) e o Disciplina (António Egídio de Sousa Santos, chefe do Estado Maior General das FAA) foram meus colegas. Mas isso não acrescenta nada na minha vida. Não preciso.

Fui instrutor militar e dei baptismo de fogo ao general Disciplina,  ao general Ngutu (Jorge de Barros), já falecido, e a tantos outros. Quando começou a guerra, em 1975, eu estava em Malanje e na sequência do meu desempenho, após uma visita realizada por Agostinho Neto nesse mesmo ano, fui nomeado comandante de Esquadrão, que naquela altura era equivalente a capitão, uma patente de relevo na estrutura de comando. 

Fui ainda, nesse período, comandante de um Batalhão de Intervenção Rápida treinado por dois comandos catangueses. E foi assim, que um grupo dirigido por mim travou a penetração de forças sul-africanas que quiseram tomar Malanje, porque era uma rota e ponto estratégico muito importante para penetrarem no  Leste, via Saurimo. Eles tomaram o Luena no dia 9 de Dezembro e pretendiam seguir imediatamente para Malanje, porque assim cortariam e isolariam a Lunda (ainda não estavam divididas). Foram de comboio e tomaram rápido a Lunda no dia 9 e no dia 10 queriam tomar Malanje. Por essa altura, o Lúcio Lara estava de visita a Malanje, e ele dizia que eu não deveria ir para a frente. Apesar da insistência dele, eu argumentava que tinha que visitar as tropas. Apanhei uma brecha – funcionava tipo bombeiro a apagar vários fogos – e como tinha que ir buscar uma guarnição – já que também era chefe de logística – fui à busca de explosivos para a eventualidade de se ter necessidade de partirmos a ponte sobre o rio. E na verdade, tivemos mesmo que tomar essa decisão. As nossas tropas não estavam ainda suficientemente preparadas para fazer frente às tropas sul-africanas. Tínhamos bom poderio de fogo mas, em termos de organização militar, não estávamos tão bem. Então partimos a ponte e recuamos e aguardamos mais algum tempo, até que, com mais preparação de instrutores cubanos e já num formato de exército regular, com companhias de infantaria, unidades de tanques, alguns deles de reconhecimento enviados pela 9ª Brigada, tipo BRDM, constituímos um batalhão e partimos em direcção  ao Bié, seguindo por Cambundo Catembo,  Lukembo, Quirima, Saltar, passamos o rio Luango e demos corrida aos sul-africanos. 

A ofensiva prosseguiu até ao Luena, no Moxico, e quando deram conta que também estávamos a preparar-nos para cortar o caminho da linha férrea, na zona do Cuemba, porque era difícil passar por estrada no Munhengo, um dia antes de chegarmos, eles voltaram a fugir.

A ofensiva passou também pelo Huambo mas eles, a partir daí, foi só fugir… fugir… fugir… para o Cuando Cubango. E a 14 de Fevereiro, com outro grupo, foi só segui-los, até que passaram a fronteira. Fugiram porque não tinham hipótese. Já tínhamos preparação e um poder de fogo muito superior ao deles, com suporte dos BM 21.

KG- Nessa fase, já contavam com o apoio de forças cubanas em acções de envolvimento directo?

LP- Já estávamos com cubanos, por causa dos BM 21,que chamávamos de  “Mona Caxito de 40 canos”. Não tínhamos ainda gente formada para manusear essas armas, que eram muito fortes.

Estive nessas operações todas até Maio/Junho de 1976. Entretanto, depois disso, fui chamado à Luanda para dirigir a Direcção Política da Força Aérea.

KG- Chamado por quem? Por Agostinho Neto?

LP- Sim! Não quis aceitar esse cargo, porque eu era um homem de guerra e não um político. Mas, como militar, e naquela altura de grande pendor politico, tinha que cumprir. O que se pretendia com a minha intervenção, era melhorar a organização e a influência do MPLA dentro das Forças Armadas, a exemplo do que acontecia nos países aliados da esfera comunista, como Cuba e a Rússia. De facto, nós ainda estávamos muito misturados e desorganizados: quem era militante e quem não era, ou era apenas militar. Era preciso organizar e por isso fui enviado para lá.  

Mas, também fiz apenas quatro ou cinco meses nessa função, porque fui colocado na Direcção Política do Estado Maior General, também para organizar o partido nas Forças Armadas de forma mais abrangente, porque a partir dessa estrutura, já tinha responsabilidades que se estendiam e tinham correspondência com as direcções provinciais e noutras armas (ramos) como a Força Aérea. Portanto, a esse nível, era o chefe nacional da organização partidária.

KG- E onde é que começa a sua ligação com Nito Alves e Zé Van-Dúnem?

LP- O Nito Alves era uma pessoa muito conhecida e todos nós que estávamos ávidos de leitura política, ficávamos empolgados com os seus discursos. E, ressalte-se que, para além da história heróica de resistência dos guerrilheiros da 1ª Região, onde ele esteve, apesar de jovem, era já uma figura destacada nas Forças Armadas, no próprio MPLA, onde era membro do Comité Central, e foi ministro da Administração Interna. Já o Zé Van-Dúnem conhecia-o há bastante tempo, até porque foi ele quem influenciou a minha adesão ao MPLA  ou aos seus ideais. Por outro lado, é preciso clarificar também que, um quadro como eu, da chefia da Direcção Política do Estado Maior General, já era uma figura de grande relevância na estrutura de comando das Forças Armadas e na sua interligação com a estrutura de direcção politica do MPLA. 

