Não existe absolutamente nada de extraordinário no encontro do presidente de Angola com o presidente dos EUA. A tentativa de se exibir o referido encontro como o ápice de uma era épica para Angola e para a humanidade, espelha de forma dolorosa a pequenez do alcance político de que enfermam determinados interventores sociais que têm sido responsáveis pela desorientação da mundividência de uma larga franja da população.
Na última semana do mês de Novembro de 2023, a larga maioria dos órgãos de comunicação social e um determinado sector da sociedade civil com intervenção mediática forçaram os angolanos a vivenciar uma verdadeira ‘piracema’, pela forma tão extasiante com que os seus “fogos-de-artifício” pregaram e ainda têm pregado o evangelho sobre a deslocação do Presidente da República de Angola aos Estados Unidos da América (EUA). Tal como ocorre na piracema no verdadeiro sentido da palavra, os peixes, que neste caso representam o povo, foram literalmente forçados a nadar contra os efeitos de uma torrente de água que caiu dos céus na mesma semana, pois Washington converteu-se afinal no fiel depositário dos destinos e da salvação eterna dos angolanos.
Para qualquer estudante de Relações Internacionais, a palavra pragmatismo não deve ser estranha, principalmente quando nos referimos às relações entre Estados soberanos, ou entre dirigentes de países com autonomia de decisão, facto presente independentemente do contexto e das linhas ideológicas entre ambos, conforme exemplificam acontecimentos recentes.
Em 2017, os EUA, sob a liderança de Donald Trump, despoletaram uma guerra económica contra a China e, embora Trump tenha sido substituído por Joe Biden, a tensão entre os dois países agudizou-se ao ponto de ter atingido proporções bélicas. Ainda assim, durante este período de seis anos de “confronto” de baixa escala, ocorreram diversos encontros entre dignatários dos dois Estados, sendo o último representado pela deslocação do presidente chinês Xi Jinping aos EUA, exactamente em Novembro de 2023.
Em Março de 2016, o então presidente dos EUA Barack Obama visitou Cuba, 55 anos depois do corte de relações entre os dois Estados. É do conhecimento público que, há meio século que os EUA vêm perpetrando inúmeras acções que visam desestabilizar política e economicamente a República de Cuba. Contudo, Obama encontrou-se com o então líder cubano Raul Castro, com o fito de promover o restabelecimento das relações entre os dois países.
Depois de ter sido preso, em Abril de 2018, julgado e condenado, no âmbito de uma perseguição jurídica e política orquestrada pelo departamento de estado dos EUA com a actuação de procuradores e de um juiz treinados e auxiliados por agências de inteligência norte-americanas, o político brasileiro Lula da Silva, ainda no interior do furacão, em entrevista a jornalistas, proferiu sérias críticas contra o então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, pela adoração que aquele nutria pelos EUA. À época, Lula garantiu que, após a sua libertação da prisão, trabalharia afincadamente para preservar os interesses do seu país e do seu povo. Meses depois, em resultado da descoberta da cabala política e jurídica de que tinha sido vítima, Lula da Silva foi posto em liberdade e, em Outubro de 2022, vence as eleições. Em Fevereiro de 2023, o presidente brasileiro deslocou-se aos EUA onde teve um encontro com o presidente Joe Biden.
Como podemos constatar, não houve chuva de dragões na China com o encontro de Xi Jinping com Joe Biden; Cuba não deixou de ser um país socialista com a visita de Obama; e Lula da Silva não retirou o Brasil dos BRICS após a deslocação a Whasington, nem deixou de seguir a sua concepção ideológica sobre desenvolvimento e combate à pobreza, tampouco deixou de dirigir críticas à postura internacional do governo norte-americano e dos demais países do Ocidente.
Esta incursão serve para demonstrar que, ao contrário do que alguns sectores da imprensa e da sociedade angolana têm tentado transmitir, não existe absolutamente nada de extraordinário no encontro do presidente de Angola com o presidente dos EUA. A tentativa de se exibir o referido encontro como o ápice de uma era épica para Angola e para a humanidade, espelha de forma dolorosa a pequenez do alcance político de que enfermam determinados interventores sociais que têm sido responsáveis pela desorientação da mundividência de uma larga franja da população.
