Face ao agravamento das condições de vida e aos sacrifícios em nome de uma “mudança que não chega” … 21 anos após o fim da guerra civil e quase 5 décadas após a independência, Angola é uma sociedade desordenada, carente de solidariedade e de tolerância. E ‘assustada’ com a crise institucional escancarada no judiciário (mas percebida como bem mais ampla), e em ‘debandada’, particularmente devido à degradação da prestação dos serviços públicos…
Uma das questões que sempre despertou a minha curiosidade como cidadã, como agrónoma de campo em várias regiões do país, como directora do FAS, como Socióloga e como docente e pesquisadora em Ciências Sociais e Humanidades, foi a de compreender o que mantém as sociedades juntas e coesas, e qual a natureza das relações entre os indivíduos e as sociedades. Ou seja, através de que meios se constrói a solidariedade. Tenho lido várias tentativas de explicar as diferentes formas de identificação de um indivíduo com membros de grupos, com estilos de vida, com expectativas, etc., e que o leva a aderir a um dado grupo e actuar em nome dos interesses que o grupo defende, com vista à obtenção de ganhos colectivos no futuro.
As análises que estudei centram-se na explicação das razões que levam os indivíduos a honrarem as suas obrigações para com o grupo e, pelo lado deste, a necessidade de induzir os seus membros ao cumprimento de normas que desestimulem a competição individual, mas várias são as razões apontadas para esclarecer o ‘como’ tal cumprimento é diferencialmente gerado.
A constatação da variação da solidariedade em diferentes grupos, a evolução das obrigações do grupo e os mecanismos de indução ao seu cumprimento por parte dos seus membros, bem como a simultaneidade de participação de um indivíduo em diferentes grupos (muitas vezes com interesses opostos), parecem apontar para a necessidade de se prestar atenção às acções dos indivíduos e combinar a apreciação desta acção individual com a análise dos constrangimentos estruturais que estes actores enfrentam, por forma a encontrar saídas para o dilema entre solidariedade e competição.
Quando trabalhava como agrónoma de campo, em algumas regiões de Angola, apercebi-me que num contexto de precariedade e de crise generalizada, a intervenção técnica ainda que importante e solicitada, ‘desconseguia’ responder às necessidades das pessoas. Ao ‘modo’ sobrevivência pela ausência de oportunidades para o desabrochar do potencial humano, somavam-se as frustrações de um processo de independência que não promoveu cidadania para todos, nem corrigiu as distorções sociais, económicas e políticas introduzidas nos sistemas sociais locais, durante a dominação colonial.
Um dia, um Soba perguntou-me: mas ó “menina”, essa tal da dipanda acaba quando? Essa, outra questão: a necessidade de mudança do regime político, sentida mas não transformada em acção. Mudança que não aconteceu, apesar das múltiplas e simultâneas transições do início da década de 90: do monopartidarismo para o pluripartidarismo, da economia centralmente ‘planificada’ para a economia de mercado “controlado”, da sociedade de massas da ‘república popular’ para o formal ‘estado de direito’. O facto é que, apesar de promissor este quadro de mudança não promoveu a paz, antes manteve a guerra civil em nome da legitimidade conseguida nas urnas, de um lado, e pelo alcance do poder pela via armada, do outro lado. Este ‘desconseguir’ parece poder relacionar-se com o ‘pano de fundo’ desse processo de transição: a falta de credibilidade no sistema político e a desconfiança generalizada entre governados e governantes, e entre governados, em geral. O resultado foi o adiamento, sine die, da cidadania e o acentuar da precariedade, da pobreza e das desigualdades sociais.
Os debates sobre a democratização da sociedade por grupos de cidadãos, em consonância com ‘os tempos do mundo’ de transição, nunca mereceram reconhecimento e inclusão na concepção do sistema de princípios e valores a orientar a construção da Visão para, e dos objectivos a adoptar, “nação angolana”, em promessa. Porque não aconteceu. Até hoje!
Longos períodos de dominação, aculturação e discriminação, seguidos de insegurança e intranquilidade como efeitos conjugados da longa guerra civil e de décadas de má gestão da ‘coisa’ pública, geraram crises sobrepostas, afectando os padrões de comportamento. Nestas condições, as estratégias de sobrevivência apelam ao fortalecimento dos laços de entreajuda e solidariedade. Mas os níveis de capital social são baixos, e sob pressão: as normas tradicionais de solidariedade quase desapareceram, as regras de reciprocidade estão debilitadas, as redes sociais (as reais, não me refiro às digitais) confinadas a grupos específicos ou muito dispersas. O nível de confiança é muito baixo, entre as pessoas e na acção colectiva para melhorar as condições de vida. As experiências de cooperação bem-sucedidas são raras, o que se reflecte na relutância em procurar soluções colectivas para enfrentar as dificuldades. Este cenário é agravado devido à ausência de um compromisso mútuo confiável, aumentando o número de ‘deserções’ e acentuando o sentimento de rejeição em relação à cooperação.
Desagregação do tecido social, degradação de valores éticos, descrédito do governo e das formações políticas (entre si, e entre a sociedade e a esfera política), sentimentos de inevitabilidade e de impotência face ao agravamento das condições de vida e aos sacrifícios em nome de uma “mudança que não chega” … 21 anos após o fim da guerra civil e quase 5 décadas após a independência, Angola é uma sociedade desordenada, carente de solidariedade e de tolerância. E ‘assustada’ com a crise institucional escancarada no judiciário (mas percebida como bem mais ampla), e em ‘debandada’, particularmente devido à degradação da prestação dos serviços públicos na educação e na saúde, no saneamento básico e no ambiente, bem como à falta de condições e de oportunidades para uma vida digna e com perspectivas de evolução pessoal e profissional.
As actuais condições continuam a não favorecer laços de solidariedade amplos, mas podemos tentar a) criar confiança como bem público (como ‘método’ e como ‘bem público’)1, através da criação de sistemas de ‘amortecimento’ dos efeitos gerais, na economia e na sociedade, das acções económicas e da imprevisibilidade, via acesso universal a bens e serviços; b) promover uma plena e activa cidadania, exercida por sujeitos esclarecidos e conscientes do seu papel de agentes, e c) exigir um Estado ao serviço da sociedade, exercendo vigilância e exigindo transparência na gestão pública.
Estes são alguns dos caminhos para novas e amplas formas de solidariedade e de cooperação. E para o Futuro!
05 Março 2023
1 Ideia colhida em HUTTON, W. (1998), “Como será o futuro estado?”.
*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e o Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.