E foi no quadro dessa relação, que comecei a tomar conhecimento das divergências que existiam e que não eram apenas de carácter ideológico. O MPLA já veio da mata com muitos problemas que se estavam a agudizar, nesse ambiente em que as pessoas tinham mais abertura e contactos. Muitos pensam que as divergências entre nós e a ala de Neto, eram só ideológicas. Mas não! Já naquele tempo, uma delas, era o alto nível de corrupção que existia no seio do MPLA, para além de outras que influenciavam, como o racismo ou o protecionismo racial ou ainda, se quisermos, o complexo de inferioridade do neocolonizado.

KG- Já havia corrupção no MPLA por essa altura? Como assim?

LP- Sim! E com nomes perfeitamente identificados. Os documentos que eu vi na mata, enquanto estive com o Nito Alves, atestavam isso. Depois da fuga, o Nito Alves escondeu uma pasta com esses documentos debaixo de uma pedra, nas proximidades de um riacho. Depois levou-a para o Comité Central do MPLA. O Dino Matross (Julião Paulo) sabe bem disso, porque foi ele quem foi buscar os documentos. O Evaristo Domingos Kimba (já falecido), que era membro do Comité Central, também teve acesso e sabia bem da existência desses documentos probatórios. Alguns deles reportavam o processo de compra à Itália daqueles jipes Campaniola, que foram para as Forças Armadas. Foi um negócio feito por Pedro de Castro Van-Dúnem (Loy), que era comandante. Ele ganhou uma comissão com isso e esses carros não serviam para nada.

Para fazermos missões de serviços para as regiões (províncias), tínhamos que andar com um tambor de gasolina no carro, o que era altamente perigoso. Houve o caso de uns rapazes que mandei para o Uíge, que tiveram um acidente por excesso de velocidade mas foi o tambor que depois rolou e bateu na cabeça de um deles, matando-o. Para não dizer que, nas emboscadas, bastava um tiro de uma bala incendiária e era uma autêntica bomba. Queimava os ocupantes e todos os que estivessem à volta do carro. Era complicado!

Outro caso foi o da compra de viaturas de marca Peugeot para a Polícia. O Petroff (Santana André Pitra) era o comandante, e comprou carros para a Policia Nacional e também beneficiou de comissões no exterior. Foi um negócio de luxo, comprar Peugeot 504 para fazer rondas na cidade. Era uma brincadeira!

Quem também estava envolvido era o Manuel Pedro Pacavira, então ministro dos Transportes, que também comprou centenas de viaturas de marca Mercedez para exercerem actividade de táxi, bem como outras de marca Seat, a Espanha. Eram grandes negociatas. 

Para além desses casos que estavam bem descritos nos documentos que Nito Alves tinha em sua posse, havia um outro caso sério. Em 1976, a Nigéria (no tempo em que Olusengu Obasanjo era Presidente) ofereceu 3 milhões de dólares a Angola para reestruturação das Forças Armadas, para além de inúmeras viaturas Volvo 740. O Iko Carreira, na altura ministro da Defesa, guardou os sacos de dinheiro em sua própria casa e foi enviando por parcelas para Portugal. O indivíduo que fazia o transporte, numa das vezes foi apanhado no aeroporto, porque o dinheiro estava escondido numa peça de mobiliário e numa torradeira. Era fotografo das FAPLA, chamava-se Victor Soares, viveu no Lobito. Já é falecido. Acabou preso, cumpriu uma pena de oito anos no Campo de Correcção de Bentiaba. Quando saiu, de medo mudou de nome e passou a chamar-se Victor Oliveira. Um amigo meu que esteve preso com ele, o Quim Sequeira, ouviu a confissão de que queriam matá-lo, que no decorrer da sua prisão e do julgamento o Iko Carreira mandava mensagens e esteve lá, fazia sinais ameaçadores à distância, abanando o pé e balbuciando avisos perceptíveis: “Aí de ti se falas”. Ele próprio pediu ao Quim Sequeira para contar essa sua narrativa se morresse na cadeia.

Quando depois foi liberto, o Quim Sequeira encontrou-o no Lobito e identificou-o. Ele ficou todo assustado e negou que era o individuo a quem contou a história… E voltou a manifestar o receio de ser apanhado outra vez e de ser linchado. E, na verdade, quando o Zé Reis escreveu sobre os sobreviventes do 27 de Maio tentou contactá-lo para falar sobre isso, mas o homem já tinha falecido. Mas ele cumpriu uma pena de oito anos e por causa de três milhões de dólares que tinham sido desviados por Iko Carreira. Mas não foi apenas ele. O Hermínio Escórcio também esteve metido no meio disso tudo. Também visitou o Victor Soares, a quem avisou que não devia dizer nada. E acabaram depois por arranjar outra forma para continuar a meter esse dinheiro lá fora.

O Iko Carreira tinha, em 1975, e mesmo depois, um cunhado que era motorista (camionista), o Cindo, um sujeito muito mau, que matou muita gente, que ainda há dias a Milucha (Maria Luísa Abrantes) falou dele, e que passou depois a ser a mula de transporte da camanga (diamantes). Tornou-se depois num elemento altamente perigoso da DISA, que tinha acesso a tudo porque era cunhado do Iko Carreira.