JES na Casa Branca: um traço da história para a memória
Em 16 de Setembro de 1991, o então presidente José Eduardo dos Santos realizou uma visita aos EUA, tendo sido recebido pelo então presidente George H. W. Bush, ocasião em que, dirigindo-se à imprensa, o estadista angolano anunciou detalhes sobre a realização das primeiras eleições multipartidárias em Angola, assim como sobre o processo de transição. Esta visita de Dos Santos ocorreu quatro meses após o fim do monopartidarismo e da realização dos Acordos de Bicesse, e três meses antes da dissolução oficial da URSS (a 26 de Dezembro de 1991). Como é do domínio público, as eleições de 1992 não trouxeram o calar das armas, e os EUA não cessaram o seu apoio à então UNITA militarista, que deu seguimento às acções armadas contra o governo angolano. Mesmo depois do estabelecimento de relações diplomáticas formais entre os EUA e Angola, em 1993, o apoio norte- americano a nível político e aos esforços de guerra de Jonas Savimbi não tinham terminado.
A geopolítica e a emergência dos BRICS: Angola no fogo cruzado
Com o curso da história, as relações entre os EUA e Angola conheceram grandes alterações, marcadas pelo posicionamento do então governo de Angola, que se pautava pela afirmação de uma diplomacia altiva, que diversas vezes fez vincar os interesses soberanos do país, mesmo em circunstâncias difíceis e sobre diversas formas de pressão que perduraram durante décadas, culminando, em 2015, com a orientação dada pelo Bank of America ao Rand Merchant Bank da África do Sul, que proibia a venda de dólares norte-americanos a Angola, assim como a retirada do mercado angolano dos bancos correspondentes dos países da UE, por orientação do Banco Central Europeu. As justificações foram diversas. Facto é que nem os conhecidos narco-estados foram alguma vez colocados sob contexto de embargo monetário como aquele a que Angola foi submetida. Estava instalada a crise financeira em Angola em resultado de uma combinação de factores. As divisas foram usadas como arma e o objectivo era claro: acelerar a saída de José Eduardo dos Santos do poder.
De 2008 a 2014, Angola conheceu o melhor momento económico da sua história. O país registava um crescimento económico acelerado, um processo massivo de construção de infra-estruturas, aumento do poder aquisitivo das famílias e uma estabilidade na variação da taxa de câmbio, que ficou popularmente conhecida como “câmbio de 10”. A análise das equações geopolíticas impõe a seguinte questão:
– Que factores relançaram o interesse dos EUA para com Angola depois de várias décadas de relativa equidistância?
A resposta a esta questão é simples, embora esteja estruturada em três momentos. Em primeiro lugar, temos de destacar o pânico com que as chancelarias, tanto norte-americana, quanto europeias, encararam o crescimento da cooperação da China com Angola e demais países africanos; o segundo momento foi o surgimento dos BRIC e a adesão da África do Sul. A este respeito, na publicação intitulada “Angola’s Strategic Co-operation with the BRIC Countries” (A Cooperação Estratégica de Angola com os BRICS), Carine Kiala & Nomfundo Ngwenya (2011), investigadores afectos ao The
South African Institute of International Affairs (SAIIA), no preâmbulo da referida pesquisa, citam o seguinte pronunciamento do então presidente José Eduardo dos Santos, proferido em Moscovo, em 2006 (três anos antes da fundação dos BRICS): “Hoje vivemos num mundo que tende a ser multipolar. Por esta razão, é essencial que reconheçamos o direito à diversidade e à diferença como base para a criação de relações internacionais mais justas e equilibradas para garantir a paz e a segurança global”. Mais adiante, Kiala & Ngwenya (2011) destacam as referências feitas por Dos Santos, no discurso sobre o Estado da Nação, em 15 de Outubro de 2010, que classificava “Brasil e a China como dois dos quatro parceiros estratégicos de desenvolvimento de Angola”, sendo que Portugal e os EUA eram os dois restantes. Para os autores, estava mais do que clara a aproximação de Angola aos BRICS. No terceiro e último estágio da análise das equações geoestratégicas, destacamos a guerra na Ucrânia e o regresso da Rússia a África.
