Sobre desenvolvimento sustentável

Na contramão, não se abordam os muitos problemas derivados da “civilização industrial” e os seus padrões de produção e de consumo, da “modernização” como expansão do capital através do crescimento económico com base na extracção de recursos naturais, e da implantação de indústrias poluentes e de alto risco.

Por Cesaltina Abreu*

“Falar em desenvolvimento sustentável (DS) tornou-se prática comum, mas com vários sentidos e intenções. Governantes, administradores, políticos, empresários, e profissionais relacionados, recorrem ao termo para amenizar acções de degradação do ambiente e garantir metas preconizadas pelo crescimento económico. Há uma noção de ‘contradição’, inerente à sua concepção e aplicabilidade, que tem sido usada para ocultar interesses e premissas do modo capitalista de pensar: assegurar maior lucratividade, sem resistências, nem custos sociais e ambientais, não por acaso designados ‘externalidades negativas’” (Redclift, 1994) 

A quem interessa o desenvolvimento sustentável? É possível alcançá-lo sem alterar condicionamentos estruturais nas relações de troca desiguais entre países e regiões? Como conciliar os conflitos existentes entre “Norte” e “Sul” na concepção e uso da Natureza comum a todos? 

Defende-se participação da sociedade em projectos e programas relacionados com a conservação ambiental, mas despreza-se a operacionalização dessa dimensão tão relevante, porquanto pressupõe um autêntico envolvimento da população. Na prática, apenas as dimensões económica e ecológica são explicitadas na aplicação do conceito. Outro problema, é a impossibilidade dessas dimensões se articularem por terem lógicas ou racionalidades específicas. A hegemonia da racionalidade instrumental a favor do Estado e do Mercado – como entidades dominantes – desfavorece os interesses da Comunidade e da relação solidária com a Natureza. 

A “sustentabilidade” do “desenvolvimento social” só se torna possível se interesses e expectativas do Estado, do Mercado e da Comunidade fossem equiparados. Tempos atrás, o conceito de crescimento económico era percebido em oposição ao conceito de desenvolvimento social. Com a vulgarização do conceito de desenvolvimento sustentável essa distinção desapareceu e, em termos teóricos e práticos, em lugar de solucionar, passou a ocultar a contradição entre crescimento económico e o desenvolvimento social. Ou seja, em vez de operar uma aproximação entre os dois conceitos, acabou invalidando o confronto entre as duas tendências contraditórias. 

A relação população–ambiente–‘desenvolvimento’ é problemática de vários ângulos, como a concentração populacional e a carga sobre o espaço, o ordenamento do território e a visão de futuro, a relação entre sistemas urbanos e rurais, as questões de integração regional, etc. Por outro lado, não há critérios para avaliar e estabelecer o grau de responsabilidade dos países nos problemas ambientais, devido à diversidade de modelos de produção e de consumo existentes. 

Importa lembrar os discursos das potencias industriais, mais poluidoras, mais produtoras de lixo e de desperdício, e com comportamentos mais predadores, responsabilizando os países ditos “em desenvolvimento” pelos problemas relacionados com o crescimento demográfico e a pobreza, como o desmatamento, a desertificação, a escassez de água vs enchentes, inundações, deslizamentos, entre outros. Contudo, na contramão, não se abordam os muitos problemas derivados da “civilização industrial” e os seus padrões de produção e de consumo, da “modernização” como expansão do capital através do crescimento económico com base na extracção de recursos naturais, e da implantação de indústrias poluentes e de alto risco, sem considerar os impactos sociais e ambientais (saúde, esgotamento de recursos, etc.). 

A redistribuição de indústrias pelo mundo, a que se vem assistindo, pode resultar da adopção de leis ambientais mais rigorosas nos países industrializados, a par de factores como redução dos custos de mão-de-obra e matérias primas, bem como de incentivos fiscais “oferecidos” pelos governos de países “atrasados”, ‘para atrair investidores’, para além da sua legislação mais “flexível” e “acolhedora”. 

O conceito de Desenvolvimento Sustentável do Relatório Brundtland (1987) 

“Talvez a tarefa mais urgente, hoje, seja persuadir as nações sobre a necessidade de retornar ao multilaterismo”, a um sistema económico de cooperação. Os desafios de encontrar os caminhos para o Desenvolvimento Sustentável devem fornecer o ímpeto – na verdade, o imperativo – para uma busca renovada de soluções multilaterais e um sistema económico internacional reestruturado para a cooperação. Os desafios atravessam as fronteiras da soberania nacional, das estratégias limitadas ao ganho económico, e da separação disciplinar da ciência”1. 

O desenvolvimento sustentável é concebido em 3 dimensões: ecológica, económica e sociopolítica. Uma análise crítica das 3 dimensões pode levar a uma definição operacional para os interesses de sociedades mais pobres no cenário geopolítico actual. Na dimensão sociopolítica há 2 tipos de poderes: (a) o poder de grupos e classes sociais em estabelecer relações de dominação, e (b) o poder sobre os recursos naturais e a relação entre conhecimento e poder sobre a natureza. 