Tudo isso se sabia e atesta que os níveis de corrupção já eram altos. Não tinha nada a ver com Marxismo-Leninismo. Não! A insatisfação já era resultado do descontentamento pela existência do alto nível de corrupção. Tanto mais que, quando Neto pediu que Nito Alves fizesse a sua autocrítica – sabe que houve uma tentativa de conciliação –  ele disse que não fazia isso, não se rendia diante de hipócritas e camanguistas. Ele sabia de tudo e Agostinho Neto também. Mas ainda assim, numa sessão da Assembleia do Povo, Neto defendeu-o afirmando que “o Iko (Carreira) era um bocadinho preguiçoso mas devia ser perdoado”.

KG- Foi isso que criou o sentimento de revolta em Nito Alves, e é isso que está por trás da sublevação?

LP- Sim! Tudo isso criou esse sentimento de revolta em Nito Alves e em todos os seus apoiantes, porque viam esses comportamentos como uma traição aos ideais que defendiam e pelos quais se bateram. O grande mal de Nito Alves esteve na forma como manifestava esse descontentamento, que deu lugar a uma sublevação popular e naquilo que ficou conhecido como “tentativa de golpe”. O Zé Van-Dúnem também apoiava essa decisão, mas a Sita Valles dizia que não. Mas, ponto assente, acho que o Nito não devia ter direccionado todo esse descontentamento para essa via.

Mas estava tudo muito complicado naquela altura. Apesar do meu envolvimento e solidariedade, eu estava em desacordo com Nito Alves. Mas sabia que havia gente infiltrada no Comité Central e no Bureau Politico.

KG- Mas essa gente infiltrada pertencia a que ala? A de Nito Alves ou a que prestava informações a Neto?

LP- Era uma ala do MPLA. Por exemplo, ainda na mata, Iko Carreira era tido já como colaborador da PIDE, e que passa todas as informações das actividades do MPLA. Iko Carreira era antigo. Quando foi criticado por ter mandado a família para o lado dos tugas, houve na direcção do MPLA quem o defendesse porque auto-criticou-se. Mas então, você é terrorista, está do outro lado, como é que consegue negociar com quem você está a lutar para mandar a tua família sã e salva para Luanda? Para mandar os filhos para aqui, é porque negociou de alguma forma. Número um: porque já passava informações; número dois: havia outros dados do período da guerrilha que foram causa do aumento da clivagem; número três, faziam-nos crer que dentro do MPLA havia quem não estava interessado realmente na independência.

Não sei se sabe, mas em 1972, já não estava quase ninguém da guerrilha nas matas. A zona dos Dembos e do Piri, na Primeira Região, viviam uma autêntica tragédia. Todos os que sobreviveram fugiram para a Zâmbia. Em Cabinda, era entrar e sair em Sanga Mungo e Sanga Planície. Os guerrilheiros entravam, atacavam e fugiam. Pode ter a percepção do momento difícil que se vivia, o nível de corrupção que existia já nessa altura lendo o livro Maiombe, de Pepetela (Artur Pestana), que também foi guerrilheiro. Não gosto dele, pelo seu envolvimento em todo esse processo que culminou na morte de milhares de pessoas. Mas o que ele escreveu nesse litro, é o retrato de uma realidade que se vivia no MPLA. Até já se trocavam produtos da logística com mulheres no Congo. E mesmo quando nós chegamos, em 1974, aqueles mais-velhos que estavam lá, o Ngakumona (Daniel Damião Lourenço) por exemplo, quando nos viam a passar fome diziam: “Fica esperto jovem, o MPLA não ajuda ninguém. Rouba aí, apanha aí umas latas e vai trocar na sanzala. Ou então troca munições por cabrito”. 

É isso que nos ensinavam. Nunca vi coisa mais desorganizada na minha vida, que o que encontrei quando cheguei ao MPLA. Nunca vi e tive dificuldade de acreditar no que via.

KG- Para si, tudo aquilo que tinha ouvido antes sobre o MPLA e a luta de libertação, ou dos avanços da guerrilha estava a parecer mentira?

LP- Postos lá, nós mandávamos mensagens pela rádio para os nossos amigos não irem. Não valia a pena. Aquilo estava muito mal. Havia uma sala ampla, de cinco a seis metros quadrados, que pertencia a Agostinho Neto, com amontoados de documentos no chão, encostados à parede. Eles já se tinham esquecido da luta pela independência. Todos os documentos estavam amontoados e de forma atabalhoada. Perguntaram um dia quem sabia escrever a máquina, e eu e mais um outro jovem (o Rafael) respondemos que sabíamos. E chamaram-nos para organizar os documentos do “camarada presidente”.

Achei aquilo muito estranho.  Não me conheciam, não me tinham feito nenhuma entrevista para saber quem eu era, e já estavam a meter-me em casa de Agostinho Neto para arrumar documentos? – questionei-me. Disse que não tinha ido para lá para ser dactilografo e não aceitei. Mas estava tudo desorganizado. Nunca vi coisa igual. 

Quando chegamos ficamos um dia inteiro sem nada, no dia seguinte também não nos deram sequer comida, e depois os mais-velhos a aconselharem-nos a roubar aí umas latas. Os de Cabinda, como eram mais activos, já tinham rebentado aquilo, já tinham arranjado panelas e latas vazias para cozinhar. Nós, cheios de princípios, tínhamos dificuldades, porque achávamos que não devíamos mexer na logística dessa forma. 

Repito, nunca vi coisa tão desorganizada e reafirmo que eles não estavam preparados para a independência de Angola. Aqueles que faziam a luta de clandestinidade, os que estavam presos em Luanda e que incorporaram o MPLA, foram a salvação.