A nova política externa de Angola: a viragem para o Ocidente
Em boa verdade, o presidente João Lourenço já esteve recentemente com o presidente norte-americano Joe Biden, em Dezembro de 2022, tendo sido recebido na Casa Branca à margem da Cimeira EUA- África. Que mudanças ocorreram desde então? Quando, em Março de 2022 (um mês depois do início da operação especial da Rússia na Ucrânia), a ONU colocou em votação uma resolução de repúdio contra a acção da Rússia, Angola absteve-se. Posição que dava a entender uma compreensão das motivações históricas, existenciais e humanitárias que estiveram na base da acção do antigo aliado. Entretanto, em Agosto de 2022, o presidente João Lourenço é oficialmente declarado vencedor das eleições decorridas em Angola naquele ano. Apenas a 9 de Setembro (6 dias antes da data da posse) os EUA enviaram a mensagem de felicitações ao governante angolano (expressando de forma tácita o reconhecimento dos resultados). No dia 15 de Setembro de 2022, durante o seu discurso no acto de tomada de posse para o segundo mandato, o chefe de Estado angolano emitiu uma posição crítica em relação à acção da Rússia na Ucrânia, mudando completamente a posição oficial de Angola, facto que viria a ser confirmado na votação da segunda resolução da ONU sobre a guerra na Ucrânia, a 12 de Outubro de 2022, em que Angola votou pela condenação da Rússia. A alteração da posição de Angola levantou diversos questionamentos sobre os seus fundamentos: este país teria alterado o seu sentido de voto como resultado da pressão exercida pelas potências ocidentais sobre os países que optaram pela abstenção na ONU, ou terá sido uma barganha pelo reconhecimento dos resultados das eleições por parte dos EUA? Facto é que, já na votação da terceira resolução da ONU sobre a situação na Ucrânia, a 24 de Fevereiro de 2023, Angola “regressou” à abstenção.
Volvidos aproximadamente doze meses desde o encontro anterior entre os dois governantes à margem da cimeira EUA-África, em Dezembro de 2022, as relações entre os dois presidentes teriam transitado de um jogo com características de soma zero, para um outro que se assemelha a um jogo de soma constante. Ou seja, se por um lado Joe Biden continua assombrado pela vertiginosa perda da esfera de influência dos EUA no norte de África e no Médio Oriente, com a entrada nos BRICS de gigantes regionais como a Arábia Saudita e o Irão, bem como de países estratégicos como o Egipto e a Etiópia, para além do descalabro do exército ucraniano e a resistência da economia da Rússia, que apesar dos milhares de sanções tem crescido surpreendentemente, chegando a ultrapassar as economias da França, Reino Unido e Alemanha, por outro lado, o presidente angolano tem enormes desafios a nível da política interna, mais concretamente no que concerne a necessidade de apresentação de resultados que reflictam a melhoria da situação económica da população.
O Corredor do Lobito e a nova corrida para África
A necessidade urgente de buscar financiamento para a reconstrução de Angola, depois de quase trinta anos de guerra civil, e a recusa das potências ocidentais em realizarem a prometida conferência de doadores para a reconstrução de Angola, direccionaram o governo angolano para uma intensa cooperação com a China. Angola necessitava de financiamento para a sua reconstrução, a China necessitava fundamentalmente de petróleo para a manutenção da sua indústria. Esta é uma das bases das relações entre os Estados. Relações assentes em interesses mútuos e na não-ingerência nos assuntos internos. Muitas infra-estruturas, muitos projectos e várias obras foram desenvolvidas em Angola com financiamento da China, nos moldes de acordos celebrados entre as duas partes. No entanto, não tanto por responsabilidade da parte chinesa, mas sim por culpa de “gestores” e intervenientes angolanos, alguns projectos não obtiveram os resultados previstos. Porém, constitui uma grave desonestidade histórica ignorar ou desclassificar a importância do financiamento cedido pela China a Angola num contexto extremamente desafiador e de total abandono em que este país se encontrava depois do fim da guerra. Em diversas partes de Angola, centralidades habitacionais e diversas estruturas construídas a partir da cooperação com a China constituem um dos maiores e melhores investimentos feitos pelo Estado angolano depois da independência nacional, com impacto directo e positivo na vida dos cidadãos.
