LLOYD AUSTIN EM ANGOLA: “OS ESTRANHOS QUE CONTROLAM ÁFRICA”

E A DEGENERAÇÃO DA DIÁSPORA NOS EUA

A cooperação no campo da defesa, que os EUA pretendem estabelecer com Angola e outros países africanos, deve ser analisada no quadro do profundo e poderosíssimo sistema de tráfico de influências que opera no circuito governativo norte-americano, o que muitas vezes se traduz na aquisição de equipamentos militares por parte de governos africanos, por via de uma “imposição” soft, inclusive através do endividamento destes países.

POR ORLANDO VICTOR MUHONGO*

A história da diáspora africana nos Estados Unidos da América (EUA) já foi rica de verdadeiros ícones, dignos descendentes do passado de lutas e glórias dos povos negros, filhos e descendentes da Mãe África, que mesmo em condições de extrema atrocidade a que estavam submetidos pelas sucessivas políticas de discriminação racial vigentes nos EUA, não se vergaram, lutaram contra todas as formas de injustiça, contra o racismo estrutural e institucional que vigora até hoje na América; lutaram contra a persistente colonização de África pelas potências europeias; lutaram contra a guerra no Vietnam; lutaram pelos direitos civis, lutaram pela igualdade; lutaram com a sua voz, com o seu carisma; lutaram com a sua inteligência; lutaram com as armas que possuíam; lutaram contra um inimigo tão poderoso que possui serviços secretos, polícia, exército, os tribunais, o sistema de justiça, as prisões, os bancos, o exército e as armas sob seu controlo.

Ainda assim, muitos afro-americanos lutaram contra esse sistema extremamente poderoso e não hesitaram, inclusive, em sacrificar a própria vida, legando às actuais gerações uma história de honra, de sacrifício, um exemplo que inspirou a própria luta pela emancipação do povo negro. Podíamos falar de Marcus Garvey, Web Du Bois, George Padmore, Thurgood Marshall, Martin Luther King Jr, Medgar Evers, Rosa Parks, Maya Angelou, Malcolm X. Porque não falar também de Afeni Shakur Davis, que, por integrar o grupo Panteras Negras, foi detida em 1971, grávida do filho Tupac Amaru Shakur. Estes, dentre outros cidadãos norte-americanos descendentes de África, sempre tiveram consciência das suas origens históricas, da condição de subjugação a que foram submetidos os povos negros em todo o mundo, e o que foi e continua a ser necessário fazer para a conquista da verdadeira emancipação política, social e económica. Para estes activistas e Pan-africanistas, nunca houve dúvidas quanto à identidade dos algozes das nações africanas e do seu povo na diáspora. 

É em virtude deste legado de sofrimento, lutas, revoluções e emancipação, que conecta África e os seus descendentes nas Américas e resto do mundo, que a expectativa normal de um africano, quando constata que um cidadão negro ascende a uma determinada função, num determinado país do qual é nacional, é que este honre esta história e o sacrifício daqueles que no passado derramaram suor e sangue em prol do resgate da dignidade de África e dos seus filhos na diáspora. O mesmo ocorre com outros grupos étnicos, como os Judeus, por exemplo, dentro da sua realidade histórica. Nunca um indivíduo de origem judaica (pelo menos que seja conhecido), ocupando funções relevantes nos EUA ou em algum país da Europa, terá colaborado para a subalternização do Estado de Israel, ou terá atentado contra os interesses nacionais desse país.

No caso da relação da diáspora africana com os países do continente berço, não se podia esperar o contrário. Não se está aqui a afirmar que, o que se espera de um afro-americano no exercício de uma determinada função governamental nos EUA, inclua o continente africano no orçamento daquele país, nem que traga para cá a comida para alimentar os nossos pobres. Não! 

Espera-se que esse descendente africano, detentor de um determinado cargo num país americano, europeu ou asiático, não se preste ao papel de “neo-Capataz”, ou Capitão do Mato a serviço da Casa Grande. Mas, isto é apenas mera expectativa, pois, na realidade, a história vem revelando decepções.

Nas vestes de secretário de Estado do Governo de George W. Bush, o afro-americano Colin Powell, durante uma reunião do Conselho de Segurança da ONU, a 5 de Fevereiro de 2003, afirmou possuir provas de que Saddam Hussein possuía armas químicas, chegando a exibir um frasco com um pó branco que disse ser antraz. O final desta história é do conhecimento de todo o mundo. Na sua edição online de 19 de Outubro de 2021, o Los Angeles Timespublicou um artigo com o título: “Quão ultrajantes foram as mentiras de Colin Powell sobre o Iraque para a ONU?”. O resultado foi “a perda de 4.500 militares dos EUA e o massacre de cerca de 200.000 civis iraquianos” – conclui o periódico.  