KG- Podemos entender que esse movimento, de Nito Alves, foi no fundo o choque entre aqueles que de facto fizeram a guerrilha na 1ª Região, contra aqueles que viviam na ‘boémia’ no Congo e noutros países?

Ora nem mais! Depois disso, o choque de Nito Alves com o grupo que estava em Luanda, na clandestinidade e que saiu das cadeias, foi terrível, porque eles estavam desorganizados e não tinham hipótese. Foi um choque muito grande, porque os que vinham das matas estavam muito desorganizados. Por outro lado, o nível cultural deles era muito baixo. Não estavam preparados para dirigir, para governar aquela sociedade já com grande evolução. Muitos saíram das sanzalas para a guerrilha ou para o Congo. Imagine que o comande Kiluange (César Augusto) a primeira vez que foi a casa do Zé Van-Dúnem ficou admirado com a água que saia da torneira. “Olha! Está a sair água do cano” – dizia ele. Portanto, ele saiu lá da lavra onde vivia, na mata, apanhava água no rio e não sabia que já havia água canalizada. Mas é compreensível porque eles fugiram em 1961, ficaram nas matas ou no Congo e não tinham acompanhado esse desenvolvimento. Não acompanharam a evolução das coisas. E foram esses indivíduos que se tornaram altos dirigentes do MPLA e do país, embaixadores, etc…

E depois, mesmo no Congo e na Zâmbia, muitos já tinham fugido. O major Kanhangulo (a maior parte dos angolanos nem sequer sabe quem foi e qual o seu nome próprio), a que deram até o nome à rua Direita de Luanda onde os meus avôs e pais nasceram (fico muito revoltado com isso) abandonou o MPLA em 1972. Ele disse: “Oh Agostinho Neto vocês são aldrabões, não há independência nenhuma, acabou… está aqui a tua arma”. Arranjou uma mulher zambiana e ficou a trabalhar na sua lavra, lá na Zâmbia. Quando ocorreu o 25 de Abril, de forma oportunista, regressou e como era de Malanje, falava bem uma língua local, o Songo, pegaram nele e mandaram-no para lá. Eu conheci bem a história dele, porque passei pela Zâmbia.

KG- Também conheci o major Kanhangulo, em Malanje, andava com uma viatura de marca Subaru de cor verde, que mal sabia conduzir e, provavelmente, terá sido essa a causa do acidente que o vitimou no centro da cidade…

LP-  Sim… e fez bem. Não se deseja a morte a ninguém, mas há uns que se justifica esse desabafo.

KG- Porquê? Também pertenceu ao grupo da matança?

LP- No 27 de Maio, ele foi à estação provincial da Rádio Nacional ameaçar os jornalistas ou locutores para meterem o sinal no ar, para se acompanhar o que se estava a passar em Luanda. Entrou na rádio eufórico a perguntar e a pedir: “Vocês não sabem o que se está a passar em Luanda? Liga… liga… meu filho”. Mais tarde, quando as coisas deram para o torto,  voltou lá com as tropas e prendeu todos os que ele próprio mandou ligar o sinal. Portanto, queria apagar o rasto daquilo que estava a ser considerado um crime, porque foi ele quem pediu para ligar. Pôs o pessoal na cadeia e uns tantos acabaram por ser assassinados.

KG- Mas qual foi o envolvimento de Luís dos Passos nesse grupo nuclear acusado de dirigir a tentativa de golpe de Estado?

LP- Depois desses acontecimentos e pela vivência que eu já tinha no MPLA (que estava muito mal), aconteceu outra coisa perigosa que me motivou a estar contra o Neto. Havia um comandante de nome Cantiga (Bonifácio Quinda), membro do Comité Central, lá do Leste, que foi apanhado em flagrante, a entregar material de guerra a UNITA. Era o chefe da logística lá. Eu era o responsável da logística em Malanje e sabia que para se ter acesso a esse material, era complicado. E ele foi apanhado a entregar material a UNITA.

As tropas reclamaram junto do comandante Dangereux (Paulo Mungongo). Ele incentivou-os a apanhá-lo, se era mesmo verdade. E foi apanhado em flagrante a entregar material a UNITA. Como estávamos em plena guerra e pela gravidade do crime, foi sentenciada a sua morte lá mesmo onde foi apanhado mas, depois, não se sabe bem porque razão, foi levado para a Lunda. Mas o Tchizainga (Celestino Bernardo) não o queria lá, porque era do Comité Central, era dirigente, não queria assumir essa responsabilidade. E então mandou-o para Luanda.

Contrariamente ao que todos esperávamos, posto em Luanda ele não foi sequer chamado, não foi repreendido, não foi preso, andou por aí e quando chegou o primeiro patenteamento, em 1 de Agosto de 1976, ele foi promovido com a patente mais alta das Forças Armadas, enquanto nós, que tínhamos caído várias vezes em emboscadas da UNITA cujos soldados usavam fardas iguais as nossas, compradas aos países do bloco socialista, não fomos contemplados. Eles usavam fardas iguais as nossas, mandavam-nos parar nalguns postos que montavam e afinal eram emboscadas, matavam-nos com disparos à queima-roupa. Isso revoltou-nos. Intrigou-nos. Como era possível um membro do Comité Central fornecer armas e o nosso fardamento à UNITA e contar ainda com a protecção de Neto, quando víamos os nossos companheiros e soldados a morrer à toa? Foi aí que eu decidi que não queria mais nada com Neto.