A reabilitação dos Caminhos de Ferro de Benguela, no eixo Lobito-Luau, foi uma das acções desbravadoras que também resultou da cooperação com a China, num contexto em que a guerra civil tinha terminado fazia dois anos apenas. O risco representado pelas minas terrestres e o elevado estado de degradação em que se encontravam determinados troços da referida linha eram alguns dos desafios enfrentados, razão pela qual era espectável que tais factores constituíssem condições preferenciais para a gestão do Corredor do Lobito com a participação de empresas chinesas. Em 2019, o embaixador chinês em Angola, Gong Tao, expressou o interesse de empresas chinesas como a Harbour Engineearing Corporation, a mesma que procedeu à requalificação do Porto do Lobito, em 2013, para além de outras corporações especializadas em logística e transporte ferroviário e marítimo, na gestão desta infra-estrutura de importância capital para a dinamização da economia da região austral de África. Contudo, para surpresa de muitos, o ano de 2023 fica marcado também pelo anúncio de um compromisso assumido pelo presidente dos EUA, Joe Biden, e pela presidente da União Europeia, Ursula Von der Leyen, de apoiar a expansão do Corredor do Lobito por via da parceria PGI, tendo a concessão do mesmo sido entregue ao consórcio Lobito Atlantic Railway (LAR), que irá assegurar a sua gestão durante 30 anos. O que terá despertado finalmente o eixo Bruxelas/Washington para este recanto de África há muito abandonado pelo Ocidente? A resposta é lógica: a presença da China (como já o referimos), mas fundamentalmente o controlo do urânio proveniente da RDC, matéria-prima de capital importância, tanto para a Rússia, como para a NATO e para a China, principalmente depois da França ter perdido o controlo do Níger.
Pragmatismo ou cooptação?
Está lançado o claro e progressivo afastamento da política externa angolana de um modelo consubstanciado em trocas comerciais com todos os Estados e actores do sistema internacional, que privilegiava parcerias estratégicas com aliados históricos, bem como países com os quais reconhecia a possibilidade de estabelecer relações com base no princípio win win, a favor de uma aproximação cada vez mais estreita ao bloco ocidental, principalmente de uma dependência política excessiva dos EUA. Diante do exposto e olhando para a tradição das relações dos EUA com outros países (inclusive com
países europeus), cujas características tendem incontornavelmente para a subalternização destes em
relação ao hegemon americano, questionamos: que habilidades terão sido desenvolvidas pelo dirigismo político angolano com vista ao estabelecimento de relações que não se inclinem excessivamente em favor dos EUA e que preservem o sagrado interesse nacional? Esta aproximação deriva da formulação de uma política externa pragmática por parte de Angola, ou encerra uma evidente cooptação das elites políticas deste país pelos EUA?
O pragmatismo, enquanto doutrina da política externa de um Estado, reza que, dentre outros aspectos, o país “A” estabelece relações, trocas e acordos com o país “B”, assim como com o país “C”, buscando sempre a satisfação de interesses nacionais do primeiro, independentemente de divergências pontuais, ou mesmo que os países “B” e “C” sejam competidores, concorrentes ou mesmo rivais. Quando o país “A” intensifica a sua aproximação ao país “B” à custa do afastamento progressivo do país “C”, já não podemos afirmar que estamos perante uma opção pragmática, mas sim uma adesão. Aqui, mesmo o pressuposto da escolha soberana em relação ao posicionamento do país “A”, é colocado em questão, na medida em que o afastamento deste país em relação ao país “C” pode pressupor o efeito de uma cooptação do país “A” pelo poder de influência do país “B”.
Considerando que os interesses de cooptação de um país em relação a outro, para além do controlo político e económico, se estendem a componentes culturais e sociais, a americanização da sociedade angolana não deve ser um fenómeno susceptível de gerar estranheza, na medida em que, durante décadas, temos assistido de forma silenciosa à aniquilação de sentimentos nacionalistas, à pulverização da identidade cultural endógena, à promoção da alienação das massas, assim como à infiltração de Quintas-colunas em órgãos de comunicação social, e em outros sectores da sociedade civil. Geralmente, trata-se de um sector da sociedade angolana alérgico à história e às lições que ela oferece, daí a promoção da amnésia colectiva sobre os diversos crimes de guerra cometidos pelos EUA contra vários povos do mundo. Esta franja da sociedade angolana, ao mesmo tempo que se recusa a abordar, por exemplo, as consequências da presença de bases militares americanas e francesas em África, é adestrada a produzir preconceitos sobre a relação da Rússia e da China com países africanos. Falamos de um sector desprovido de concepções ideológicas, descomprometido com causas nobres e fundamentais para a humanidade, tal como ficou demonstrado com a indiferença de parte desta sociedade para com o genocídio do povo palestino, perpetrado pelo regime sionista com o patrocínio dos EUA. Logo, a americanização de uma sociedade com estas características não exigiria do Soft Power norte-americano uma mega operação de psicologia social de massas como ocorreu no leste europeu, por exemplo. Cá, aprende-se facilmente os preconceitos anti-China e anti-Rússia, amplamente difundidos pela máquina mediática do Ocidente.