Essa distinção é importante devido às relações desiguais de dominação entre ricos e pobres, e aos conhecimentos que as populações “autóctones” têm sobre os “seus” recursos naturais. Compreender o poder sobre esse conhecimento pode ser a chave para um desenvolvimento realmente local e sustentável. Também, porque o poder universal (do capitalismo e tecnológico) sempre gerou resistências e oposições que, ignoradas no passado, ressurgiram e confrontaram-se com o poder central e hegemónico. Isto revela uma oportunidade à participação da sociedade na busca de alternativas à globalização hegemónica e desigual. 

O conhecimento das comunidades locais sobre a natureza tem sido ignorado pela hegemonia do conhecimento científico racional, universal e instrumental, embora a utilização desse conhecimento local seja fundamental para a construção de um novo paradigma científico subjacente ao desenvolvimento endógeno, o processo da mobilização dos recursos internos de cada território, desde os recursos naturais e matérias-primas, às competências, aos conhecimentos e à capacidade de inovação, às especificidades das produções locais (agricultura, florestas, artesanato, indústria), e a factores como condições climatéricas, património natural e cultural, etc. 

Uma Estratégia de Desenvolvimento Sustentável assenta no princípio de garantir que as pessoas desenvolvam os conhecimentos, os valores e as habilidades para participar das decisões sobre o que fazer e como fazer, individual e colectivamente, local e globalmente, para melhorar a qualidade de vida, respeitando o Planeta, e sem comprometer o Futuro. 

Para as sociedades africanas, como expresso no UBUNTU, o conceito de cultura inclui valores que enfatizam: 

(1) a importância da comunidade sobre o indivíduo;
(2) uma visão cíclica e não unilinear de “desenvolvimento” (uma vida melhor);
(3) as noções de “estar” e “ser”, em vez de, “ter” ou “fazer”;
(4) uma noção de harmonia com, e não de dominação – ou destruição – da natureza. 

UBUNTU é simultaneamente uma Filosofia, uma Ética Social e um Modo de Vida baseado no Respeito pelo Outro. Cosmovisão de Mundo que articula o Divino, a Comunidade e a Natureza, e assenta em valores civilizatórios, entre os quais: 

  • ➢  A ancestralidade (a consciência ecológica dos antepassados);
  • ➢  A circularidade (equidistância objectivada no Ondjango, na busca de     consensos);
  • ➢  A oralidade (conhecimentos e experiências passados de geração em geração);
  • ➢  O comunitarismo e o cooperativismo (os lucros gerados para serem redistribuídos, partilhados, sem que ninguém seja explorado no processo de produção);
  • ➢  A memória (a importância do que fomos, de onde viemos, para o que somos hoje e o que pretendemos ser no futuro, individual e colectivamente);
  • ➢  A espiritualidade (toda a existência é sagrada);
  • ➢  A Família alargada (incluindo na produção a ideia de colectividade). 

O UBUNTU é uma fonte de inspiração para pensar a construção de um Futuro para todos, que não deixe ninguém “de fora”. Um Futuro que se projecte a partir de Novas Visões de Mundo, plurais, não excludentes, mobilizaforas de todos os conhecimentos e experiências possíveis, desenhadas por inúmeras mãos, para ilustrar as aspirações das gerações actuais sem colocar em causa a possibilidade de as futuras gerações escolherem os seus próprios caminhos. 

Este é um quadro de referências para a Reinvenção da Política, a Reorganização da Economia, e a Recriação da Vida em Sociedade. Uma Política participativa orientada pela União e o Bem-Público. Uma Economia Solidária orientada pela cooperação. Uma Sociedade inclusiva orientada pelo Bem-Comum e a Solidariedade. Em suma, uma Liderança Colectiva em todos os domínios da vida. Pensar em Desenvolvimento Endógeno, Sustentável, é pensar UBUNTU! 

Voltando ao Relatório Brundtlnd: a projecção do FUTURO do AMBIENTE (e NOSSO) depende da evolução de 2 factores: 

a) O grau de incorporação dos Países de Médio Desenvolvimento aos padrões de produção e consumo das sociedades industrializadas; 

b) O ritmo de desenvolvimento e adopção de tecnologias mais adequadas ao bem-estar ambiental. 

“O ‘ambiente’ é onde nós vivemos; ‘desenvolvimento’ é o que todos nós fazemos na tentativa de melhorar a nossa quota-parte no âmbito dessa ‘residência’. Os dois são inseparáveis”2. 

06 Março 2023 

1 Tradução livre do original Our Common Future (1987), p.12)

2 The Brundtland Commission report Our Common Future, 1987 (adaptação livre do original), p.14 

*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e o Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.

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