Certamente já leu as “13 Teses da Minha Defesa” de Nito Alves. Como é que era possível termos infiltrados no Comité Central do MPLA e com a protecção de Neto? Não podia estar em concordância com ele.

Por outro lado, eu sabia de outros actos anteriores, como o caso de Iko Carreira, que fornecia informações à PIDE. Quando em 1966 o grupo Cinfuegos, o primeiro, chegou à 1ª Região, ele disse na rádio, no programa “Angola Combatente”, que havia de fazer uma mensagem patriótica de encorajamento nos seguintes termos: “Aos meus camaradas, compatriotas e companheiros que acabam de chegar vitoriosamente à Primeira Região” e descreveu os nomes e os pseudónimos deles, desde o comandante Monstro Imortal (João Jacob Caetano) até ao último. Sabe para que era aquilo? Era para a PIDE apertar e prender pessoas, para saber quem eram os tais que chegaram à 1ª Região. E era assim que a PIDE conseguia depois decifrar todos os dados para localização dos guerrilheiros, dos familiares e dos amigos.  Uns diziam que isso era normal, mas não era nada normal porque envolvia a segurança das pessoas e do projecto de luta pela independência.

Segundo o que me contou Monstro Imortal, quando queriam fazer planos para engrossar a guerrilha no interior, ele era sempre o que dissuadia dizendo que “não valia a pena, porque se tentássemos passar por aqui vamos ter dificuldade no rio tal, se formos por ali vamos encontrar as tropas portuguesas,”. Enfim… colocava sempre empecilhos. Era sempre ele o que desencorajava, porque estava a fazer o trabalho dele, a impedir que a guerrilha se desenvolvesse. Então andam lá em guerras internas. E quando esse grupo conseguiu, com muito sacrifício, deixar o Congo, foram eles próprios que tiveram que preparar o seu material, as suas mochilas com os seus pertences, as armas e outras coisas. Sabe o que é que aconteceu quando chegaram ao Congo depois daquela travessia ao Congo Kinshasa até chegar a fronteira? Encontraram todo o material trocado. As pistolas já não estavam, havia armas sem culatras, já não encontraram os rádios transístores que serviam para ouvir música e notícias de vez em quando lá na mata, e os rádios de comunicação também não estavam. Em vez de encontrarem as botas que usavam naquela altura, feitas de lona e borracha preta iguais as que a Macambira (fábrica de calçado situada na Vila Alice), fazia em Luanda, encontraram quedes (ténis). Claro que, quando chegaram à 1ª Região já estavam todos rotos, alguns já estavam a caminhar descalços, e as fardas fraquinhas estavam profundamente desgastadas. Logicamente, o grupo ficou revoltado e não pretendia seguir mais, porque consideravam aquilo uma traição. Mas o Monstro Imortal como era muito lúcido e decidido, insistiu que deviam continuar e chegaram.

Mas isso era uma forma para desincentivá-los a seguir para a 1ª Região para continuar a guerrilha, porque estávamos já em 1966, a capacidade combatida estava a diminuir porque não se disponibilizava o material necessário de suporte. Por outro lado, a vontade, mesmo dos cubanos que já estavam lá porque o Che Guevara já havia passado pelo Congo e aconselhou que era melhor levar para as frentes de guerrilha armas de calibre português  (ocidental como se dizia), a G3 e F1, eles diziam para levar armas de origem oriental, que eram a AKA, a PPSh e a SH. Claro que depois não havia balas de reposição. E foi isso que aconteceu. Apesar de muitas dificuldades por que passaram, o grupo chegou vitoriosamente. Mas, passados dois a três meses já não tinham material, não tinham munições. E não tinham nenhuma outra fonte de abastecimento, porque nem a diferenciação de material permitia que se utilizasse, por exemplo, munições obtidas de acções contra as forças coloniais. 

KG- Portanto, qualquer abastecimento de reforço da logística tinha que sair do Congo?

LP- Sim! Quando o Monstro Imortal regressou para ir buscar mais material, mandaram-no para a Checoslováquia fazer um curso inter-armas, razão pela qual as heroínas assassinadas, (para mim heroínas sim e de todo o tamanho) insistiram que tinham que ir para a 1ª Região. E vou dizer-lhe que a Deolinda Rodrigues era uma combatente do nível de Nito Alves dentro do MPLA. Por isso é que ela seguiu nesse grupo e, infelizmente, por desgaste acabou por regressar e acabou assassinada pela FNLA.

E essas contradições continuaram e nós que estávamos lá conhecíamos e lavaram à nossa  desmotivação.

Diga só que  comandante, ou o mais simples borra botas que fosse, que manda guerrilheiros fazer uma marcha de centenas de quilómetros numa época chuvosa. Porquê que esse grupo, que constituiu o Esquadrão Kami, dirigido por Ingo (Benigno Vieira Lopes), com aproximadamente 200 integrantes, saiu numa época de chuvas torrenciais (Janeiro/Fevereiro)? Para quê? Tentaram justificar que foi a oportunidade. Mas a verdade é que foi tudo tão mal planificado, que até foi difícil atravessar um rio e muitos acabaram por morrer como morreram. Chegaram à 1ª Região apenas cerca de 27 e uns de tipóia, outros doentes e mal nutridos, profundamente desgastados, incluindo o próprio Ingo. Há quem diga que o Ingo foi culpado… mas eu não acho! O Ingo também nunca tinha comandado tropas. Quando viu a situação mal parada no rio Mbridje, autorizou que parte do grupo regressasse. E por falta de experiência, utilizaram os mesmos caminhos da ida, onde, claro efectivos da FNLA que já os tinham atacado na ida, estavam à espera e foram todos presos. De quem foi a culpa?

