Ucrânia. O outro lado da guerra e dos efeitos colaterais das sanções do Ocidente à Rússia

A intervenção militar russa não é uma guerra, é uma intervenção militar – como as da NATO na Jugoslávia, no Iraque, na Líbia e na Síria também se chamavam – que ocorre ao fim de 8 anos de guerra civil na Ucrânia

Por Alexandre Guerreiro*

Ontem, na SIC Notícias, o tempo foi curto, mas ainda consegui tocar em alguns aspectos cumpridos os primeiros 100 dias do início da intervenção militar da Rússia na Ucrânia.

Consegui particularizar dois aspectos:

1- A Rússia está a resistir às sanções impostas pelo Ocidente.

Lembram-se quando ouvimos de Joe Biden que “a Rússia vai sofrer sanções nunca antes vistas”?

Lembram-se quando diziam que a economia russa ia colapsar e iam acabar os bens essenciais?

Lembram-se quando previam que a Rússia só tivesse dinheiro para “10 dias de guerra”?

Já repararam que a UE vai no “sexto pacote de sanções”?

Já se aperceberam que Biden agora vai fornecer milhões e milhões em armas para a Ucrânia?

Sabem o porquê de tudo isto? Porque as sanções não funcionam. Mas muitos achavam que sim. Enganaram-se. Não funcionam e as previsões de catástrofe da Rússia estão a ser mudadas para previsões mais realistas, incluindo crescimento. 

E as sanções não só não funcionam como estão a produzir efeitos devastadores no Ocidente que as aplica. A Estónia está com uma inflação de 19%. A Lituânia e a Letónia não andam longe. Portugal já se aproxima dos 10%.

Quando eu disse isto ontem, o pivô respondeu-me que não se espera que as sanções produzam efeitos no curto prazo.

Isto não é verdade. Se se tivesse esperança de ter efeitos no longo prazo, a UE não iria já no sexto pacote de sanções. Os EUA esperariam mais alguns meses até passarem à medida desesperada de fornecimento de armamento.

As sanções não funcionam e nós, na UE, estamos e vamos sentir ainda mais as consequências disso.

Certo, a inflação não é consequência total da realidade na Ucrânia. De facto, a UE disfarçou a crise do COVID imprimindo mais moeda do que aquela que havia e o resultado está à vista: inflação, aumento dos preços e escassez dos bens (que é diferente da inflação) e a incapacidade sobre como evitar a crise que ainda não chegou de vez.

Mas a situação na Ucrânia e as sanções à Rússia só aceleram e agravam esta situação crítica. A UE está ligada às máquinas e boicota a energia russa sem ter alternativa e sem medir o impacto desta decisão que vai provocar um aumento do valor do barril.

No final, a Europa vai pagar muito mais pelo mesmo, Putin vai receber mais dinheiro por menos petróleo e o excedente ainda vai fornecer a terceiros.

2- A Rússia está a cumprir os objectivos a que se propôs inicialmente.

É cansativo repetir várias vezes conceitos básicos e que as pessoas não querem aceitar por ignorância, por desconhecimento (diferente da ignorância) ou por preconceito.

A intervenção militar russa não é uma guerra, é uma intervenção militar – como as da NATO na Jugoslávia, no Iraque, na Líbia e na Síria também se chamavam – que ocorre ao fim de 8 anos de guerra civil na Ucrânia.

A Rússia privou a Ucrânia de efectivos militares e de armas a um nível expressivo, pelo que o objectivo de desarmamento foi conseguido. Se no Ocidente fornecem mais equipamento, isso vai ter um custo para a Ucrânia que vamos ver como é que o vai pagar. Não há almoços grátis, lembram-se?

A Rússia está a “desnazificar” a Ucrânia

Respeito imenso o meu colega de painel pelo elevado nível cívico e académico que tem, por ter posições baseadas no que o mesmo considera como sendo factos – embora sem suporte documental -, mas com quem não concordo.

O problema é que quando eu disse ontem que a Rússia estava a desnazificar a Ucrânia, o meu colega disse que não concorda porque o Governo não tem nazis e Zelensky é até judeu.

Já expliquei diversas vezes que não é uma questão de o Governo ucraniano ter nazis, é uma questão de se aproveitar de neonazis e de legalizá-los inserindo-os no aparelho de Estado e na estrutura militar. Além de existirem alianças neonazis informais que incluem membros da Rada.

Neste aspecto, é preciso perceber o que é a “nazificação” da Ucrânia. E Putin está a eliminar e a deter neonazis do aparelho de Estado ucraniano. Aliás, já foram encontrados mais neonazis ucranianos do que foram encontradas armas de destruição maciça no Iraque.

Outro objectivo é a libertação do Donbass. Basta ver os mapas e o progresso é visível, só não vê quem não quer. Agora, há um pormenor: a Rússia pode bombardear e desfazer cidades inteiras se quiser e em dois dias, mas não o faz. Não o faz porque existe o interesse de não criar inimigos civis e alimentar hostilidades paralelas com os habitantes de territórios com os quais se pretende alimentar uma proximidade futura.

No final, ficou apenas por abordar um outro ponto que destaco nestes 100 dias de intervenção militar: a derrota da comunicação social ocidental.

Censura a fontes russas, selectividade de informação que convém para alimentar narrativas, ausência de pluralismo, indisponibilidade para compreender conflitos e jornalistas que se confundem com activistas e confundem convicções com factos e preconceitos pessoais com realidade documentada.

Desinformação banalizada a todos os níveis. Putin tem várias doenças; a Rússia não tem mísseis; nem dinheiro há na Rússia para pagar a médicos; o ministro da Defesa já teve ataques cardíacos, morreu e ressuscitou; a Rússia está isolada internacionalmente; as sanções estão a devastar a Rússia; etc… etc.

Um dos meus preferidos é o de Putin querer conquistar a Ucrânia em 3 dias e Kiev em 3 ou 15. E não só falhou como ainda foi humilhado! À escolha do freguês. Kiev nunca foi um objectivo, foi um meio para atingir um fim. Mas aqui ainda existe quem não queira dar o braço a torcer e insiste nesta conversa para não reconhecer o erro.

Outra boa ouvi eu em estúdio por parte de alguém que não esconde a amargura com a Rússia: “os chechenos de Kadyrov são piores que o Estado Islâmico, cortam cabeças e cortam braços às pessoas”. Dispensa comentários.

É muito difícil viver no Ocidente por estes dias. A lavagem cerebral é quase total. A única coisa que me sossega – e, curiosa e paradoxalmente, também me desassossega – é que o tempo vai tratar de abrir os olhos a muita gente. 

*Agente do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED-Portugal).

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