A China e o xadrez internacional
Depois de mais de duas décadas de cooperação intensa com Angola, a China tem percebido alguma dissonância entre os seus interesses e o foco da política externa angolana, principalmente depois de 2018. O progressivo afastamento deste país africano do gigante asiático, também expresso na perda do controlo do Corredor do Lobito, pode estar na base da retirada o Embaixador chinês de Luanda por vários meses. Facto que, na tradição diplomática, encerra um significado de profundo impacto.
A China, no entanto, tem consolidado a sua posição económica no cenário global, alimentada pela manutenção de um processo de desenvolvimento interno, bem como pelo estabelecimento de trocas comerciais e investimentos em diversos países, incluindo nas potenciais ocidentais. A título de exemplo, a primeira linha de comboio de alta velocidade de Tel Aviv, Israel, foi construída com parceria da China; a China concedeu, em 2023, uma linha de crédito de 100 milhões de dólares para
financiamento de projectos hídricos em alguns países do Médio Oriente, tais como Arabia Saudita, Omã e Emirados Árabes Unidos; a China foi considerada o principal parceiro comercial da Alemanha durante sete anos consecutivos, sendo que em 2022 o comércio bilateral entre os dois países alcançou o seu ponto mais alto com o recorde de 298,9 milhões de euros; as trocas comerciais entre a China e o Reino Unido, no ano de 2022, atingiram a cifra de 111 mil milhões de libras, constituindo um aumento de 18,3% em comparação com 2021; a empresa chinesa Casil, depois de ter adquirido, em 2015, uma participação no aeroporto de Toulouse-Blagnac (França), no valor de 308 milhões de euros, em 2019, vendeu a referida participação ao grupo francês Eiffage pelo valor de 500 milhões de euros, tendo os asiáticos obtido um lucro de 200 milhões; por seu turno, a China mantem-se como um dos maiores credores dos EUA, possuindo 859,4 mil milhões de dólares em dívida do país norte-americano.
Estes exemplos servem de ilustração de como funciona o alto nível da geopolítica. Enquanto muitos angolanos têm sido programados para desenvolver uma aversão contra relações comerciais com a China, as mesmas potências ocidentais que, por via das suas máquinas mediáticas e das suas chancelarias, têm protagonizado este adestramento mental, possuem relações comercias activas com o gigante asiático, contribuindo assim para o desenvolvimento das respectivas economias. Se substituirmos a China pela Rússia, o resultado da equação será o mesmo. Apesar das centenas de pacotes de sanções aprovados contra a Rússia, as principais potências ocidentais não vão suspender na totalidade a aquisição de matérias-primas do país eslavo.
O que os EUA têm a oferecer hoje?
Quando os angolanos decidem idealizar os EUA como a chave para o seu desenvolvimento, ou como solução dos problemas económicos e sociais que o país atravessa, é fundamental que se questionem sobre o que os EUA podem oferecer a Angola hoje.
Os EUA continuam com o estatuto de uma superpotência militar e de um país desenvolvido. Porém, como é possível perceber, para além de terem surgido outros actores económicos e políticos nos últimos trinta anos, não só a economia, assim como o desenvolvimento tecnológico e mesmo militar norte-americanos, foram, nas últimas décadas, em alguns aspectos, superados pela China (com destaque para a tecnologia 5G) e pela Rússia (com destaque para a guerra electrónica e a produção de misseis supersónicos ultramodernos).
Para além de sermos testemunhas de sucessivas falências de instituições bancárias nos EUA nos últimos anos, que posteriormente têm de ser resgatadas pelo Estado (mostrando a falibilidade da tese da auto-regulação do mercado e de outros dogmas do fundamentalismo neoliberal), nas últimas décadas têm sido cada vez mais frequentes as paralisações do governo dos EUA, como consequência de lacunas no financiamento federal. De 1980 a 2019, ocorreram dez paralisações, tendo as três últimas ocorrido na segunda década do século XXI. Em Setembro de 2023, o governo Biden esteve prestes a sofrer uma paralisação, tendo sido salvo in extremis. De acordo com o portal Statista, a dívida pública dos EUA em 2023 é de 123,29% do PIB, contra os 121,31%, referente a 2022, ou seja, existe uma tendência crescente.