Agostinho Neto dizia, no Congresso de 1977, que terminaram a missão vitoriosamente. Mas isso é tudo mentira! O grupo foi derrotado. E a culpa foi de Agostinho Neto, como presidente do Comité Director, por ter aceite mandar, em época chuvosa, um grupo fazer aquela marcha tão perigosa. De todos os grupos ou esquadrões que tentaram chegar ao interior de Angola, só o Esquadrão Cinfuegos, de Monstro Imortal, conseguiu. Porque o Monstro era muito duro. Quando algum guerrilheiro estivesse já cansado e a desfalecer ele dizia: “Meu amigo ou te levantas, ou dou-te um tiro já aqui, porque se ficares serás feito prisioneiro e vais dar  as informações todas ao adversário. Se não continuas, prepara-te já, faz já as tuas orações e despede-te já”. E eles com medo, levantavam-se. Foi assim que chegaram todos à 1ª Região. O Ingo não tinha coragem para fazer isso.

KG- Luís dos Passos qual foi a cronologia do vosso exercício nos dias que antecederam ao 27 de Maio? 

LP- Quando eles viram que as coisas estavam a correr mal, primeiro organizaram a reunião do Comité Central (de 3 a 6 de Outubro de 1976) e suspenderam os membros do grupo. Criaram uma comissão de inquérito, que foi chefiada por José Eduardo dos Santos, para apurar se havia ou não fraccionismo. Mas essa comissão não apurou fraccionismo nenhum, porque não havia mesmo. E foi o grande mal de Nito Alves, porque ele deveria ter feito reuniões para concertação sobre o que se deveria fazer daí para frente. Mas ele insistiu no facto de já se ter considerado o grupo de fraccionista, e então foi o que aconteceu.

Nesse período conturbado antes da expulsão de Nito Alves, aconteceram antes as eleições para os órgãos do Poder Popular, um processo coordenado e controlado por ele, porque era o ministro da Administração Interna. Mas todos aqueles grupos que participaram na organização dessas eleições foram conotados como fraccionistas, e muitos até foram presos antes do 27 de Maio. A partir daí, o ambiente começou a ficar um pouco mais quente.

Para melhor enquadramento, é bom recordar que em Março, Fidel Castro visitou Angola, e embora eu não acreditasse, o grupo de Nito Alves pensava que ele viria acalmar um pouco o rumo que o ambiente político estava a tomar. Mas, Fidel Castro foi muito claro ao dizer que “defender Neto era defender a revolução”. Foi o mesmo que dar a conhecer a sua posição de defesa e de que, incondicionalmente, estava do lado de Neto. E não podia ser de outra forma, porque havia interesses económicos muito fortes por detrás dessa ‘simpatia’ por Neto.

KG- Há muito que se via no interior do MPLA questões muito evidentes de racismo, a contradição entre mestiços e negros (ou o favorecimento de uns), e isso também se tornou evidente na cooperação com Cuba e com a então União Soviética (Rússia). Por outro lado, parecia que havia ali uma certa disputa entre soviéticos, que tinham perdido o protagonismo, em relação aos cubanos que estavam a ficar com tudo?

LP- Ora nem mais. Os soviéticos, “roeram a corda” como se diz. A então União Soviética estava de facto a dar apoio ao Nito Alves e até incentivava. Mas não avançava com nota em concreto

KG- Mas quem fazia os contactos ou a ligação com os soviéticos. Era Nito Alves, Zé Van-Dúnem ou você?

LP- Era o Zé Van-Dúnem, mas quem os levou para fazerem esse contacto fui eu. Na Direcção Política das Forças Armadas eu tinha assessores soviéticos, um deles chamava-se Victor. Era quem eu levava sempre para falar com Zé Van-Dúnem e ele é quem dizia se estava bem, se estavam de acordo. Mas, de qualquer das formas, eles “roeram a corda”, não só ao nível da embaixada, como da direcção do Partido Comunista e dos Serviços de Segurança na União Soviética, que tinha como presidente Leonid Brejenev. Mas isso aconteceu porque eles também não tinham grande poder de influência aqui. Fidel Castro tinha mais interesses económicos e financeiros em Angola, e mais presença com homens e meios que protegiam o sistema imposto por Neto.

KG- Aliás, desmontaram as açucareiras para que passássemos a comprar o açúcar deles (cubano)…

LP- Eles desmontavam tudo para levar, como vimos depois aquando da sua retirada de Angola. Até sanitas das casas onde estavam instalados eles desmontaram e levaram. Carros então… nem se fala. Vimos tudo isso sair pelos nossos portos.

KG- Foi um ‘roubo’ de Estado para enfraquecer outro Estado (angolano) que diziam apoiar no quadro do internacionalismo?

LP- Sim! Para ficarmos dependentes deles. Para além do açúcar que passaram a vender-nos, havia também os diamantes que sacavam e até o negócio de droga que passava por Angola. E por isso, Fidel Castro mandou matar o general Arnaldo Ochoa, um dos militares mais condecorados da história desse país, acusado de ter praticado “crime de traição à pátria e à revolução”. Veja que naquela altura, as Forças Armadas até arroz recebiam de Cuba. Quase tudo vinha de lá: açúcar, arroz, feijão, tabaco e outras coisas. Eram grandes quantidades. De facto, nas frentes as tropas passaram a alimentar-se melhor. Aqui só tínhamos que dar a carne enlatada, que vinha da Bulgária, já que não havia tanta carne de frango.