Em 2003, enquanto servia como conselheira de Segurança no Governo de George W. Bush, Condoleezza Rice gerou divisões no seio da diáspora na América, chegando a ser chamada de “traidora da raça”, por alguns concidadãos que consideram que ela não apoiou as causas afro-americanas. Mas, um dos feitos mais decepcionantes desta afro-americana, foi o facto de, no mesmo ano, ter apoiado vivamente o ataque dos EUA contra o Iraque, ao ponto de ter submetido um editorial ao The New York Times, em que considerava mentira as declarações do Governo iraquiano submetidas à ONU, dando nota de que não possuía armas de destruição em massa.

Quando, na eleição presidencial dos EUA, em Novembro de 2008, Barack Obama foi eleito primeiro presidente afro-americano na história daquele país, o sentimento de júbilo que tomou mentes e corações de muitos africanos, órfãos do tão esperado “messias” que lhes resgataria o orgulho, não tardou em converter-se na mais profunda decepção, não só pelo cinismo com que Obama tratou o continente africano, como também pela injusta e hipócrita maquilhagem feita pelo comité Nobel, que lhe atribuiu um prémio da paz. Ainda de acordo com o Los Angeles Times, edição online de 13 de Janeiro de 2017, durante os oito anos de mandato, o governo Obama “lançou ataques aéreos ou ataques militares em pelo menos sete países: Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia, Iémen, Somália e Paquistão”. Em Julho de 2013, acrescenta a mesma fonte, citando a Casa Branca, os actos de guerra do Governo do primeiro presidente negro dos EUA resultaram na morte de “164 civis em 473 ataques aéreos”, tendo na maioria destes ataques o envolvimento de drones.  

O quadro da actuação, ou o papel assumido por afro-americanos ao serviço do Governo dos EUA, leva-nos então a Lloyd Austin, general aposentado, actual Secretário de Defesa norte-americano, que esteve de visita a Angola no dia 27 de Setembro de 2023, período no qual prestou declarações que, dentre outros aspectos simbólicos e semânticos, reúnem um conjunto de frases feitas, bem como os típicos lugares comuns em que  desembocam os previsíveis discursos de representantes do Ocidente dirigidos aos africanos.

Entre as diversas pérolas proferidas por Austin, ganhou destaque a afirmação segundo a qual “África merece mais do que estranhos que tentam tomar o controlo deste continente. E África merece mais do que autocratas a vender armas baratas, a empurrar forças mercenárias como o grupo Wagner ou a privar de cereais pessoas famintas de todo o mundo”. Tal afirmação faz, como é óbvio, referência à relação da Rússia com os países do continente africano. Na acepção de Austin, os estranhos seriam os russos, uns estranhos eslavos que pretendem tomar o controlo de África. É lógico que se trata de um pronunciamento que seria cómico, se não fosse tão absurdo. 

Enquanto a visita de Austin foi embalada pela celebração dos trinta anos de relações entre os EUA e Angola, as relações diplomáticas entre Angola e a Rússia remontam à era soviética e existem há 48 anos. Será necessário indagar, por que motivo os EUA apenas em 1993 reconheceram a independência de Angola? Não é segredo que, enquanto a Rússia faz parte da história da luta pela emancipação de Angola, os EUA investiram décadas e milhões de dólares no alastramento da guerra civil que dilacerou este país. 

Em relação aos autocratas, nenhum outro país do mundo, ao longo da sua história, patrocinou a ascensão de tantos “autocratas”, na América-latina, em África e no Médio Oriente, como o fez os EUA, durante e depois da Guerra Fria. Em relação aos cereais, África necessita de governantes com capacidade de explorar os solos aráveis e os recursos hídricos no sentido de se efectivar a tão-esperada revolução agrícola e a autossuficiência alimentar.   

Lloyd Austin manifestou também, a disponibilidade de Washington em cooperar com Luanda no domínio da defesa”. Cooperação no domínio da defesa pressupõe, entre outros aspectos, a venda de armamento e outro equipamento militar americano a Angola. O que a maioria dos angolanos desconhece, é que, antes de ter sido indicado para o cargo de secretário de Defesa do Governo Biden, Austin era membro do Conselho de Administração da Raytheon Company (um consórcio norte-americano do ramo da venda de armamento e equipamento eletrônico para uso militar, considerado o maior produtor de mísseis guiados). 

De acordo com documentos divulgados pela Bloomberg, a que o Inside Defense teve acesso, Austin recebeu um pagamento avaliado entre US$ 750 mil a US$ 1,7 milhão com a alienação das suas acções na Raytheon, em virtude do cargo assumido no Governo. Ainda de acordo com a Inside Defense, citando declarações da Raytheon, a remuneração recebida por Lloyd Austin foi de US$ 380.000 em 2016; US$ 338.000 em 2017; US$ 336.000 em 2018; e US$ 351.000 em 2019.  