No que concerne o diagnóstico social, os EUA apresentam um dos piores exemplos de política social do mundo. Dados de 2022 revelam que quase 41 milhões de pessoas nos EUA vivem abaixo do limiar da pobreza. A taxa de pobreza nos EUA foi de 12,3%, em 2019, tendo atingido 12,6%, em 2022, apresentando uma tendência de crescimento. Um censo publicado em 2023 demonstra que nos EUA
582.462 pessoas não possuem abrigo, constituindo um aumento de 2.000 pessoas sem tecto desde o censo de 2020.
Ao concluirmos que a actual conjuntura económica e social de Angola requer as mais diversas fontes de valências e soluções, não é expectável que um país em vias de desenvolvimento adopte como modelo outro país que regista um processo de decadência contínua nas últimas décadas. No entanto, os EUA têm um outro activo vendível, que pode ser transaccionado com qualquer país da periferia global. Supondo que a especulação dos analistas da Economist Intelligence Unit, sobre a possibilidade do presidente angolano concorrer a um terceiro mandato seja credível, considerando os desafios externos e internos que tal facto constituiria, Joe Biden pode sim disponibilizar a sua influência junto das chancelarias ocidentais e mesmo a nível das forças partidárias angolanas, no sentido de tal objectivo se concretizar sem sobressaltos. A ser assim, podíamos afirmar que a aproximação de Angola aos EUA, visa também, ou fundamentalmente, um objectivo individual de busca de arranjos com vista à consolidação do poder político.
Angola e o modelo de desenvolvimento
Os desafios de Angola são sobejamente conhecidos. Porém, não será com a realização de uma viagem presidencial que nascerão de súbito as soluções dos problemas gritantes que o país atravessa, muitos dos quais causados por problemas de mentalidade, falta de orgulho nacional e febre de aculturação. O desenvolvimento de Angola não virá pela predisposição para a americanização social, consequência da exitosa doutrinação de Hollyhood e de décadas de absorção da cultura Pop, e que tem sido alimentada por indivíduos ou estruturas com poderes de influência mediática. Aspectos aparentemente triviais, mas que explicam as razões pelas quais a viagem de estado de um presidente da República aos EUA, um facto comum, seja apresentada como um evento transcendental que irá resolver todos os problemas económicos e sociais de Angola, e que finalmente trará a verdadeira revolução a este país. Não a revolução dos comunistas (que nunca existiram cá), mas sim a revolução capitalista. E parte da comunicação social angolana, bem como supostos intelectuais ofereceram às massas um relato acrítico sobre o significado concreto desta peregrinação à América, suas implicações internas e externas.
Nas últimas décadas, Angola tem-se resumido nisto: uma sociedade pulverizada na inconstância de propósitos, por isso vulnerável e maleável; um país “aideológico”, sem agenda, ou com uma agenda incerta. Mas o que alimenta o senso comum nesta “semana histórica para a nação angolana” (tal como ouvi dizer), é a realização do sonho de vida de alguns entusiastas do “excepcionalismo” americano, que é a transformação de Angola no 51o estado dos EUA, ou melhor, utilizando um termo bem colonial, seria a declaração de Angola como Província Ultramarina dos EUA.
Angola deve sim estabelecer relações diplomáticas, económicas e comerciais com os EUA, com a China, com a Rússia, com os países africanos, com os Estados membros da União Europeia e com os países do resto do mundo, buscando sempre preservar a sua soberania e satisfação dos interesses nacionais. Mas, quando nos referimos a interesses nacionais, no nosso caso concreto deve significar dar resposta urgente às necessidades das famílias, dos trabalhadores, dos cidadãos, dos empresários nacionais e das futuras gerações. Assim sendo, o modelo de desenvolvimento ideal para Angola deve sim ter em conta a criação de condições para a estruturação de um mercado interno funcional, que actue para o aumento da produção interna, que gere empregos e que dinamize a economia nacional. Porém, nenhum modelo de desenvolvimento é digno de assim ser chamado, quando asfixia a capacidade aquisitiva dos cidadãos e quando agrava as desigualdades sociais. O mundo tem exemplos de países e de histórias de equilíbrio entre o interesse privado e o público, exemplos que legaram tradições e Estados de Bem-Estar Social, que podem ser perfeitamente adaptados à realidade angolana. Os EUA não são, definitivamente, o lugar onde estes exemplos podem ser adquiridos. Em nome da verdade histórica, aguardarei até Novembro de 2024 para avaliar os resultados concretos desta viagem celebrizada.
“Ser inimigo dos EUA é perigoso, mas ser amigo é fatal”.
(Henry Kissinger)
Luanda, aos 30.11.2023
*Analista de Relações Internacionais