KG- Mas  o que é que falhou então? Nito Alves, como se afirma, não tinha pretensão de fazer um golpe, não havia organização. Afinal, o que ocorreu mal então?

LP- Nito Alves não pretendia fazer nenhum golpe e eu já falei sobre isso noutras ocasiões. Não havia nada de golpistas nem de fraccionistas. Ele não planificou nenhum golpe de Estado. Nem sequer havia qualquer grupo organizado de fraccionistas. Isso não é verdade. E se tudo tivesse sido bem preparado para um golpe, o desfecho não seria favorável à Neto. E hoje há provas que confirmam, que muitos dos generais que passaram a reforma, quando tiveram conhecimento dessa manifestação de descontentamento, disseram claramente a Nito Alves que se “não for para um golpe não me meto”. Eu próprio também disse isso e defendi o mesmo. Mas depois que levei o Zé Van-Dúnem para falar com os soviéticos, envolvi-me e naquele dia foi preciso envolver-me ainda mais, até porque, de qualquer das formas, eu seria condenado. 

Mas eles não prepararam nenhum golpe tanto, nem sequer tinham um plano de recuo ou de fuga. Tudo era tido como fácil. Eles diziam que “mandavam na 1ª Região e na 9ª Brigada”. Para além da Guarda Presidencial, Agostinho Neto não tinha mais tropas organizadas do seu lado. Eles conseguiram dominar uma nossa unidade de carros BRDM de reconhecimento, que ficava no Cazenga, mais uma brigada de reconhecimento chefiada pelo José Maria (general que foi chefe do SINSE). Mas nós tínhamos lá o Chandoca que acabou por ser morto. Mas até ele, nesse dia não participou, porque tinha receio. Enfim… 

Por outro lado, as nossas tropas não estavam preparadas para um confronto directo contra os cubanos, nem isso estava previsto, apesar de eu ter feito o alerta de que os cubanos entrariam e dispostos a matar. E quando eles viraram as armas contra nós, não estávamos preparados para reagir.

É preciso ter em conta que a defesa, num caso de insurreição, é a morte e aquilo tinha que ser um contra-ataque constante. Eu próprio não acreditava nos homens que foram indicados por Zé Van-Dúnem. A marcha ou manifestação estava programada primeiro para o dia 25, mas  foi adiada sem data. O Bajé (Manuel Cassule), o homem que esteve comigo durante 13 anos nas matas dos Dembos, era o que tinha maior formação e ele insistiu para que não se fizessem as coisas daquela forma, porque não estávamos preparados. E por isso, inicialmente, a manifestação foi adiada e sem dada de realização. E quando tudo começou a acontecer, ele próprio também foi apanhado de surpresa e não participou. O Zé Van-Dúnem, influenciado por outros camaradas oficiais como o Veloso e outros, por exemplo, que diziam que se tinha que fazer mesmo “porque as massas estão cansadas de tirar as armas e esconder”, decidiram sair no dia 27 de Maio. E foi o descalabro. 

Foi criado um estado-maior especial – que não foi por iniciativa ou orientação nem de Nito Alves nem de Zé Van-Dúnem. Mas desde o primeiro instante que se estabeleceu que o exército só interviria se houvesse oposição armada, da parte das forças aliadas à Agostinho Neto. Não tinham grandes hipóteses, porque nesse domínio tínhamos tudo controlado. Hoje diz-se que a 9ª Brigada não tinha tanques. Não é verdade. Os tanques estavam para sair do Soyo para Luanda, se para tal fosse necessário. As unidades anti-áreas ZT1, que foram para o Lubango, também estavam disponíveis. Os BM-21 também estavam disponíveis. Portanto, todas as unidades que foram afastadas exactamente por causa disso, estavam dispostas a vir para Luanda. Se tivéssemos feito uma preparação melhor, teríamos o apoio dessas unidades, que tomariam Luanda se necessário, começando pelos sítios mais básicos. 

A 9ª Brigada estava do nosso lado, bem como a unidade que estava ali a Che Guevara, no Grafanil. Hoje tenho a felicidade de estar aqui, vivo, mas fui eu que mandei tomar essa unidade, porque é lá que estava a logística militar. Quem deveria executar essa intervenção era a unidade que tínhamos no Cazenga, onde estava o nosso amigo Chandoca, mas não foi. Outra unidade importante que se deveria tomar, era a Rádio. Quem tinha essa orientação era o capitão Diabo Negro – o comandante de uma unidade da Polícia Militar que funcionava em frente ao Instituto Makarenko, ao lado do local onde foi construída a sede do grupo César & Filhos – que deveria tomar também a unidade de comunicações, na baixa de Luanda, que funcionava no que chamávamos Obras Públicas (Serviços de Viação e Trânsito). Não tomou e quando eu perguntei o que se passava, disse que havia muita gente e muita confusão. Disse cá comigo, que também já havia “roído a corda”, estávamos mal.

Portanto, como referi, não estava nada organizado sequer para o recuo. Nada. Não havia nenhum plano alternativo. Como não estavam a pensar em golpe, acharam que a manifestação seria suficiente, razão pela qual, quando as populações desceram do Sambizanga e de outros bairros em direcção à zona do Palácio, alguns empunhando armas como era quase moda naquela altura – mas um exército não luta com apenas algumas armas – verificaram-se alguns disparos. Mas isso não funcionou, como foi o caso daqueles ataques que se fizeram aos comerciantes. 