A Raytheon é considerada uma das cinco empresas que mais investe no lobby do sector de defesa, tendo gastado, em 2020, aproximadamente US$ 11 milhões em lobby (segundo a Open Secrets). A ser verdade que a indicação de Lloyd Austin ao cargo de secretário de Defesa foi resultado do lobismo da Raytheon, outro dado tão verdadeiro, quanto chocante, é o facto de, antes do seu ingresso no Governo Biden, Austin ter trabalhado com Antony Blinken, na altura vinculado à empresa Pine Island Capital Partners (uma empresa de capital privado que investe em empresas de defesa). Antony Blinken é nada mais, nada menos, que o secretário de Estado do Governo de Joe Biden. Logo, a cooperação no campo da defesa, que os EUA pretendem estabelecer com Angola e outros países africanos, deve ser analisada no quadro do profundo e poderosíssimo sistema de tráfico de influências que opera no circuito governativo norte-americano, o que muitas vezes se traduz na aquisição de equipamentos militares por parte de governos africanos, por via de uma “imposição” soft, inclusive através do endividamento destes países.      

A outra pérola que saltou dos pronunciamentos de Austin, foi a tese obamista e demagógica, de que África necessita de instituições fortes e não de líderes fortes. Este lema, deslocado historicamente, porém, premeditado, mas que encontra anuência e aplausos em muitos ouvidos angolanos, encerra em si uma flagrante demonstração de ignorância sobre os processos evolutivos dos Estados africanos, perdidos nas incertezas do transplante de experiências ocidentais em contexto de modernidade tardia. Quando, nos EUA, são exaltados os nomes de George Washington ou de Abraham Lincoln, os americanos fazem-no pelo papel decisivo que estas figuras desempenharam em momentos determinantes da história desse país. O mesmo se pode dizer de Charles de Gaulle, para a França, dentre outros exemplos. Logo, é no mínimo estranho que um estudante de Harvard defenda e acredite que as instituições fortes nasçam como cogumelos, em países com 50 ou 60 anos de independência, mas que têm atravessado processos turbulentos de consolidação de modelos políticos e sociais, muitas vezes com a interferência negativa dos mesmos que exigem a extinção dos homens fortes e a emergência urgente de instituições fortes. É claro que esta exigência absurda e demagógica é feita apenas aos países africanos, revelando a forma desrespeitosa com que a elite emergente afro-americana trata o continente berço. 

As inúmeras monarquias e teocracias do Médio Oriente, com quem os EUA possui alianças, são dirigidas por homens fortes que privilegiam o interesse nacional em todas as vertentes. Portanto, as nações do continente africano, que não são homogéneas e que são tão diversas quanto os processos históricos e culturais que as envolvem, necessitam, cada uma de acordo com as suas especificidades, de lideranças fortes, que conduzam os países ao estágio de evolução social, económica, política e científica, de que necessitam para o bem-estar do seu povo. 

Àqueles que pretendem continuar a dominar os nossos recursos, interessa-lhes exactamente que África tenha líderes fracos no actual estágio de evolução dos Estados, pois, deste modo, terão maior facilidade de exercer o seu domínio, uma vez que as instituições não são feitas de paredes de tijolo. As instituições são feitas de pessoas. Nada mais apetecível para o dominador, do que instituições compostas por indivíduos sem compromisso patriótico, mercantilistas, ou mesmo pessoas passíveis de algum tipo de chantagem, por via da qual são capazes de entregar tudo que lhes é exigido.

É lógico que, desde a crise financeira de 2008, os EUA têm conhecido um processo de declino económico e perda de influência que afecta a manutenção da sua hegemonia. Este processo, que se tem acelerado com o crescimento vertiginoso da China, e agora com os efeitos inversos das sanções contra a Rússia, encareceu o custo da energia e das matérias-primas para as indústrias do Ocidente, factores que precipitaram o retorno norte-americano ao continente africano, espaço já frequentado pela China nas últimas décadas, e aonde a Rússia decidiu reestabelecer as suas relações históricas. 

Os países africanos podem e devem manter relações comerciais, tanto com os EUA, como com a China e com a Rússia. Os três países têm interesses no continente africano, tal como os Estados de África também devem ter interesses para com as referidas potências. No entanto, os modelos de relações de cada uma destas potências para com as nações africanas estão fartamente registados na história. Diante desta disputa por recursos minerais, por espaço de influência e por expansão de mercado, exige-se sabedoria aos estadistas africanos, no sentido de não permitirem que os países do continente percam a última carruagem em direcção ao mundo multipolar. A configuração geopolítica mudou. O centro económico e financeiro da nova ordem não está localizado na América. 

Luanda, aos 28 de Setembro de 2023

*Analista de Relações Internacionais

One Comment
  1. Excelente artigo!…
    Uma chapelada para o autor e para o Kesongo, que nos possibilitam a leitura de pérolas como esta.
    Muito obrigado.

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