KG- Só para clarificar: não houve tentativa de golpe de Estado mas sim uma sublevação, consequência de descontentamento, pela forma como já naquela altura o MPLA estava a gerir o país?

LP- Mas é isso mesmo. Por isso é que na Rádio Nacional, quando as pessoas foram rechaçadas a caminho do Palácio antes de mandarmos tomar a 7ª Esquadra, continuou-se a apelar para que as pessoas fossem para a Rádio, dizendo que a manifestação era lá. Eu próprio fui ao Sambizanga buscar população – coitados muitos acabaram por ser mortos – com dois autocarros voluntários para ir para à Rádio. Não foi a 9ª Brigada como tal. Eu é que disse a população para entrar nos autocarros e ficar em frente à Rádio. 

O mentiroso do Higino (Carneiro) disse que foi ele quem foi lá desfazer. É mentira! Ele não desfez nada porque não estava lá. Havia sim um cubano, o Moracem, mais o Onambwé (Henrique Santos), o José Maria que até estava a vir com um tanque  contra o meu carro e eu esquivei-me para não ser esmagado, já na segunda fase em que estávamos para tomar a Rádio. Só não retornei à Rádio, porque vi tropas cubanas chegar pelo lado da Escola Comandante Gika. Eu estava pronto para varrer aqueles dois. Caramba, como hoje me arrependo de não ter feito. Era o Delfim de Castro, outro que era comandante da Guarda Presidencial, mais uns dois tropas e já tinham feito razia à população. E eu fui ter com eles, peguei num BRDM e nuns tropas e disse: “Vamos lá tomar aquilo mas ninguém dispara. Eu vou ser o primeiro a perguntar o que é que se estava a passar”. Eu tinha bala na câmara e estava pronto, mas eles estavam com armas, mas viradas para cima e disse para mim mesmo, que não “podia matar esses gajos dessa forma”. Eu ainda perguntei quem eram, mas depois vi os tanques a vir e pensei cá comigo que a guerra havia de começar. Então dirigi-me  para o comando da 9ª Brigada para ver o que ia acontecer.

O que aconteceu é que, como não estava nada preparado para um golpe, na 9ª Brigada onde supostamente deveria estar a funcionar o estado-maior especial, não estava ninguém. E quem deveria dar o sinal para começar a ripostar os cubanos, porque nós tínhamos capacidade de fogo, tinha que ser o Bakalof (Ernesto Eduardo Gomes da Silva), ou o Monstro Imortal (João Jacob Caetano), apesar de não estar tão envolvido, ou Nito Alves. Mas nenhum deles estava lá. A tropa veio ter comigo a perguntar: “Comissário vamos fazer o quê?”. Eu respondi que não era da minha responsabilidade e para, via rádio, chamarem o Bakalof. Eu não podia decidir sobre o que poderia conduzir à uma guerra aqui em Luanda. Eu era apenas capitão, não podia assumir essa responsabilidade de comando.

Mas, como disse, quando a população recuou do Palácio onde estava programada a  realização de um comício de protesto, concentrou-se depois em frente à Rádio Nacional, na expectativa de ouvir alguém falar. E não houve ninguém. Quando demos por ela, os efectivos da Polícia Nacional estavam a disparar contra a população. Eu tomei conhecimento disso via rádio. E o Petroff foi quem comandou esse massacre contra pessoas desarmadas. Eu ouvi a comunicação num dos rádios que o Bula levava. Ouvi também o Onambwé a dizer: “Também estás com muito medo, estás com muito medo, não é assim?”. E ele respondia dizendo que “o povo estava a vir”. Então eu disse que tínhamos que eliminar essa força policial, que estava a vir na frente. Fomos até ao Palácio, corremos com a Polícia e com um BRDM e mais 10 homens tomamos a Rádio Nacional primeiro. Fui eu quem disse para irem para lá, não matar ninguém, não fazer feridos mas distribuir pontapés e chapadas e receber as armas aos policias que estavam a investir contra a população. Eles foram e cumpriram a missão. Se tivéssemos que matar, eles estariam mortos porque tínhamos meios, preparação e éramos especialistas nisso.

Enquanto decorria essa acção, seguimos para a 7ª Esquadra (ao lado do Jumbo) onde se encontrava o Petroff. Os efectivos da Polícia que estavam lá colocaram-se em debandada e esconderam-se naquelas casas que ficam na parte de trás da unidade. Os nossos efectivos, mais jovens, correram, acabaram por detê-los e foram levados para a 9ª Brigada. Postos lá, o Petroff, medroso – sabia que ele deu um tiro no próprio dedo? – rebolava no chão, supostamente com dores. Comunicaram, via rádio, que o comandante Petroff estava a passar mal. 

Meu caro se houvesse intenção de matar dirigentes, como dizem que nós é que matamos os comandantes, eu não autorizava que o Petroff fosse levado ao hospital. Fui eu quem autorizei.

KG- Quem autorizou a saída do Petroff daquela unidade foi você? Ele não saiu, como se disse, no quadro de uma encenação em que Mello Xavier apareceu com uma ambulância, vestindo uniforme de médico? 

LP- Sim, fui eu quem autorizou e quem o levou foi o meu motorista, no carro do Saydi Mingas. Fui eu, Luís dos Passos, quem autorizou que o Petroff fosse levado para um hospital. 

Continua…      

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